Fotos: arquivo Scarlath Louyse
A artista e tatuadora Scarlath Louyse, natural de Pernambuco e nômade por escolha própria, faz parte da nova geração de profissionais da tatuagem no Brasil. Em um tempo que ficou no passado, os seus desenhos eram chamados e guardados como segredos. Hoje os seus desenhos estampam a pele de inúmeras pessoas ao redor do mundo, assim como outros suportes, tais quais muros, telas e o papel. É como se um grande segredo coletivo se formasse no universo, que nos lembra o tempo todo que não precisamos saber de tudo e que nunca saberemos de tudo.
Além de tatuadora, também é tatuada e adepta de outros procedimentos de modificação do corpo. Seu corpo e a sua voz fazem uma espécie de militância diária para a construção de um mundo mais plural, acessível, diverso. E mais do que falar sobre essa pessoa, queremos ouvi-la, queremos conhecer um pouco mais de suas histórias, vivências e experiências.
Deixamos aqui publicamente um enorme agradecimento para Scarlath Louyse pela recepção calorosa de sempre e principalmente por aceitar o convite dessa entrevista. Agora é com vocês, a entrevista está incrível e toda disponível para vocês logo abaixo.
T. Angel: Vamos começar a nossa conversa querendo saber sobre os seus começos. Como se deram os seus primeiros contatos com as modificações corporais?
Scarlath Louyse: Tenho uma vaga lembrança dos livros de história da escola e vi adornos indígenas na aula de história, inconscientemente me pintava e me riscava na infância e entendia e, até hoje entendo, meu corpo e, o que está a minha volta, como grandes projetos artísticos. Aos 14 anos fiz meu primeiro piercing, daquelas pistolas de furar orelha. FUREI O MEU NARIZ E SOBREVIVI! risos
Comecei a ter acesso a internet no mesmo ano e descobri suas escritas no blog e continuo mudando a cada ano. Ainda aos 14 vi que não era necessário parecer o que os outros queriam e raspei o cabelo, me sentia o Tutankhamon do Agreste.
T. Angel: Quando percebeu que poderia ser uma tatuadora profissional?
Scarlath Louyse: Sem dúvidas foi uma surpresa para mim. Nunca imaginei que seria tatuadora, isso aconteceu quando fiz 22 anos e tive uma crise de identidade enorme. Senti que estava jogando a minha vida fora trabalhando para os outros e não fazendo um processo que seja feito pelas minhas próprias mãos. Como qualquer escolha e começo é doloroso porque você precisa reaprender e começar a vida do zero. Sempre usei os meus desenhos como um refúgio para dizer o que sinto em silêncio e hoje uso eles como refúgio para outras pessoas. Ganhei a minha primeira máquina de um amigo tatuador, comecei a testar as possibilidades e ainda estou testando.
Sou um bebê na tatuagem, tenho três anos de estrada e continuo caminhando, aprendendo, errando, reaprendendo.
T. Angel: Quais foram as formas que você utilizou para se especializar e se profissionalizar enquanto tatuadora?
Scarlath Louyse: Vejo tatuagem como um estilo de vida, um processo acumulativo, não fiz curso algum além dos cursos de biossegurança. Eu aprendo tatuagem no dia a dia, trocando informações e experiências com as pessoas que conheço e conheci durante minhas viagens. Cada dia é uma surpresa, uma aplicação nova, uma descoberta!
T. Angel: Você tem o nomadismo como uma característica forte, mas antes de falarmos sobre isso, sabemos que você é de Caruaru, Pernambuco, e gostaríamos de conhecer um pouco da história local da cidade e Estado através de suas vivências.
Scarlath Louyse: A comida de Caruaru admito que é a melhor do mundo. É uma cidade bem pacata e na época que vivi ( há 7/8 anos) era bem pequena e cheia de igrejas. Vejo como um lugar de grande potencial artístico que precisa ser explorado e incentivado, não só ela mas como Pernambuco inteiro. Eu não tenho as melhores memórias e vivências pessoais de lá. Diferente de uma metrópole era um lugar que qualquer manifestação física e artística fora do convencional era considerada ou má vista, como algo do “satanás”. Me sentia inadequada e as vezes isolada lá. Como não tenho vínculos familiares ou amizades de infância por não corresponder as expectativas “heteronormativas” sinto que renasci depois que saí de lá. Passamos o capítulo.
T. Angel: Falemos do nomadismo agora. Como e quando começou essa sua jornada? Como você entende o nomadismo e qual a importância dele para você enquanto artista?
Scarlath Louyse: Olha sempre fui fujona! risos
Minha jornada começou quando saí de casa aos 17 anos, planejei por quase 12 anos como iria sobreviver ao mundo lá fora, juntei o básico (saber cozinhar, me virar com qualquer serviço, desejo de ir embora) e fui na loucura primeiro para São Paulo tentar viver de arte. Foi um choque cultural e ao mesmo tempo um treinamento de exército para sobreviver aqui sem muita estrutura, dinheiro ou recursos, virei o MacGyver da sobrevivência! Não descarto essa vivência porque aprendi das melhores e piores formas possíveis que temos que assumir de corpo e alma as nossas escolhas. Morei em Curitiba onde aprendi muita coisa e assim vou vivendo. Atualmente moro em São Paulo e todo mês estou em um estado ou país diferente. Entendo o nomadismo como uma forma de quebrar barreias culturais e sociais. Ano passado fiz uma tattootrip chamada ‘um ano sem casa’. Em um ano cruzei o Brasil inteiro tatuando, confiando apenas nas palavras das pessoas que me chamaram para suas casas e cidades, e sobrevivi e nada de mal aconteceu comigo.
Aprendi muita coisa com as pessoas que me acolheram em suas casas, em seus corações, em suas caronas e afins. Aprendi também a me reinventar e entender que fora meu mundo existem mundos de outras pessoas e que podemos de alguma forma entende-los e aprender junto com elas. E não é preciso de dinheiro para fazer isso, eu troquei essas viagens por serviços artísticos.
T. Angel: Quais as principais diferenças que você tem encontrado no meio das modificações corporais nos Estados e cidades que tem visitado?
Scarlath Louyse: Nessas andanças observei que cada indivíduo, grupo, filosofia de alguma forma altera seu corpo e suas vestimentas para se identificar ou protestar sobre si mesmo ou sobre algo. Por exemplo: conheci duas tribos indígenas do extremo norte e os grafismos no rosto serviam para identificar suas funções e papéis na tribo, suas histórias e ao que pertencem; outras tribos arrancavam os cílios e raspavam a parte superior da cabeça como um símbolo de beleza e sensualidade, algumas amarravam cordas feitas de palha na batata das pernas para inchar, é um símbolo de beleza também. Outrora existiam lugares como São Paulo que parte das pessoas se identificam nos “rolês” através das vestimentas, filosofias, cortes de cabelo, maquiagem e até tatuagens. Gosto muito de observar essas mudanças!
T. Angel: Você tem um estilo bastante próprio, conte um pouco sobre ele.
Scarlath Louyse: Tenho um caso de amor e ódio com isso. Eu não tinha muita desenvoltura para me expressar verbalmente quando era criança. Chamava meus desenhos de “meus segredos”. Hoje é cômico lembrar, eu levava muito a sério esses rabiscos porque se estava com raiva desenhava de uma forma, se estava triste de outra, e sempre colocava olhares e simbologias que quando olhar esse desenho um dia iria lembrar o que tinha acontecido mas foi congelado naquele momento, de alguma forma esse meu jeito de entender e expulsar meus sentimentos virou um estilo pessoal. Eu era BEM fechada e tímida, hoje até tenho um pouco mais de coragem de aparecer em público ou participar de eventos. Meus desenhos, seja nos cadernos da escola, nas paredes, todo mundo sabe que passei por lá. Dizem que o drama é bem : Scarlath. risos
Eu não tenho uma linhagem ou preocupação de parecer agradável e bem desenhado, eu só quero passar o que sinto mesmo, sem preocupações. Hoje não desenho só para mim, desenho para as outras pessoas. Por incrível que pareça meu público é 80% LGBT, elxs vem até mim, contam sobre elxs e tento passar tudo o que me dizem pelos meus traços, se o projeto agrada a elas tatuo posteriormente, mas deixo livre para que se sintam seguras em fazê-los ou não. Inclusive quero abrir um parágrafo sobre isso, sobre a representatividade LGBT na tatuagem e modificação: Se manifestem, existem centenas e milhares de pessoas que vão a estúdios de tatuagem e sofrem preconceito descarado por seu formato ou aparência e optam em não se tatuar para não passar por constrangimento.
T. Angel: Quais são as suas principais referências artísticas, filosóficas, políticas?
Scarlath Louyse: Lembrando que ainda sou um bebê no universo (tenho apenas 24 anos) e vim de uma cidade onde não tinha acesso a arte de forma direta. Quando viajo frequento museus, conheço artistas locais e da rua, não tenho uma referência muito precisa.
Gosto muito de xilogravura e literatura de cordel (típico de Pernambuco), parábolas antigas, me encanto pela estética de Klimt. De tatuagem tenho bastante fascínio pelo trabalho da Noel’le Longaul, Frederico Rabelo, DotsToLines (Chaim) e dezenas de pessoas que vou conhecendo nessa jornada. Sobre filosofias, internet e outros assuntos sou muito desligada, eu até tento me atualizar dos babados e meus amigos fazem piada perguntando em que planeta vivo. Como esqueço de ver meu feed de notícias, não voto, e esqueço de comprar uma TV para casa e não vejo noticiários, sempre sou a última a saber das coisas. Simplificando, vivo de acordo com o que desejo no momento, se não gosto da forma que estou vivendo tento mudar, eu realmente só quero usar minha vida da melhor forma possível e aprender coisas novas com as outras pessoas.
T. Angel: É possível viver – financeiramente falando – apenas do estilo que você vem desenvolvendo?
Scarlath Louyse: Sim! Não posso dizer que o começo da minha jornada foram flores e tudo foi maravilhoso, passei semanas sobrevivendo com R$50,00, com R$10,00. Mas como sou versátil sempre me virei de alguma forma. Dinheiro é algo que vai te ajudar a comprar coisas e coisas, comer, pagar as contas. Esse não é meu objetivo principal. Inclusive parte das minhas tatuagens são trocas de serviços e favores porque quando alguém não tem acesso ao meu trabalho, encontramos alguma forma de trocar por algo que precisamos mutualmente. Eu não tenho muita frescura, gosto quando alguém me procura e mesmo que seja para tatuar um pontinho, uma coisa pequenina desde que ela queira muito e a faça feliz de alguma forma estou executando. Quando fui aprendiz de alguns estúdios ninguém me procurava para fazer o básico, porque meus clientes são as pessoas que curtiam meus murais e poesias da rua, então digo que as bruxarias e energias nos conectam de alguma forma, eles me encontram e eu encontro eles. É possível viver sim, de dinheiro só estou sobrevivendo.
T. Angel: Gostaríamos de ouvir como tem sido para você a experiência em ser uma mulher, tatuadora, modificada, pernambuca e nômade?
Scarlath Louyse: Prefiro não me classificar.
Sobre tatuar, sinto que ainda existem algumas pessoas que tem a mente retrógrada, que isso é uma função para homens. As vezes algumas pessoas me mandam e-mail perguntando se sou homem ou mulher, ou cadê o “tatuador “ daqui, ou alguém se assusta de imediato com minha aparência . Como disse anteriormente, de alguma forma sinto a importância do meu papel na tatuagem quando meus clientes vem até mim e fazem parte da “minoria” e sabem que não vou fazer piada com elxs ou julgar. Não acho muito engraçado ou legal fazer piadas de minorias, então, naturalmente me sinto excluída de estúudios ou lugares homofóbicos, gordofóbicos e afins. E infelizmente existe preconceito de forma acobertada e até mesmo direta sobre nordestinos, pessoas que optam em mudar seus corpos. Inclusive na minha própria cidade eu também passava por constrangimentos. Mas a gente tenta diariamente fazer “ouvido de mercador” para pessoas que tentam nos magoar através de palavras sobre nossas escolhas, diariamente tento me reciclar e vencer meus próprios preconceitos e limitações e estou buscando isso. Quando alguém vem até mim, seja cliente ou alguém mais velho perguntando o “por que” de me mudar tanto, cortar, costurar, pintar ali, porque eu alterei tanto meu rosto e meu corpo e se isso realmente era necessário eu só faço rir, ou digo: – É a vida!
Não é necessário me justificar tanto.
T. Angel: Falando do seu corpo, quais as modificações corporais que você tem?
Scarlath Louyse: Poxa, tem tanta coisa que quero fazer ainda. Atualmente, além de tatuagens, que é um processo acumulativo, suspensão corporal, tenho tongue splitting, ear pointing, surface e quero repor meu big labret e alterar mais alguns detalhes do meu rosto e alargar um pouco mais meu septo. Não é fácil ser um elfo da floresta.
T. Angel: Existe algum procedimento que você tenha muita vontade de fazer e está na lista de planos futuros?
Scarlath Louyse: Meus projetos corporais futuros incluem o nave removal (remoção de umbigo), eyeball tattooing. uns implantes ali e acolá e algumas escarnificações.
T. Angel: Sentimos que existe uma certa resistência de uma parte dos profissionais da tatuagem contra as demais técnicas de se modificar o corpo. Você também sente isso? Se, sim, fale um pouco para nós o que tem pensado?
Scarlath Louyse: Acho essa resistência desnecessária, inclusive por conta desses processos preciso viajar para fazer certos procedimentos. Infelizmente a cena de modificação aqui está sendo dificultada por vários fatores e isso inclui a falta de respeito e envio de recursos e informações com os profissionais daqui. Me entristece a cena desde que o Emílio foi proibido de dar workshops e vir para o Brasil, me entristece também ter livres por aí modificadores corporais com dezenas de denúncias de violência e estupro.
Fui em quatro cirurgiões plásticos para fazer meu ear pointing e foi recusado. Não por ser medicamente impossível, a “ética médica” consiste em fazer tudo o que está dentro da normalidade. E um cirurgião foi sensato e sincero a me explicar que:
“Todos os procedimentos que você me apresentou eu sei fazer e a melhor forma de fazer, parte deles são menos arriscados do que por um silicone ou fazer lipoaspiração. A questão é a de que como isso está fugindo do normal, eu posso ser denunciado pelo conselho médico e perco meu registro e autorização cirúrgica como punição. E como não temos um público de modificação do seu tipo tão frequente como uma lipoaspiração eu não vou me arriscar.”
Resumindo, deixar as pessoas dentro do padrão paga as contas. Ensinar as pessoas que elas não precisam de um padrão prejudica o comércio.
T. Angel: Você considera que o meio da tatuagem seja ainda bastante sexista machista?
Scarlath Louyse: Sinto que algumas pessoas diminuem um pouco as meninas que estão começando, como fosse necessário procurar um tatuador, casar com ele ou se relacionar para aprender algo.
T. Angel: Em sua opinião o que podemos fazer para enfrentar essa situação?
Scarlath Louyse: É um exercício interno que aprendi e trabalho todos os dias. Apenas diga: não, não e não.
Se você passa por situações de sexismo e machismo na tatuagem e você continua frequentando o ambiente e se relacionando com pessoas desse círculo você está concordando com isso, é um pouco doloroso sua capacidade ser julgada pelo seu gênero, formato, corpo. Se você tiver como reivindicar seus direitos e ir sair um pouco da bolha virtual já é um grande passo, sei que é preciso ter muita força e coragem, conheço muitas pessoas que passam o dia fazendo ativismo na internet mas no dia a dia são inferiorizadas(o) e se conformam com isso.
Procuro enfrentar esses problemas cara a cara e procurar pessoas que passam pelas mesmas coisas, se a situação for comigo já chamo para resolver de imediato e não prolongo muito o sofrimento.
T. Angel: Soubemos que você tem desenvolvido uma pesquisa da tatuagem em pele negra. Como isso começou e o que tem a dizer sobre o assunto? Ah! E o que você pode recomendar para uma pessoa negra que queira se tatuar?
Scarlath Louyse: Depois de alguns estudos descobri que a pele negra não tem muitos mistérios. Conversando com meus clientes negros(as), eles me disseram que muitos projetos eram recusados pela falta de interesse do próprio tatuador de desenvolver algo específico. A pele só dá trabalho para tatuar se for ressecada e precisa de mais hidratação para não machucá-la. Naturalmente peles negras, de descendência indígena tem forte tendência para machucar e gerar relevos, tomo cuidado para não afundar muito a agulha e não sobrecarrego nos detalhes. Eu recomendo para uma pessoa negra que escolha um profissional da tatuagem que você se sinta a vontade para começar um projeto. E você tem todo o direito de pedir um portfólio de tatuagens aplicadas e informações como inspiração para seu tom de pele, se o tatuador fizer algum tipo de piada disso ou dizer que sua pele “não serve para nada’’, denuncie.
T. Angel: Gostaríamos que você deixasse uma mensagem para as pessoas que admiram o seu trabalho, para as pessoas que nos leem e principalmente para as minas brasileiras que querem se tornar profissionais da tatuagem?
Scarlath Louyse: Para as pessoas que admiram meu trabalho, queria deixar um abraço imenso, fico muito grata em fazer parte da vida de vocês de alguma forma, ter marcado seus corpos com suas histórias. Para as meninas, mulheres, seja qualquer pessoa que esteja começando: acredite nos seus instintos e no que realmente te dá unidade na vida e não deixe de acreditar e investir nisso, cada vez que você toma uma decisão e busca meios para alcançar isso já é um grande passo. A vida é um livro que a gente escreve e constrói com nossas próprias mãos.