Crime e fascismo: entre roubar uma camiseta e roubar a humanidade

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“Se a gente escutasse o que temos gritado, escrito e falado, perceberíamos como temos descido em direção às trevas interiores dos brasileiros às quais Nélson Rodrigues avisava que era melhor “não provocá-las. Ninguém sabe o que existe lá dentro.””
Fred Di Giacomo

Ontem saiu no noticiário que um jovem havia sido preso em Goiás por roubar uma camiseta em uma rede de supermercado multinacional. De um lado um jovem pobre e do outro uma corporação rica e entre ambos um roubo de uma camiseta. Adiciona-se o fato de que o jovem em questão tinha diversas modificações corporais e isso muda toda narrativa da história, como pretendemos mostrar adiante.

O primeiro espanto foi por saber que o rosto daquele menino que estampava o programa policial nos era familiar. Era uma pessoa que inclusive apoiava e admirava o trabalho que fazemos e era estranho receber aquela informação, era triste. Martelava em nossa cabeça: um menino que conhecemos precisou roubar uma camiseta… Fomos remetidos para um texto perturbador de Eliane Brum de título “Todo inocente é um fdp?“… Recuperamos a frase da jornalista que diz que os “mais sensíveis sentem a textura de suas roupas e sabem que são costuradas com carne humana“.

“Olhamos para nossas roupas e horrorizados sabemos que em algum lugar da linha globalizada de produção há nelas o sangue de crianças, homens e mulheres em regime de trabalho análogo à escravidão. Como o casal que morreu abraçado na fábrica de Bangladesh, gerando a fotografia que comoveu o mundo mas não eliminou o horror que seguiu em escala industrial. Ou mesmo de um imigrante boliviano enfiado num quarto insalubre trabalhando horas e horas por quase nada bem aqui ao lado. Mas os mais sensíveis sentem a textura de suas roupas e sabem que são costuradas com carne humana. E já não sabem como vesti-las.”
Eliane Brum

Então vamos sendo invadidos por uma sensação de desconsolo pela seletividade nas definições do que se configura crime e de quem são e como são configurados os chamados criminosos. É tudo muito seletivo e abraçado pelo véu obscurantista do fascismo, que falaremos nas próximas linhas.

Não conhecemos a vida do rapaz, não sabemos o motivo que o levou a roubar uma camiseta, mas conhecemos o impacto da distribuição de renda extremamente desigual de nosso povo, conhecemos o efeito da segregação espacial e exclusão social do nosso povo, conhecemos o poder do capitalismo em produzir misérias. Então ficamos desconsolados com a situação. Desconsolados ao pensar sobre os milhões que são roubados do nosso povo pelos nossos próprios políticos, desconsolo que é sobretudo pela impunidade seletiva que nos devora. Desconsolo por saber que o presidente da câmara dos deputados do Brasil – aquele das contas na Suíça – que é a configuração escancarada do que entende por cidadão de bem, isto é, branco, cristão, cisgênero e heterossexual,  está ali de um modo inabalável, atrapalhando a nossa vida e a sua vida. Então retorno para a imagem daquele jovem sendo preso e penso na injustiça que pisa todo dia em nossa cabeça. Injustiça que nos pisoteia e ainda ri de nossas caras, gargalha da nossa miséria.

Então a notícia do jovem chega nas redes sociais, principalmente em páginas que seguem a linha da militarização ou do que chamam de humor. Gostaríamos de daqui em diante escrever sobre uma página em específico, que obviamente não publicaremos o nome para não fazer propaganda dos ideais ali fomentados.

A página em questão é seguida pelo número assustador de 388.053 pessoas. Em sua descrição diz que são admiradores do trabalho de segurança pública de Goiás e que anda lado a lado com o cidadão de bem. Na realidade é uma página que segue a linha jornalística de programas policiais, muito populares na televisão aberta, e que produz conteúdo sobre crimes, criminosos, promove a militarização e vende um anúncio ou outro. Inclusive há estúdios de tatuagem sendo anunciados por eles, o que é no mínimo estranho no sentido ruim da palavra. A violência fascista que existe naquela página é capitalizada. É um negócio, o ódio é um negócio ali.

A imagem do jovem sendo preso é seguida do texto :

“Olha que coisa linda esse demônio… O chulezento estava furtando roupa no Carrefour!!!” (sic)

A respectiva publicação teve 2.900 curtidas, 601 compartilhamentos e 809 comentários enquanto escrevíamos essa nota. Os compartilhamentos em sua maioria não são acompanhados de texto, mas nem por isso estão isentos em comunicar algo, é um silêncio de quem concorda com o que está sendo dito pela página que fez a publicação original.

As modificações corporais do jovem foram utilizadas pela página e por seus seguidores e seguidoras para desumanizá-lo. O fato do roubo da camiseta some, o corpo do jovem se apresenta como o motivo e em alguns momentos como a justificativa em si para que ele seja preso. Não só isso, clamam para que ele seja morto ou torturado com requintes de crueldade e em nome de Deus e pela preservação do cidadão de bem.

Por isso é importante ter claro sempre que o ódio contra os corpos não normativos está amparado sobre tudo em noções racistas e fascistas. É claro que se o jovem em questão fosse branco, dos olhos claros e com cara de europeu, o discurso seria outro. Talvez ele ganhasse o título de assaltante gato, como aconteceu com um jovem em situação de rua, se lembram? E isso é demasiado vil e violento. E não podemos também deixar de mencionar a questão de classe. Se fosse um jovem de classe média na mesma situação o discurso seria outro, é provável que nem matéria haveria de existir. Tem filho de milionário que atropelou e matou trabalhador e o discurso é outro, tem jovem de classe média que colocou fogo em índio e o discurso é outro. É tudo muito seletivo.

Se os compartilhamentos fazem esse consentimento através do silêncio e do próprio ato de compartilhar, é nos comentários que vamos ver o fascismo em suas mais variadas formas. Muitos diziam que o jovem era uma aberração, um demônio e que deveria morrer. Repetidamente as pessoas escreviam que ele deveria morrer. A imagem dele era o foco dos ataques, “cara do cão” (sic) e que por conta disso precisa “se lascar mesmo” (sic).

Um cidadão dizia que “com essa cara de demônio” (sic) ele não arrumaria emprego, só se fosse para ‘vender vela de macumba” (sic), o que é a afirmação e manutenção da ideia de que pessoas devam ser segregadas por seus corpos e aparências e além disso um escancarado preconceito religioso. Um outro cidadão do bem dizia que se fosse seu filho colocaria para fora de casa e que iria “sentar a mão na cara desse vagabundo” (sic). Sabemos que isso não é mera força de expressão, sabemos que pessoas com corpos não normativos são colocadas todo os dias para fora de casa, são espancadas por seus pais, são violentadas simbolicamente por seus familiares, isso tudo já é uma realidade.

Uma garota jovem e branca dizia que sentia nojo de ver a imagem dele e que não entendia como “uma garota poderia ficar com uma aberração dessa” (sic).  Em outras palavras, segundo essa moça, ele é tão tão inumano que não merece nem mesmo o afeto humano. Um outro jovem fez um comentário que reproduzimos na íntegra abaixo, pelo teor violento que existe ali:

Que desgraça e essa sangue de Jesus tem poder livrai- me desse mal. Mata essa peste antes que se reproduzem” (sic)

 

Ficou claro em nossa leitura que o fato dele ter sido preso por roubar uma camiseta é ignorado, os ataques e o ódio é despejado em cima do corpo que ele é. Constantemente o chamam de diabo, demônio, capeta, cão… Sua imagem é o mote central da discussão, a sua desumanização é o objetivo principal. Querem que ele seja morto.

Era doloroso ler tanto ódio de pessoas que se auto denominam cidadãos de bem é a banalidade do mal em sua forma clara e explícita. O que nos encorajava a seguir lendo tudo aquilo – e precisávamos fazê-lo – foi que felizmente existia muitos comentários de pessoas indignadas pelo ódio ali despejado e pelo fato desse ódio estar direcionado pela aparência do rapaz. Nem tudo está completamente perdido.

Não se pode esperar muito de uma página como aquela e com o propósito embutido ali. É um espaço abertamente fascista, sexista e machista, faz piada sugerindo que a presidenta do Brasil não faça o bigode (sic) por conta da situação do país e sublinha com uma hashtag que vai ter golpe sim. Zomba da figura de uma mulher e, de outro lado, objetifica e explora a imagem de policiais mulheres, sempre no padrão branca, magra e loura. A admiração que eles dizem ter pela classe é no mínimo questionável. Repetimos, eles ganham dinheiro para promover aquele conteúdo.

Enquanto um jovem foi preso por roubar uma camiseta, uma multidão estava a solta com seus delírios fascistas e cheios de ódios. Uma multidão estava ali em nome de Deus e da família pedindo a morte daquele que para eles não era mais humano e que por isso não deveria existir. Nós temos muito medo do cidadão de bem.

 

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“O que seremos nós, subjetivamente, agora que estamos condenados a enxergar? As redes sociais têm nos dado algumas pistas. O que a internet fez foi arrancar da humanidade as ilusões sobre si mesma. O cotidiano nas redes sociais nos mostrou a verdade que sempre esteve lá, mas era protegida – ou mediada – pelo mundo das aparências. (…) As implicações de perder este véu tão arduamente tecido são profundas e recém começam a ser investigadas. O impacto sobre a subjetividade estrutural de nossa espécie é tremendo, exatamente porque é estrutural e desabou num espaço de tempo muito curto, quase num soluço.”
Eliane Brum

Nota 1: Não publicamos a imagem e o nome do jovem em respeito a sua dignidade humana. Ele que nos tratou sempre com tanto respeito não poderia ser tratado com tamanha leviandade. Antes de terminarmos esse texto ele já havia sido liberado e estava se recuperando.

Nota 2: Nós não estamos dizendo que roubar uma camiseta é certo. Nós estamos dizendo que desumanizar pessoas não é certo.

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