Em janeiro de 2019 se tornou público o caso de Layane Ferreira Nascimento, a jovem de Brasília contou em seu perfil no Instagram a história em que – segundo ela – depois de ter feito um piercing no nariz, ficou paraplégica.
Muitos profissionais brasileiros do piercing compartilharam a publicação em suas redes sociais com a intenção de alertar sobre os perigos do piercing e a necessidade de que busquem pessoas qualificadas. E, alguns, ao mesmo tempo, com a tentativa de promoverem os seus próprios trabalhos.
A imprensa genérica por sua vez, contava a história de superação da garota que ficou super popular no Instagram depois do incidente com o adorno. De uma forma questionável, algumas vezes sensacionalistas, romantizaram ao contar que a jovem ganhara 2.000 novos seguidores no Instagram. Títulos com a frase ‘fiquei paraplégica por conta de um piercing‘ se repetiram em diferentes canais da imprensa brasileira. Por sua vez, leitoras e leitores – que chegam nessas notícias – demonizavam e aproveitavam a ocasião para despejar todo preconceito que carregam sobre o body piercing. E é sobre tudo isso que buscamos refletir e, agora, convidamos para que vocês venham conosco nessa reflexão.
No final do texto disponibilizamos nas referências as fontes do que consultamos para escrever esse texto, afim de que vocês possam consultar também e verificar a veracidade das informações.
A história de Layane Ferreira?
O site Universa hospedado pela Uol no dia 09 de Fevereiro publicou a matéria ‘Fiquei paraplégica por causa de piercing e hoje inspiro pessoas na web’. Nela, temos um relato detalhado da garota, o qual deixaremos o link da matéria em nossas referências no final do texto e reproduzimos partes do depoimento de Layane abaixo:
“Fiz um piercing no nariz em junho do ano passado. Estava tudo bem durante um mês, mas aí apareceu uma bolinha na ponta do meu nariz. Fui tratando porque achava que era uma espinha. Depois de uma semana, sumiu, mas comecei a sentir bastante dor nas costas. Durante duas semanas, eu ia e voltava do hospital, porque os médicos não achavam nada de errado nas minhas costas e me medicavam.
(…)
Os exames de sangue e de urina apontaram que eu estava com infecção no sangue. Fui transferida para outro hospital onde fizeram uma tomografia. Novamente, eles não conseguiram ver o que estava acontecendo. Perceberam que tinham uma infecção, mas não entendiam o que era. (…) A dor era tanta que comecei a tomar morfina.
Na ressonância, conseguiram ver que havia pus na coluna vertebral comprimindo três vértebras. Tive que fazer uma cirurgia para tirar a secreção. Os médicos fizeram a cultura do pus e descobriram que era uma bactéria nasal, desenvolvida na pele. Perguntaram se eu tinha tido sinusite ou alguma ferida. Contei sobre a espinha depois de perfurar o nariz. Ele me disse, então, que o piercing foi a porta da entrada para que a bactéria entrasse no meu corpo.”
Não está no depoimento acima mas está no que ela publicou em seu Instagram que a bolinha não era no local da perfuração. No depoimento vemos que ela diz que a bolinha estava na ponta do seu nariz. Esse detalhe é importante.
Problematizando a situação
O que aconteceu com Layane é realmente ruim e lamentável. Quando problematizamos a situação, não estamos querendo dizer que ela está mentindo ou tão pouco ignorando ou diminuindo o sofrimento que ela teve.
Por sua vez, não podemos negar que existe um olhar negativo sobre a prática do body piercing – e aqui é a necessidade da problematização – e que fica mais evidente em situações como a que apresentamos aqui com o caso de Layane.
Precisamos lembrar ainda que em 2013 – também pelas redes sociais – tivemos a situação da Sandra de Alagoas que divulgava o caso de uma menina que fez um piercing no nariz e estava com uma infecção seríssima no rosto. A imagem divulgada pelo Facebook na época, mostrava um rosto completamente desfigurado e misturava pedido de ajuda da imprensa com discurso religioso. Na época fizemos um intenso trabalho de investigação – com outras pessoas da indústria do piercing – e acabamos concluindo que era um caso falso disparado por pessoas fundamentalistas religiosas. Pois é.
No entanto, o caso de Layane é significativo para entendermos como o piercing é visto para além da nossa bolha. A forma com que a situação foi e tem sido noticiada, acabaram por demonizar uma prática cultural, uma profissão e profissionais que estudam muito para se qualificarem em seu ofício.
Tornou-se aquele típico caso em que se generaliza toda uma prática cultural milenar e uma profissão de pessoas que trabalham arduamente para que o body piercing se torne mais seguro. O lema internacional da indústria do piercing inclusive é safe piercing (tradução: piercing seguro). Vamos insistir nesse ponto justamente porque essa parte acaba sendo ignorada por notícias tendenciosas e porque sabemos do trabalho gigantesco que tem sido feito pela prática no Brasil.
Inclusive, fomos conversar com um profissional do piercing para entender melhor o caso. Algo que deveria ter sido feito por toda imprensa que noticiou a situação e que a maioria não fez por preguiça ou conveniência. É mais fácil endossar a estigmatização de uma prática que historicamente já carrega preconceitos e o olhar de desconfiança e receber audiência e cliques com o discurso de superação.
Assim, entramos em contato com Andre Fernandes responsável pelo Grupo de Estudos de Piercing – GEP e também um dos profissionais mais importantes da área no Brasil, com anos de experiência e reconhecimento nacional e internacionalmente. Sobre o caso de Layane, o profissional nos conta que:
“A bactéria (estafilococos) que causou o problema vive em nossa pele. O que ela não pode é estar dentro de nossos corpos. Então, um arranhão ou uma picada de inseto, uma remoção de verruga feito por um médico pode ser a porta de entrada. Dito isso, o piercing contaminado pode ter sido a porta de entrada. Mas a espinha que ela tinha no nariz também pode ter sido. Um pequeno arranhão poderia ter causado.”
Endossando a fala de Andre Fernandes se faz muito importante saber que médicos alertam que espremer espinhas podem causas sérias infecções e inclusive levar à morte. Em 2017 uma jovem quase ficou cega depois de espremer uma espinha, segundo notícia do Bol. E em 2000 uma mulher em Goiânia morreu por conta de uma espinha que ela espremeu e infeccionou. A matéria da Folha de São Paulo de 04 de Outubro de 2000 que contou o caso da mulher de Goiânia, traz também o relato do Dr. Luiz Carlos Cucé que na ocasião era o chefe do chefe do Departamento de Dermatologia da Faculdade de Medicina da USP. O médico afirmou que pessoas morrerem por conta de espremerem espinhas é algo mais comum do que pensamos. O especialista disse ainda a Folha que “há casos de meningite que surgiram por causa de uma espinha no nariz”. Por fim, ainda segundo o médico, quando há rompimento do equilíbrio biológico entre a bactéria e o organismo, a bactéria penetra na pele. Começa por uma espinha, que vira furúnculo, um abcesso grande e, por fim, septicemia (infecção generalizada). Sendo importante considerar também o estado imunológico de cada pessoa.
O infectologista Felipe Tuon que é professor do Adjunto de Infectologia da Pontifícia Universidade Católica (PUC-PR) e que comentou o caso em várias reportagens que saíram pelo Brasil, disse que casos como o de Layane são raros, mas podem acontecer por uma série de fatores, como as condições de higiene do estúdio onde ocorreu a perfuração e o próprio organismo da pessoa. Fundamental também é considerar os cuidados que a pessoa terá depois do procedimento ter sido feito, é de praxe que todo profissional indique uma série de cuidados.
O neurocirurgião Oswaldo Ribeiro Marquez, que acompanhou o caso de jovem disse para BBC com base no diagnóstico, que é “bem provável e plausível” que Layane tenha ficado paraplégica em decorrência do piercing. Mas ele ressaltou que somente estudos genéticos poderão garantir que a paraplegia foi motivada unicamente por complicações causados pelo adereço.
Com isso, se no caso de Layane foi a espinha ou o piercing não podemos afirmar categoricamente. Mas o que podemos dizer é que entre a espinha e o piercing fica mais fácil supor e existe um certo comodismo em se culpar o piercing por todo mal que a jovem sofreu.
Sobre os riscos e cuidados com o piercing recebemos as orientações do profissional Andre Fernandes, que diz:
“Claro que o cliente tem sempre que procurar um local que realiza a esterilização correta e faça uma procedimento asséptico. Mas o pôs também é muito importante. O piercer pode ter feito todo procedimento correto a o local ter sido contaminado com maus cuidados do cliente, ou um simples toque no local com a mão contaminada.”
A questão de tocar o local perfurado durante o processo de cicatrização realmente carrega inúmeros riscos e pode prejudicar o trabalho do profissional e a saúde de quem carrega o adorno. Profissionais do mundo inteiro fazem constantes campanhas para que as pessoas não toquem em seus piercings. Resta também saber se os apelos são atendidos.
A indústria do piercing e o tiro no pé
Como dissemos acima, profissionais do piercing começaram a compartilhar a história de Layane com a intenção de alertar sobre os perigos do piercing e também da importância de se procurar profissionais com qualificação e experiência. Porém entre o que se deseja com o que se recebe, existe um abismo.
No caso da indústria do piercing, não se demonizava obviamente a prática, mas o possível profissional que realizou o procedimento. Que inclusive teve a identidade preservada pela própria jovem, em matéria para o Amazonas 1 no dia 13 de Fevereiro de 2019, ela disse que optou em não falar sobre ele, porque essa informação não fará com que ela volte a andar. A mesma afirmou ainda que já tinha feito outro procedimento com o mesmo profissional e não teve problema algum.
Tem sido uma prática bastante comum entre piercers fazer uma grande promoção – no sentido de dar muita visibilidade – para casos em que o procedimento de piercing deu errado. Alguns falam tanto sobre o que acontece de errado que esquecem de mostrar o que tem sido feito de bom ou mostrar o próprio trabalho – bem feito e seguro – em si.
Precisamos lembrar que fora da nossa comunidade da modificação corporal, algumas pessoas – como aves que se alimentam de carniça – esperam que aconteça algo de muito ruim para então apontar o dedo e dizerem: “a gente sabia que não era seguro“.
Ainda é preciso considerar que os casos ruins, acidentes e tragédias – para além das modificações corporais – acabam ganhando maior visibilidade nas redes sociais e imprensa, porque temos um apetite voraz por destruição. O perigo é que algumas pessoas vão receber somente e exclusivamente a informação do que deu errado. E sobre isso precisamos ter um olhar mais crítico e trabalhar arduamente para que as informações das boas práticas também consigam ser viralizadas. São raros os casos.
Andre Fernandes nos lembra ainda que um dos desdobramentos desse compartilhamento dos problemas e erros do piercing pode fazer com que políticos criem projetos de leis para controlar ou criminalizar a prática da perfuração corporal no país. E reforça para que profissionais brasileiros compartilhem também as boas práticas, já que aquilo que é mau está disseminado.
Andre nos diz ainda que:
“O que eu acho um absurdo são piercers compartilharem estas informações pois estão prejudicando a imagem da profissão, acreditando que mostrando isso vão ser profissionais melhores perante sua clientela. Mas isso só queima a nossa profissão.”
Acho que a indústria precisa refletir sobre isso com mais propriedade e atenção, entendendo que se tornar um bom profissional depende mais do trabalho que você faz e o quanto você se aplica nos estudos, do que no fato de apontar o dedo no trabalho do coleguinha que não está fazendo a lição de casa. Principalmente quando não se sabe com exatidão se o colega está ou não fazendo um bom trabalho, como no próprio caso de Layane.
A conclusão
Realizar procedimentos no corpo oferece risco, a gente sabe disso. Se espremer espinhas podem matar… Bem…
Já aconteceram erros dentro da indústria do piercing? Com toda certeza existiram e ainda existirão. Assim como vemos erros acontecendo na área da medicina, talvez com mais frequência do que gostaríamos, é verdade.
Quando falamos em tiro no pé e criticamos os compartilhamentos sem ponderação, não estamos sugerindo que se cubra as falhas e escondam os erros na indústria do piercing. Muito pelo contrário. Estamos dizendo que precisamos nos proteger e ter sabedoria e maturidade até mesmo para saber como falamos dessas falhas e erros. Já falamos sobre isso em outros tantos textos que publicamos aqui.
Se nós – enquanto comunidade mais generalizada da modificação corporal e a indústria do piercing em particular – não ponderamos, não fazemos análise crítica e não colocamos na balança os discursos que produzimos e reproduzimos, a chance de alguém que esteja fora do nosso universo e que tenha mais poder, chegue verticalmente – de cima para baixo e sem diálogo – produzindo uma lei ou criminalizando a prática de perfurar o corpo é gigante. Já tivemos essa experiência em 1997 com a Lei Campos Machado (Lei 9828/97). Já deveríamos ter aprendido algo com aquela experiência.
Então, desde que você tenha em mãos os estudos genéticos do caso de Layane, a sua afirmação categórica – que foi o piercing o responsável pelos problemas de saúde que ela enfrentou – terá validade. Caso contrário, são especulações e hipóteses. Possíveis e plausíveis, mas ainda assim especulações e hipóteses.
Estimamos melhoras para Layane.
Estimamos melhoras para a indústria do piercing.
Cuidado ao espremer as espinhas.
Não toque no seu piercing.
REFERÊNCIAS:
As mentiras que são contadas em rede social e o ataque ao body piercing
https://www.frrrkguys.com.br/as-mentiras-que-sao-contadas-em-rede-social-e-o-ataque-ao-body-piercing/
Fiquei paraplégica por causa de piercing e hoje inspiro pessoas na web
https://universa.uol.com.br/noticias/redacao/2019/02/09/fiquei-paraplegica-por-causa-de-piercing-e-hoje-inspiro-pessoas-na-web.htm
Jovem de Planaltina fica paraplégica após colocar piercing
https://globoplay.globo.com/v/7383754/
Jovem de 20 anos fica paraplégica após colocar piercing no nariz
https://amazonas1.com.br/brasil/jovem-de-20-anos-fica-paraplegica-apos-colocar-piercing-no-nariz/
Saúde: Fiquei paraplégica por causa de um piercing
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47205536
Mulher pode ter morrido em Goiânia por espremer espinha
https://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u11386.shtml
Como uma espinha espremida pode colocar em risco sua vida
https://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/ciencia/2017/08/15/como-uma-espinha-espremida-pode-colocar-em-risco-sua-vida.htm
Espremer espinhas pode causar infecção e levar à morte
https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/saude/doencas-e-tratamentos/espremer-espinhas-pode-causar-infeccao-e-levar-a-morte,f9d4799ecfb51410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html