Machismo, assédio e abuso sexual dentro da comunidade da modificação do corpo

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“Meu primeiro emprego de tatuagem, era recepcionista/aprendiz, o dono de lá falou com a maior naturalidade que era “normal” uma moça trabalhar no estúdio e transar com todo mundo de lá. A questão não é “transar”, até porque sou livre e escolho com quem devo me deitar, mas ele falou de forma tão preconceituosa, e que mulher nesse ramo não chega em lugar nenhum.”
Anônima

 

Recebemos de uma leitora a sugestão para escrevermos uma matéria que tratasse o machismo, assédio e abuso sexual dentro da comunidade da modificação do corpo. Acreditamos que falar sobre esses assuntos se faz realmente necessário por se tratarem de questões latentes em vários campos das humanidades, inclusive no nosso. Para isso, contamos com o relato de diferentes mulheres do Brasil que denunciaram situações de assédio e abuso sexual por parte de profissionais da tatuagem e do piercing. Obviamente que iremos proteger a identidade dessas mulheres através do anonimato por uma questão de ética, respeito e segurança. Também não iremos divulgar os nomes dos profissionais que abusaram e assediaram essas mulheres (nesse primeiro momento), mas sabemos que vocês existem e que não são poucos.

Talvez essa seja uma das matérias mais difíceis que iremos fazer, ao mesmo tempo esperamos que ela sirva como uma denúncia, um alerta e ao mesmo tempo seja parte de um processo de transformação social dentro da comunidade da modificação do corpo. Afinal de contas pouco adianta modificar apenas externamente o corpo e todo resto continuar igual no que concerne a reprodução do machismo compulsório da nossa cultura e do nosso tempo. É preciso desconstruir.

Para explicar o machismo vamos utilizar as palavras da professora assistente do Departamento de Ciências Sociais e Filosofia do Instituto de Letras, Ciências Sociais e Educação da Unesp, Mary Pimentel Drumont, que em 1980 afirmou que “o machismo constitui um sistema de representações-dominação que utiliza o argumento do sexo, mistificando assim as relações entre os homens e as mulheres, reduzindo-os a sexos hierarquizados, divididos em pólo dominante e pólo dominado que se confirmam mutuamente numa situação de objetos”. E completou,“o machismo é definido como um sistema de representações simbólicas, que mistifica as relações de exploração, de dominação, de sujeição entre o homem e a mulher… O machismo enquanto sistema ideológico, oferece modelos de identidade tanto para o elemento masculino, como para o elemento feminino. Ele é aceito por todos e mediado pela liderança masculina. Ou seja, é através deste modelo normalizante que homem e mulher ‘tornam-se’ homem e mulher, e é também através dele, que se ocultam partes essenciais das relações entre os sexos, invalidando-se todos os outros modos de interpretação das situações, bem como todas as práticas que não correspondem aos padrões de relação nele contidos”. (DRUMONT, 1980)

Seguindo, é sabido que vivemos em uma sociedade patriarcal, cissexista, heteronormativa e machista e dentro desse sistema nefasto (e o é porque é violento), existe a comunidade da modificação corporal. Exatamente aqui entra a nossa crítica sobre modificar o corpo apenas pelo lado de fora como muitas pessoas o têm feito. O que temos visto em larga escala é a comunidade da modificação do corpo igualmente reproduzindo o patriarcado, o cissexismo, a heteronormatividade e o machismo de maneira deliberada. Não só fazendo a reprodução, mas trabalhando na manutenção disso tudo. A dissertação de mestrado (Unicamp, 2006) do antropólogo Camilo Braz traz apontamentos sobre essa questão e mais que isso, casos reais, recomendamos a leitura.

Todos ali eram tatuados e furados. E pareciam heterossexuais. E afirmavam, e “performatizavam” sua heterossexualidade em posturas corporais, gestos, comentários. E também por meio de piadas e brincadeiras homofóbicas entre si.”
(BRAZ, 2006, p 130)

O resultado a gente tem visto por todos os lados. Vemos isso através do discurso machista que ainda coloca a mulher em situação submissa ao homem. Vemos isso nas capas de revistas de tatuagem que trazem, na maioria das vezes, a figura de mulheres tatuadas, brancas, magras, sensualizando quase sempre com pouca ou nenhuma roupa, com a intenção de vender mais. Vemos isso nas centenas de convenções de tatuagem que acontecem pelo Brasil afora – que seguem o mesmo modelo das revistas para atrair público e aumentar as vendas – , isto é, o uso de mulheres tatuadas brancas, magras e sensualizando com pouca ou nenhuma roupa. Percebemos através disso que o corpo da mulher é coisificado e se torna um negócio lucrativo e que funciona – sem ser questionado – apenas porque o machismo está posto de forma tão sutil que parece tudo muito natural. Essa ideia de “naturalização” é pontualmente equivocada, o controle e dominação das mulheres pelos homens é uma ideia historicamente construída. Contrariando o discurso machista, mulheres não são objetos!

Qualquer semelhança com as peças publicitárias abaixo, não são meras coincidências.
size_590_Anúcio_da_empresa_de_TI_AcoraTI Acora: O anúncio da empresa de TI Acora mostra uma mulher obesa deitada na frente de um homem indeciso e a pouco feliz frase: “Algumas tarefas podem ser terceirizadas”. A ideia gerou, merecidamente, uma série de protestos. A companhia britânica voltou atrás no Twitter. “Pedimos desculpas a qualquer um que pode ter sido ofendido, e o anúncio já foi removido.”

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Ford: Um anúncio no qual mulheres são sequestradas e ficam presas no porta-malas não parece ser a melhor maneira de promover um carro. Adicione a isso a presença do ex-primeiro ministro italiano Sílvio Berlusconi e as caricaturas de conhecidas amantes dele chorando. O resultado? Um grande escândalo internacional para a Ford, que justificou que a peça não foi autorizada.
anuncios-1BMW: A peça publicitária trabalha com a infeliz objetificação da mulher

Um estudo realizado em 2008 nos Estados Unidos  mostrava que três em cada quatro anúncios em que apareciam mulheres em revistas masculinas, estas eram retratadas como objetos sexuais, ou seja, a sua sexualidade era utilizada como publicidade para vender um produto. A mesma lógica é utilizada dentro da comunidade da modificação do corpo. Diferentes mas iguais.


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Perceba que, ironicamente, temos um grupo que de um lado historicamente sofre opressão social por conta de seus corpos e subjetividades, e por outro lado, oprime a mulher. Bem sabemos que também existe opressão com as pessoas não brancas (negros, índios, etc), as pessoas não heterossexuais (gays, lésbicas, bissexuais, etc) e as pessoas não cisgêneras (travestis, transexuais, queer, etc) e isso é algo que precisa ser revisto o quanto antes. Modificar o corpo apenas não basta, é preciso ir além. São assuntos que precisam ser colocados em pautas de workshops, seminários e de todo curso de aperfeiçoamento desses profissionais. Não precisamos ensinar as mulheres formas de não serem exploradas, violentadas, abusadas, precisamos ensinar os homens a não explorarem, não violentarem e não abusarem. Precisamos encontrar formas de existência que não produzam violência.

Que fique claro, sair dizendo que “até tenho amigos gays” (sic) ou que “não sou homofóbico, mas...” (sic) é desnecessário e só reforça a sua homofobia. Sair fazendo o discurso bonito que respeita todo mundo, e depois sair com os amigos para “zoar os travecos” (sic) ou ficar escrevendo nas redes sociais que “transexual é doente” (sic), no mínimo mostra que você não é só machista, mas também é mau caráter e transfóbico. Sair falando que é importante ter ética profissional, mas ficar se aproveitando do corpo de mulheres, ficar falando de suas clientes em mesa de bar como se fossem apenas pedaços de carne ou cantando cada mulher que procurar o seu serviço, também não cabe.

Tratando pontualmente a violência em que a mulher tem sido a vítima, quando divulgamos que iríamos escrever sobre essa questão e pedimos auxílio das mulheres, afinal de contas ninguém melhor do que elas para falar sobre uma violência a qual elas sofrem, vimos uma série de relatos. Eram depoimentos assustadores de situações de assédio e abuso sexual por parte de tatuadores como também de body piercers. Todavia, antes mesmo que esses relatos chegassem aos nossos ouvidos, analisando todos esses anos que estamos vivendo dentro desse meio, percebemos o quanto é assustador ver o machismo instalado com raízes tão profundas dentro dessa comunidade. A gravidade é que nem sempre ele se coloca de forma berrante, inclusive é nas sutilezas que o risco mora.

Quando dizemos assédio e abuso sexual não exageramos, estamos falando de coisas que realmente acontecem e escrevemos essas linhas com o mais profundo desejo que isso acabe, porque é inaceitável, intolerável e injustificável. Não podemos mais aceitar que o corpo da mulher continue sendo tratado como coisa, objetificado, violentado e desrespeitado. Por isso é importante que você saiba que: existem histórias de tatuador que vai tatuar o corpo da mulher e fica acariciando, alisando ou literalmente se esfregando; Há casos de meninas que querem aprender a tatuar e quando procuram estúdios são recebidas pelo tatuador com um convite para sexo em troca da aprendizagem; Há casos em que o body piercer vai fazer piercing genital e abusa sexualmente do corpo da mulher. Há casos em que a mulher quer um piercing no mamilo e acaba recebendo junto uma série de investidas do piercer; Há casos em que mulheres ainda ouvem que ser body piercer não é coisa de menina; Há casos em que mulheres ouvem que elas não podem ser tatuadoras, porque isso é coisa de macho; Há casos que tatuadores e body piercers fotografam partes íntimas de suas clientes para exibirem como medalha para os amigos; Há casos de mulheres que são agredidas psicológica e fisicamente porque se recusam a sair com o tatuador descolado. Há muitos casos de violência contra a mulher rondando o nosso meio e isso precisa parar.

UN-Women-Ad-2_495x700 jpgUma série de anúncios desenvolvida pela agência de publicidade árabe Memac Ogilvy & Mather Dubai para a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres) utiliza pesquisas do Google para revelar a prevalência do sexismo e da discriminação contra as mulheres.

 

Perceba que não entramos no mérito dos comentários machistas (que também são formas de violência) contra as mulheres. Para qualquer pessoa interessada sugerimos visitar e prestar mais atenção nas fanpages ou perfis de redes sociais de tatuadores e piercers e constatarem. Que fique claro, não estamos generalizando, temos plena consciência que existem ótimos profissionais homens que trabalham para aprimorar seus trabalhos e também na desconstrução do machismo. Mas reforçamos, é importante saber que – infelizmente – tem muito profissional machista e que abusa e assedia mulheres sim e isso precisa ter fim.

Procure estúdios de confiança e profissionais sérios. Na dúvida, converse com alguma outra menina que tenha passado pelo estúdio que você pretende passar. Não se esqueçam também que existem inúmeras excelentes tatuadoras e perfuradoras profissionais e que também podem ser uma ótima opção para evitar qualquer tipo de violência. E, principalmente, não alimentem esse tipo de violência, não façam parte da cultura do estupro, não endossem o discurso machista de violência contra a mulher.

Em caso de assédio ou abuso sexual, denuncie e procure ajuda. Por fim, não queríamos e não poderíamos terminar esse texto sem assinalar a importância de tornar visíveis todas as formas de abuso, assédio e exploração da mulher – e igualmente toda violência machista, sexista e cissexista -, justamente, para combater a sua normalização e intromissão em nosso cotidiano e em todos os âmbitos das nossas vidas.

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UTILIDADE PÚBLICA
Atendimento de polícia judiciária e atendimento psicossocial à vítima de violência doméstica, violência sexual, crianças e adolescentes vítimas. Todas as vítimas de violência sexual são encaminhadas ao Hospital Pérola Byington a fim de serem devidamente medicadas e receberem atendimento psicossocial (Programa Bem-Me-Quer).

1ª Delegacia de Defesa da Mulher – Centro
Rua Dr. Bittencourt Rodriguez, 200 – CEP 01017-010 – São Paulo
Telefone: (11) 3241-3328

Mais informações: http://www.cidadao.sp.gov.br/servico.php?serv=1715

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