Aprender a reconhecer e valorizar a comunidade da modificação corporal brasileira. E, então, agradecer.

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Aprender a reconhecer e agradecer o que temos. Foto: Felipe Veiga

Não há dúvidas que 2019 vem sendo um ano marcado por catástrofes. Assim como não temos dúvidas que seguir existindo – nós enquanto plataforma e individualmente como pessoas freaks – nos próximos anos será um trabalho hercúleo e que precisará ser feito. Porque como T. Angel diz, “seguir com vida, permanecer existindo é um ato de rebeldia em um sistema que tem buscado aniquilar as diferenças humanas”.

Nesses momentos precisamos estar atentas para os sinais que surgem em nossos caminhos, talvez eles serão responsáveis em nos ajudar a seguir adiante e ao mesmo tempo aprender.

Se há 1 ano me perguntassem o que eu acho da comunidade da modificação corporal brasileira, muito provavelmente eu teceria mais severas críticas do que doces elogios. Consideramos que a autocrítica seja fundamental para o aprimoramento e desenvolvimento, novamente, seja de uma pessoa ou seja de uma comunidade. E se a nossa comunidade tem aos poucos progredido, não temos dúvida, que a autocrítica é a força que tem movimentado esses processos.

No entanto, hoje o meu olhar para a nossa comunidade tem mudado e temos inclusive aprendido mais sobre ela. Embora ainda tenhamos muitos pontos criticamente falhos e perigosos, como exemplo, a sustentação por parte de algumas pessoas da permanência de homens que trabalham com modificação corporal e que carregam histórico de abuso, assédio e violência contra a mulher. Novamente, autocritica é fundamental.

Recentemente recebemos um comentário que virou uma chave aqui em nós e, até por com dele é que estamos a escrever agora. Um jovem rapaz francês, St.David, que acompanha o nosso trabalho há anos, disse:

“Parece que vocês, pessoas modificadas, todas se conhecem no Brasil. Do que eu posso ver, e do que tenho visto ao longo dos anos na web, existe uma forte comunidade da modificação corporal no Brasil e eu não vejo nada similar em nenhum outro lugar. Talvez em Londres, mas não tão forte. E na França, não existe definitivamente uma comunidade da modificação corporal, todas as pessoas modificadas aqui pensam apenas em seus próprios negócios e é só. Que triste.”

Somamos o comentário com outras conversas que temos com amigas e amigos da nossa comunidade e que estão vivendo no exterior, mais especificamente em lugares como América do Norte, Europa Ocidental e Ásia. Sempre aparece o comentário que aqui no Brasil temos “algo diferente” e que não existe em outros lugares.

Ora, reconhecer que temos o tal “algo especial” e que é só nosso, não é negar a quantidade de problemas que temos, principalmente com o atual governo e sua política com inclinação teocrática e fascista. Nem, tão pouco, esquecer os demais problemas históricos que são as sequelas do nosso sangrento processo de colonização. Inclusive o atual governo é uma dessas sequelas. Todavia, o Manifesto Freak escrito pela T. Angel já pontuava essa questão ao dizer que:

“Buscamos compreender e se fazer compreender as modificações corporais reconhecendo as nossas especificidades tupiniquins e latinas. Temos uma vivência rica e complexa que não pode e não deve ser pormenorizada. A nossa história com as modificações corporais é anterior a colonização. A colonização foi responsável pelo extermínio de parte dessa história. A colonização não acabou ainda.”

As nossas especificidades abarcam inclusive reconhecer que vivemos em um país que historicamente tem falhado para atender as demandas de certas populações e com isso a desigualdade social é tamanha, a desigualdade racial é violenta, a segregação espacial é assustadoramente visível e todas as demais violências com que coexistimos e que nunca vamos naturalizar ou aceitar passivamente. E no meio de tantas falhas e negligências, temos trabalhado justamente no sentido de tentar corrigir esses repetidos e estratégicos erros do Estado. É verdade que na maioria das vezes são ações no campo da micropolítica e, que ainda assim, são fundamentais para que sigamos existindo e que, muito provavelmente, componham o “algo diferente” que só existe aqui.

Nos últimos anos assistimos a comunidade da modificação corporal no Brasil fazendo arrecadação de agasalhos e alimento para instituições ou pessoas que necessitam, arrecadação de ração e mesmo verba para causas animais, ações pontuais como os flashdays, seja para conseguir levantar fundos para um amigo ou amiga que esteja passando por uma situação difícil, desde doença a outros casos mais particulares, como para reverter a verba para uma causa social. Flashdays onde parte da verba são destinadas a ONGs que atendem a população LGBTQ+ ou eventos onde é feita arrecadação de materiais para que sejam destinado às mulheres em privação de liberdade. E é verdade que ver tudo isso acontecendo ainda não tinha sido suficiente para olharmos para nossa comunidade e reconhecer a sua força.

Nos últimos meses e dias, tudo mudou. No final do ano passado fizemos um encontro chamado Freaks contra o fascismo e ali o “algo diferente” que falamos, ficou evidente. Sem dúvida foi um encontro que nos ajudou muito passar e enfrentar a tortuosa eleição presidencial de 2018. Ao menos para nós, foi fundamental na preservação da nossa saúde mental.

Pontualmente nos últimos dias, com o desaparecimento dos nosso meninos Doug e Henry, a união em busca de respostas e a formação de grupos de apoio para lidar com a aflição e angústia foram poderosas. Depois do anúncio da morte dos meninos, travamos a luta para que eles tivessem um velório e enterro com dignidade, a ajuda coletiva para conseguir verba inclusive para arcar com o enterro de Henry e a batalha para que as imagens deles fossem ligadas ao amor e carinho que eles emanavam a despeito de todo discurso de ódio que foi despejado sobre eles. Estivemos ali, todos os dias, brigando e ao mesmo tempo se apoiando, como uma poderosa comunidade realmente faz. É triste a gente não ter o direito ao luto sem antes ter que atestar nossa inocência e idoneidade.

Com tudo, reafirmamos que precisamos – inclusive nós – aprender a olhar para nossa comunidade com carinho e reconhecer que o que estamos construindo e vivendo aqui no Brasil é algo realmente poderoso e único. Nós podemos aprender com nós mesmos e, ainda, ensinar sobre solidariedade, respeito e compaixão ao restante da sociedade, que ainda nos julga demasiadamente. Precisamos aprender a reconhecer e, sobretudo, agradecer o que temos. No final é isso que vai nos diferenciar realmente nesse sistema. E é reconfortante sabermos que tudo está desmoronando, mas ainda nos temos. Nós por nós!

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