“A finalidade do terror é o terror. O objetivo da opressão, a opressão. A finalidade da tortura é a tortura. O objetivo da morte é a morte. A finalidade do poder é o poder. Você está começando a me entender?”
George Orwell em 1984
“O que seremos nós, subjetivamente, agora que estamos condenados a enxergar? As redes sociais têm nos dado algumas pistas. O que a internet fez foi arrancar da humanidade as ilusões sobre si mesma. O cotidiano nas redes sociais nos mostrou a verdade que sempre esteve lá, mas era protegida – ou mediada – pelo mundo das aparências. (…) As implicações de perder este véu tão arduamente tecido são profundas e recém começam a ser investigadas. O impacto sobre a subjetividade estrutural de nossa espécie é tremendo, exatamente porque é estrutural e desabou num espaço de tempo muito curto, quase num soluço.”
Eliane Brum
Talvez eu me repita. Não me importo.
Marcas corporais como tortura… Nada de novo sob o sol, além da persistência de nossa sociedade em caminhar para trás. Obscuro. Veja, na história humana existiram alguns episódios onde marcas corporais – tal qual a tatuagem – foram feitas sem o consentimento e nesses casos quase sempre enquadradas em sistemas de punição, controle e dominação.
A idade média da França, Itália e Portugal, por exemplo, marcou de diferentes formas os corpos considerados foras da lei, dentre eles, ladrões, prostitutas, pessoas adúlteras e traidores. Marcas com ferro quente utilizando diferentes símbolos, em diferentes partes do corpo, mas com uma única intenção:castigar e tornar facilmente identificável os corpos considerados criminosos e automaticamente, com isso, excluí-los, eliminá-los, exterminá-los. Você está começando a me entender? Não esqueçam das fogueiras. Sinta os cheiros das cinzas dos corpos.
As marcas corporais em algumas sociedades não foram e não são suficientes – como no Oriente ainda hoje – para atender as demandas da punição, nesses casos, entraram em vigor as amputações. Primeiro cortam-se a dignidade humana. E depois? Cortam-se mãos, orelhas, línguas, pés, cabeças… Cortam-se tudo, só não cortam mesmo o problema pela raiz, muito pelo contrário, produzimos novos crimes em escalas industriais. Olhe ao redor. Olha o mundo como está. Olha a quantidade de ódio que escorre pelas nossas brechas. Olhe para si.
Essa semana de Junho de 2017 do século XXI, um tatuador de São Bernardo do Campo, São Paulo, tatuou a frase “eu sou ladrão e vacilão” na testa de um jovem de 17 anos que fora acusado de roubar uma bicicleta, isso com a finalidade de castigar e torturá-lo. O tatuador contou com a ajuda de um cúmplice, seu vizinho. Ambos filmaram a ação e divulgaram o vídeo para o delírio das redes sociais. A sociedade que se auto-nomeia como “cidadãos de bem” babava sádica e alucinadamente pela “justiça” feita pela dupla dinâmica de justiceiros. Os homens de bem espremiam as telas de seus smartphones, tablets, notebooks e computadores afim de conseguir ver um fio de sangue escorrer, afim de – quem sabe – poder ouvir um gemido de agonia do jovem torturado e que agora carrega na fronte – e em sua memória física – a marca infame de uma sociedade que explicitamente dá sinais de falha. Nós fracassamos, nós falhamos, nós fracassamos e essa marca é indelével feito tatuagem. Estamos perdidas! Estamos perdidos!
São tempos em que coisas têm mais valor que pessoas.
Mas veja a ironia da vida, a dupla de justiceiros que não chegaram ainda na casa dos 30 anos de idade, está presa pelo crime de tortura. Simbolicamente falando, será que isso será tatuado nas testas de ambos? Como estará a frase? Seria “eu sou torturador e vacilão”? Ou “tortura não é justiça”? Ou “tortura é crime”? Ou “enquanto a tortura for aplaudida estaremos perdidos”? Não sei. Pior saber que pelo andar de nossa carruagem capenga de reis nus, estaremos aguardando ansiosamente e excitadamente por um novo episódio similar. Nós, pouco já – ou quase nada – nos importamos com o fim da criminalidade pelo receio de não ter mais sangue escorrendo em nossos monitores ou pelo medo de não se conseguir mais justificar o nosso bestial desejo de ver o sofrimento alheio.
A legião fascistóide – que obviamente não se assume enquanto tal – de cidadãos do bem com os corpos tatuados, orelhas bem alargadas, línguas partidas e olhos pigmentados anseia para gritar de novo “mata, mata”, “bandido bom é bandido morto”, “tem que matar mesmo” ou o sem sentido, “está com dó leva para casa”. E segundos depois discursar que é contra o preconceito, que é humanista, que somos todos iguais com aluma hashtag boba e cínica. Nada mais faz sentido. Tudo está vazio.
Agimos como se tudo isso não nos dissesse respeito, como se tudo isso fosse algo alheio a nossa humanidade, que não falasse sobre o nosso tempo, sobre nós. A nossa sociedade se tornou uma gigantesca carniceira de misérias e gostamos disso, embora nem todos tenha a coragem de bater no peito e assumir que é o ódio que os alimenta e os move. Fantasiamos que o que temos é sede de justiça, oxalá se assim o fosse. Quem sabe assim a injustiça social que produz aos rios misérias tantas fosse verdadeiramente combatida. Nos enganamos, pois nos tornamos dissimulados a esse ponto, como um comercial de frigorífico que mostra vacas felizes e que são bem tratadas para serem mortas. Sério? Mesmo?
“Se a gente escutasse o que temos gritado, escrito e falado, perceberíamos como temos descido em direção às trevas interiores dos brasileiros às quais Nélson Rodrigues avisava que era melhor “não provocá-las. Ninguém sabe o que existe lá dentro.””
Fred Di Giacomo
Atravessando a janela do ódio, o Coletivo Afroguerrilha tem movido uma captação de verba online para buscar remover a tatuagem e conseguir dar algum suporte ao jovem, que é periférico, com família em situação de pobreza e com problemas psicológicos pela dependência química. O dinheiro que for arrecado será investido em advogados e tratamento psicológico. O nível de crueldade que estamos é tamanho, que pessoas contrárias a ação, começaram a criar boletos falsos afim de deslegitimar o trabalho e a ajuda. A ideia dessas pessoas é gerar boletos com valores altos, assim cria-se a ideia que a meta da campanha foi batida e com isso cessam as doações. Um outro grupo – amparado por parte da comunidade da modificação corporal – moveu uma captação de recurso para conseguir fundos para pagar advogado para os torturadores. A nossa sociedade está profundamente doente e mergulhada na banalidade do mal em si.
É importante dizer que a prática de se marcar os criminosos na testa já era prática comum em nossos colonizadores portugueses da idade média. Algumas heranças são malditas e só nos escancara a nossa caminhada em câmera lenta para trás. Um passo e depois outro. É o fim.
“Há alguns anos, em um relato sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém, mencionei a ‘banalidade do mal ‘. Por mais monstruosos que fossem os atos, o agente não era nem monstruoso nem demoníaco; a única característica específica que se podia detectar em seu passado, bem como em seu comportamento durante o julgamento e o inquérito policial que o precedeu , afigurava-se como algo totalmente negativo: não se tratava de estupidez, mas de uma curiosa e bastante autêntica incapacidade de pensar.”
Hannah Arendt – De uma conferência em 1970
Caso você queira e possa fazer uma contribuição para ajudar o garoto torturado, por favor, clique no link abaixo:
https://www.vakinha.com.br/vaquinha/apoio-ao-garoto-ruan-pagar-a-remocao-da-tatuagem-de-sua-testa