Que possamos aprender a destruir os estereótipos

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Precisamos aprender a destruir estereótipos: Foto: reprodução/Página das pessoas que as tias olham torto na rua

A página no Facebook chamada Página das pessoas que as tias olham torto na rua trouxe na data de ontem uma importante e urgente reflexão sobre os estereótipos que nos assombram e nos matam. E acreditamos que precisamos nos debruçar com mais força e responsabilidade sobre essa discussão. Escrevemos agora para somar com essa reflexão e provocação.

A página colocou duas imagens juntas. De um lado estava Adriano Lemos, um jovem cristão e protetor dos animais, com diversas modificações corporais. Do outro lado estava Leônidas Bueno, um jovem médico que sustenta o discurso de “cidadão de bem” e com uma estética que atende as demandas compulsórias do “padrão de beleza” do discurso dominante. O texto que acompanha as imagens, assinado por Cardoso, dizia:

“Um deles é protetor dos animais, anda pelas ruas de sua cidade dando ração aos cachorros abandonados e o outro é um organizador de rinhas de Pitbull.

Pela aparência, um vocês demonizam e o outro vocês não dizem nada.”

A provocação é forte e intensa e obviamente que incomoda, principalmente as pessoas que estão acostumadas a se articularem na sociedade por meio dos estereótipos. É cutucar uma ferida que as pessoas não querem muito que seja mexida. E é mais fácil tentar defender e sustentar uma premissa equivocada do que reconhecer que há algo de errado no discurso, se desculpar (ainda que para si) e tentar elaborar uma narrativa melhorada, um olhar mais sensível e ao mesmo tempo crítico sobre as pessoas e o mundo que ocupamos.

Eu gosto muito daquela célebre frase potente de Nelson Mandela (1918-2013) durante a Long Walk to Freedom em 1995, que diz:

“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar. “

De fato precisamos ser ensinadas a amar. Precisamos também ser ensinadas a destruir estereótipos como parte indissociável desse processo de enfrentamento das ideologias e pedagogias do ódio e da necropolítica.

Segundo o dicionário Michaelis a palavra estereótipo significa:

“Fig. Imagem, ideia que categoriza alguém ou algo com base apenas em falsas generalizações, expectativas e hábitos de julgamento.”

Grupos de pessoas que historicamente sofrem com a opressão e diversas violências de desumanização usualmente são vitimadas pelos estereótipos. Em grande resumo, os estereótipos fortalecem e sustentam processos de exclusão, segregação e extermínio. Pense em qualquer grupo de pessoa, chamado de minoria, visite sua história, visite o imaginário de senso comum e logo você vai perceber o quanto o estereótipo é cruel. Sobre isso Paulo Freire (1921-1997) já nos alertara em sua obra Pedagogia da Autonomia (1996), ao dizer que:

“Não podemos escutar, sem um mínimo de reação crítica, discursos como estes:
“O negro é geneticamente inferior ao branco. É uma pena, mas é isso o que a ciência nos diz.”
(…)
“Maria é negra, mas é bondosa e competente.”

“Esse sujeito é um bom cara. É nordestino, mas é sério e prestimoso.”
(…)

“Que vergonha, homem se casar com homem, mulher se casar com mulher.”

“É isso, você vai se meter com gentinha, é o que dá.”

“Quando negro não suja na entrada, suja na saída.”
(…)

“Está se vendo, pela cara, que se trata de gente fina, de trato, que tomou chá em pequeno e não de um pé-rapado qualquer.”

Contudo, é importante saber que a palavra estereótipo vem do grego  stereos e typos, compondo “impressão sólida”. O termo nasceu em 1794 no campo da impressão gráfica. Sua utilização com semântica psicológica nas ciências sociais – a qual agora propomos sua destruição enquanto prática de desumanização – se deve ao jornalista estadunidense Walter Lippmann (1889-1974) que aplicou o termo com este sentido pela primeira vez em 1922 em seu livro Opinião pública, para descrever a simplificação que fazemos do mundo e das pessoas a fim de facilitar a nossa compreensão destes. O grande problema que essa compreensão – simplificada e generalizada – é falha.

As estéticas, corpos e vidas que escapam dos padrões da normatividade compulsória acabam sendo vítimas dos estereótipos. Os problemas que isso causam são diversos, tais como a negação do direito de ter sua segurança preservada, negação do acesso ao sistema de saúde, negação do acesso ao mercado de trabalho, negação do acesso ao sistema de educação e negação do direito ao afeto. É como se a dignidade humana dessas pessoas fossem negadas a tal ponto que o que sobra é o extermínio.

A história tem sido implacável e repetidamente nos mostra que os estereótipos são falhos. O caso apontado pela página com a provocação de Cardoso é mais um caso que nos cutuca as feridas. E ainda que incomode – e sabemos que incomoda mesmo – a gente precisa falar sobre isso com cada vez mais força. Para que quem sabe – talvez um dia – a sociedade avance nesse sentido. Estamos muito – muito mesmo – atrasadas nessas discussões, porque de modo geral a sociedade está confortável demais na manutenção e reprodução dos estereótipos como práticas políticas cotidianas.

Se temos a capacidade de aprender a estereotipar pessoas, somos igualmente capazes de aprender a destruir os estereótipos. Nosso convite é para destruir estereótipos e não pessoas. Destruir.

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