Uma profunda conversa sobre a história da modificação corporal com Trash

0 Flares 0 Flares ×

Todas as fotos são parte do acervo de Trash.

Conhecer as histórias das modificações corporais é sempre um exercício primoroso. Nunca a conheceremos por inteiro, nunca saberemos de tudo, mas é realmente bom e importante conseguir escutar, aprender e registrar o máximo que conseguirmos.

Foi com esse desejo que chegamos para conversar como Luís Fernando Marchioni, conhecido no meio da modificação corporal como Trash de Campinas, interior de São Paulo.

Nascido na década de 70 em São Paulo, viveu a adolescência em Limeira e na década de 90 se mudou para Campinas, onde vive e trabalha até hoje.

Trash iniciou em 1995 sua formação em educação artística com habilitação em artes plásticas (atualmente Artes Visuais) pela Unicamp. No ano seguinte, passou a trabalhar como tatuador profissional. Durante esse tempo circulou em convenções de tatuagem em diversas capitais e cidades do Brasil, assim como no exterior, por exemplo, Chile, Suíça e Espanha.

Além de sua forte relação com a tatuagem, Trash também teve forte envolvimento com outras técnicas de modificação corporal e suspensão, sendo testemunha das primeiras atividades dessas práticas no Brasil. Registros apontam que ele seja a primeira pessoa que passou pelo um procedimento de implante na América Latina ainda nos anos 90.

Conversamos com Trash para conhecer um pouco mais sobre a sua história e relação com as modificações corporais. Tome uma água, ajeita essa coluna, fique confortável e nos acompanhem nessa conversa, viajando entre palavras e imagens.

Deixamos aqui o nosso gigante agradecimento ao Trash pela generosidade em abrir parte de seu acervo de fotos e principalmente sua história conosco. E agora com o mundo.

Trash e Lukas Zpira no Brasil.

FRRRKguys: Como se iniciou o seu interesse pelas modificações corporais?
Trash: Minhas primeiras exposições à tatuagem foram no fim dos 70 início dos 80, ainda em SP, minha mãe tinha uma tia, a Nenzica, que tinha sido presa em Auschwitz e tinha números rabiscados nela. Meu pai tinha um amigo, o Leiterão, da Vila Maria Zélia, que tinha muitas tatuagens e me contou uma estória de que apostava suas contas em bares contra arrancar suas tatuagens ali mesmo e se alguém apostasse, pegava um caco de vidro e arrancava sua tatuagem! Tinha mesmo diversas tatuagens com riscos falhados no meio , provavelmente causados pela escarificação auto infligida. Eu tinha em torno de uns 7 ou 8 anos a época que me lembro dessa história.  Um pedreiro na casa de veraneio da minha tia Mariza no Guarujá,  que tinha o corpo coberto com o nome Vanusa (seu apelido) e finalmente meu irmão André,  que fez uma tattoo com o Freddy na Tattoo You do Marco Leoni, provavelmente em torno de 86.

A infância de Luís Fernando Marchioni conhecido como Trash.

FRRRKguys: Quando você começa a modificar o seu corpo? Quais os primeiros procedimentos? E qual foi a recepção da sociedade na época?
Trash: Minhas primeiras experiências foram ao redor de 1984, alguns garotos da natação, em Limeira, interior de São Paulo, aprenderam a se tatuar com agulhas, linhas e nanquim, eu prestei atenção em como fazer e fiz uma pequena “chave do inferno “ no tornozelo. Em 1987 fiz meus primeiros furos nas orelhas, em 1989 minha primeira tatuagem com o Junior Spitfire na Galeria do Rock, aonde ele tinha um estúdio com Zé Linhares e ainda em 89 conheci o Garoa, em Piracicaba, que me abriu as portas para o mundo da tatuagem. Na época,  fim da ditadura, início de abertura democrática,  menino do rio,  Nando e sua tatuagem de sol e gaivota, abriram as portas desse universo para a sociedade, mas nas subculturas urbanas da época, isso estava ligado a estar à parte da sociedade e a visão da mesma sobre essas práticas era recíproca, a individualidade não era bem vista e a modificação permanente do corpo representava o ápice dessa atitude desafiadora .

Trash e Garoa em uma Convenção de Tatuagem de São Paulo.
Trash sendo tatuado por Paul Booth

FRRRKguys: Atualmente quais modificações corporais você tem?
Trash: Uns 90% do corpo tatuado, diversos alargamentos (lóbulos, cartilagens, septo e narinas), piercings no mamilo, sobrancelhas, diversos implantes de diversos materiais, um branding, um cutting.

Escarificação e implante de Trash.
Piercings e alargadores de Trash
Trash passando pelo prcoedimento de alargar o nostril
Trash atua como tatuador profissional desde 1996 em Campinas.

FRRRKguys: Em que momento você percebe que queria trabalhar na área como um tatuador? Aproveite e nos conte como foi o seu processo de capacitação para iniciar os trabalhos.
Trash: Tendo desenhado a vida toda, a única coisa que me movia era o desejo de passar a vida desenhando, tipo, sonhava em ser desenhista de quadrinhos, capas de discos e etc. A tatuagem apareceu na minha vida como uma parte do estilo de vida que eu levava, envolvido com o nascimento do Heavy Metal no Brasil, mais uma forma de expressar o descontentamento com as perspectivas apresentadas pela sociedade massificadora. Com essa background do desenho e totalmente enfeitiçado pela arte da  tatuagem, sua permanência e a incredulidade das pessoas por essa escolha, caí nas graças do Garoa, de Piracicaba, que me ensinou o básico e me incentivou no caminho enquanto tatuava minha pele, a dos meus amigos, a dos meus conhecidos e de qualquer desavisado que me dissesse que queria uma tattoo. Meu aprendizado foi bem “old school“, tatuando meu corpo, de meus amigos e dos amigos deles. Acho que em 1990 eu era um dos dois tatuadores de Limeira, os sábados a tarde no quintal de meu pai reuniam headbangers, punks, góticos e skinheads se tatuando sem parar! Assim iniciei o aprendizado da técnica e a arte.

Trash tatuando o logo do BMEzine em Roberto Medeiros
Trash tatuando o logo do BMEzine em Roberto Medeiros

FRRRKguys: Você inicia no meio da modificação do corpo em um momento antes do boom da internet e redes sociais, como você fazia para obter informações e se manter atualizado sobre o assunto?
Trash: Tive muita sorte, pois quando fui morar em Campinas descobri uma banca de jornal que vendia revistas da cultura biker “outlaw biker” que continham algumas matérias sobre tatuagens, e já tinha visto outros livros e revistas de tatuagens no Garoa, então insistentemente eu pedia ao dono da banca que trouxesse os títulos “Easyriders Tattoo” e “Outlaw Biker Tattoo Revue“. Fui cliente da Banca Terminus em Campinas de 1990 a 2010 (?), até o encerramento das atividades da mesma, com a primeira crise do mercado editorial devido ao surgimento da Internet. Também por estudar na Unicamp, tive acesso a internet  ainda nos anos de 1994 e em 1996 já tinha tido a oportunidade, na casa do amigo Alexandre C., de ver fotos de Jack Yount no BMEzine, quando esse estava em seu início. Essas madrugadas eram incríveis, e os links vinham das revistas impressas. Devo ter uma coleção de uns 1000  exemplares de pelo menos uns 10 títulos diferentes, alem das publicações nacionais e sul-americana.

FRRRkguys: Já ouvimos que você foi uma das primeiras pessoas no Brasil a fazer experimentos com implantes subdermais. O que você pode nos contar sobre isso?
Trash: A “Easyriders Tattoo” começou a publicar um título dedicado as novidades mais extremas e o body piercing e ali tive conhecimento em 1997 das primeiras experiências de Steve Haworth com os implantes 3D. Ao mesmo tempo, alguém me deu, numa noitada em Campinas, um cartão de um body piercer húngaro de São Paulo, que fazia experiências incríveis com piercings de superfície. Acordei no dia seguinte dei um telefonema para a loja em SP e marquei um horário no fim do mesmo dia, achando que faria um piercing de superfície à la transdermal, que eu já tinha visto mas ainda não tinha conhecimento da técnica de aplicação. Chegando lá o Misi (Karai Mimali, hoje tatuador renomado na cidade de SP) achou que eu queria um implante no pulso e eu prontamente aceitei! Usando técnicas semelhantes ao genital beading, saí de lá com o que acredito ser o primeiro implante 3D subcutâneo da América Latina, em torno de agosto de 1997. Com um pouco mais de estudo, após acesso a um computador, ao BMEzine e a equipamentos cirúrgicos vendidos pra mim pelo hoje tatuador Leo Lisboa, na segunda vez, Misi implantou 5 esferas de aço de 6 mm de uma vez, por um só corte, na parte de trás do meu braço,  acho que já em 98. Em 99 tive acesso a uma placa de teflon, de onde tiramos um captive bead implantado no meu braço,  um barbell circular implantado na piercer campineira Cris Mofatto e uma mini “costela” que implantamos em 2000. Nesse mesmo ano passei por um procedimento com Luka Zpira, implantando 3 meia esferas de 12 mm de altura na frente do braço, das quais resta somente uma. Nessa época o Brasil viveu algo como uma febre da modificação,  com os programas de domingo mostrando sempre as poucas convenções e os “curiosos” freaks. Surgem nesse período diversos praticantes, especialmente em São Paulo, popularizando relativamente essas modificações por mais ou menos uma década, sendo que as pessoas pareciam, inclusive, ver essas mods de forma até mais comum do que hoje. Quando Steve Haworth veio ao Brasil a alguns anos atrás, tive a oportunidade de receber mais dois implantes de silicone feitos pelo pioneiro. Ainda não tenho nenhum trabalho do Emilio Gonzalez, que já realizou trabalhos em amigos meus e com certeza, se tiver a oportunidade, ainda terei mais implantes.

Primeiro registro de implante subdermal no Brasil por Misi em 1997.
Primeiro registro de implante subdermal no Brasil por Misi em 1997.
Trash e Lukas Zpira conversando sobre seu implante.
Lukas Zpira realizando o implante em Trash no começo do 2000.
Lukas Zpira realizando o implante em Trash no começo do 2000.
Lukas Zpira realizando o implante em Trash no começo do 2000.
Trash com Steve Haworth no Brasil em 2014

FRRRKguys: Você vivia próximo de pessoas ligadas com a suspensão corporal, chegou a passar pela experiência? Se sim, como foi? Se não, por quê?
Trash: Sim, também posso quase afirmar que a primeira suspensão realizada em terras brasileiras foi um superman, realizada pelo Filipe Espindola no Schinke, na cidade de Campinas. O André Meyer já tinha sido suspenso nos EUA, mas o Schinke foi o primeiro a subir por aqui. Algum tempo depois ajudei o Filipe com a primeira suspensão do Roberto Lagartixxxa Medeiros,  para comemorar seus 18 anos. Roberto ficou bem conhecido no meio durante os anos 2000, devido a seu site aos moldes do BME, suas modificações como especificações,  alargamentos, língua bipartida e suas intensas performances de suspensão corporal pelo Brasil. Minha experiencia pessoal aconteceu nos anos de 2006, quando fizemos uma pequena SUSCAMP, com os piercers Cris Mofatto, Thiago Freak Devil (hoje Hematoma Tattoo) e o Rogerio Gilo (hoje ilustrador e artista plástico), que subiram o Giba ( um okeepa), o Peco (pelos joelhos) , o próprio Gilo (joelhos também) e eu, num suicide. A experiência toda foi incrível, apesar de ter ficado poucos minutos no ar antes de desabar psicologicamente, foi uma experiência bem intensa que não me importaria em repetir. Fiz também um pulling (cabo de força) com o Peco em meio ao Rio Atibaia, quando tivemos que interromper o jogo para fugir de uma tempestade e do possível alagamento de onde estávamos. Bem intenso também. Acho que todo mundo deveria tentar uma suspensão ao menos uma vez na vida.

Primeira suspensão corporal no Brasil realizada por Filipe Espindola. Foto: reprodução/BMEzine
Primeira suspensão corporal no Brasil realizada por Filipe Espindola. Foto: reprodução/BMEzine
Suicide suspension de Trash
Suicide suspension de Trash

FRRRKguys: Você tem formação em Artes pela Unicamp. Qual a importância, em sua opinião, de ter uma formação em artes para quem trabalha com tatuagem?
Trash: Eu acho que todo mundo deveria ter uma formação paralela em artes, não só quem fosse trabalhar na área. A arte abre a mente, derruba conceitos, funciona como um diário social e político de sua era, as técnicas, os temas, é um universo abstrato (a semiótica da arte, a semântica das palavras, as teses e antíteses dos artistas) sem volta, todo mundo tem direito a uma formação lúdica e abstrata, para poder respeitar as diferenças e ver o mundo por diversos ângulos. Se falarmos especificamente sobre tatuagem, o conhecimento sobre arte, literatura, cinema, sociologia, ética e estética, faz com que certas escolhas possam ser feitas rapidamente e com maior coerência, dentro do universo plástico e imagético da tatuagem. Conhecimento nunca é demais e nunca é o bastante.

FRRRKguys: As pessoas quando pensam sobre os corpos modificados automaticamente se ligam com os grandes centros urbanos, no caso de São Paulo, com regiões como o centro e Rua Augusta, por exemplo. Como foi passar por esses processos de modificação corporal e começar a trabalhar na área no interior de São Paulo?
Trash: Acredito que nunca houve nenhum “atraso” entre o movimento no interior e na capital. Talvez se  esmiuçarmos direitinho veremos ainda que muitos dos “freaks” da capital, vieram na verdade do interior, então, nunca vi uma diferença tão grande na prática. Na divulgação e promoção das práticas, com certeza as figuras expoentes da cena em São Paulo tiveram maior visibilidade, enquanto no interior, pelo menos na minha região, tentávamos ficar mais abaixo do radar, sem chamar muita a atenção e documentando tudo ou quase tudo. Antes da virada do século já tínhamos implantes 3D, queimaduras, escarificações e praticávamos play piercing, cabos de guerra e suspensões. O engraçado é que no seculo XX, apesar das distâncias serem maiores (virtualmente falando), a distância também era bem menor. risos
A comunidade era menor  e invariavelmente você acabava esbarrando em alguém que conhecia alguém e por aí as conexões eram feitas. As vezes, ainda hoje, me vejo no Centro de Campinas, atravessando a rua, e do outro lado tem alguém com os olhos tatuados, tatuagens faciais, alargamentos grandes e penso, em quantos lugares do mundo esse tipo de encontro acontece também? Na cidade de São Paulo já fui perguntado, junto com outros dois amigos de narina alargada, de que tribo éramos, mesmo desconversando, o cidadão nos pagou bebidas pois queria saber mais sobre nós e nosso pequeno “grupo”, na Augusta em alguma madrugada entre 2008 e 2009.

Publicação imprensa de Campinas de 1991
Publicação imprensa de Campinas de 1991
Publicação imprensa de Campinas de 1991
Publicação imprensa de Campinas de 1991

FRRRKguys: Somos do tempo do BMEzine, IAM, Piel Magazine, qual a importância desses veículos em sua vida?
Trash: Vou falar primeiro das revistas. Apesar de você não ter citado, o mercado editorial de tatuagem era imenso no inicio do seculo XXI, nunca vi tantas publicações dedicadas ao mesmo tema, nem no universo da música, que teve sempre grande influência na minha vida e nas escolhas que fiz nela. Haviam talvez uns 4 ou 5 títulos nacionais ao mesmo tempo, que morreram junto com todo mercado editorial com a popularização da internet e isso com certeza influenciou demais, para bem ou para mal, o mundo e os rumos tomados pela tatuagem no Brasil, assim como as convenções também tiveram esse papel, tanto que começam anualmente, primeiro somente em SP, ainda nos anos 90, depois algumas capitais pelo Brasil e hoje em dia, uma por semana no mínimo, todos os meses, o ano todo, em cidades que vão de  3000 habitantes a cidades de 20 milhões de pessoas. Durante anos, anos mesmo, pelo menos uns 12 (de 1998 a 2009), o BME era a página inicial do meu Internet Explorer. risos
Meu primeiro perfil dentro do IAM era algo como numero 27, Shannon Larratt sempre foi considerado por mim como um amigo e fiz vários amigos virtuais e reais dentro da comunidade do IAM.  Dentro do BME e do IAM, participei de fóruns fechados sobre implantes, piercings de grosso calibre, brandings e cuttings. Tive dicas preciosas de profissionais expoentes em suas práticas de modificação corporal, além de poder conhecer outros tantos personagens mais profundamente, como o falecido Stalkin Cat ou o Lizardman. O BME foi responsável praticamente sozinho, pelo grande estouro da modificação corporal e sua popularização ampla no século XXI. O BME tambem é com certeza a primeira rede social do planeta, inclusive com um “messenger” e outras características visionárias concebidas pelo Shannon (como as playlists ou a possibilidade de fazer postagens aonde as pessoas poderiam responder, um tracker, onde você podia ver quem entrava na sua página). Cara, aquilo lá merecia ter se tornado um país! Tinha a impressão de que estávamos tomando o planeta. Posso ponderar que essa é uma das primeiras experiências com a realidade virtual, a primeira rede social propriamente dita e  também a primeira decepção/percepção da bolha virtual tão comum e em voga nos dias atuais… Não tomamos o planeta não…

FRRRKguys: Como você enxerga a relação dos corpos modificados e recepção na sociedade hoje?
Trash: Eu achava que o mundo caminhava para uma maior aceitação, não só dos corpos modificados como da individualidade de cada um dentro da nossa sociedade, mas atualmente passamos por um retrocesso tamanho que já vejo novamente alguns segmentos nos olhando como se estivéssemos ainda a margem da sociedade, de onde nunca deveríamos ter saído, acham eles provavelmente… Mas veja bem, quantos anos de idade tem essas pessoas? 70? 80? E até quando elas vão viver? Para sempre? Não, não vão viver para sempre e espero que suas velhas ideias morram com eles, então não há mais como forçar a pessoa modificada a margem da sociedade, esperemos que os iluminados das próximas gerações (que já não são nem a minha, falida e nem a sua, que também falhou) consigam refutar o obscurantismo e restaurar padrões éticos e sociais que vinhamos experimentando nas últimas décadas.

FRRRKguys: Quais as principais mudanças que você consegue perceber de quando começou a se modificar para hoje?
Trash: Ao mesmo tempo que vejo muitas, vejo muito poucas também. As pessoas continuam a serem atraídas da mesma forma a modificação por um desejo primal que pode se traduzir de inúmeras formas, desde rebelião e revolta, a celebrações de vida ou a retomada de rituais de passagem amplamente abandonados na sociedade ocidental contemporânea, entre outras centenas ou milhares de motivos que levam as pessoas a se submeterem a processos normalmente doloridos e permanentes. A popularização  trouxe  a ideia da modificação corporal e talvez do próprio corpo (mas acho que daí me perderia na discussão) como um item, uma tatuagem é vista como um tênis, relógio ou um novo modelo de celular, um acessório, um perfume. Já foi percebida pela sociedade como um estigma, uma maldição obsessiva, algo que deveria ser evitado, perigoso, quase que proibido para os humanos comuns, seguidores das conformidades da sociedade de consumo. De uns anos para cá, a maldição passou a ser vista e vendida como um item de consumo, pasteurizado, jogado novamente a sua forma mais simples (linhas e monocromáticas) para que sejam feitas rapidamente, com baixo custo, copiadas exaustivamente, compartilhadas exaustivamente, o que antes de ser arte, era uma forma de rebeldia, depois virou arte, continuou sendo um forma de expressão popular para passar algum tipo de ideia. Hoje se torna uma marca de massificação, até a ideia da permanência da tatuagem parece sem importância agora… Tudo gira em torno da arte, dos artistas, de quem vai mais longe. Esses devaneios me fazem questionar como as pessoas virão suas tatuagens daqui há trinta anos… Aquela que você escolheu aleatoriamente num flashday, só porque queria uma tattoo e o preço era acessível ou aquele desenho que tem um valor inestimável para o seu artista de cinema preferido ou ainda aquela baita tatuagem que levou 20 horas numa convenção para o artista demonstrar suas técnicas e domínio sobre um estilo, mas que você não se lembra o que é, o que significa e muito menos o nome de quem fez. Entrei no universo das tatuagens e modificações corporais a partir de 1987 e passei pelo que talvez seja a era mais interessante da modificação corporal desde a invenção da tatuagem ou piercing, diversas vezes dei liberdade a meus artistas para que tatuassem no meu corpo o que tivessem vontade naquele dia, de acordo com o orçamento que eu podia dispender. Tudo para mim girava em torno do próprio ato de tatuar a si próprio, o auto-conhecimento, o dedo do meio em riste para a sociedade da época (e a de hoje também) e o aprendizado in loco. Nessa época não haviam cursos, workshops, videos no youtube, dicas de tatuadores, escolas de tatuagem fajutas… Não tinha quem quisesse te ajudar… Nenhum tatuador queria outro tatuador por perto, nem que você pagasse para aprender, era necessário a construção de uma relação, empatia, paciência, dedicação. E dinheiro, para que você pudesse se tatuar e estar por perto. Só existia um jeito de aprender, de estar lá e de ser introduzido ao universo da prática e esse jeito era se tatuando com os artistas que você admira. Tenho tatuagens que são tesouros para mim, como costas, pernas e algumas nos braços além do preenchimento do mesmo por Mauricio Teodoro, dragão na costela e barriga por Ivan Szasi, antebraço por Paul Booth, Bernie Luther, Chris Nunez e Mauricio, tebori de Toshio Shimada, tatau de Inia Taylor, fora a arte dos meus amigos, dos meus mestres e ainda outras preciosidades da minha coleção pessoal, como os implantes dos pioneiros e tal.

FRRRKguys: Quais seriam as suas dicas para quem pretende começar a trabalhar na área da tatuagem?
Trash: Desenhar, desenhar e desenhar… Procurar um tatuador experiente que te ensine como era ser tatuador quando ninguém te incentivava a ser tatuador. Quando não era uma opção de trabalho para arquitetos, publicitários, médicos, artistas, dermatologistas. Qquando era fora da lei, para que a pessoa entenda que não é só arte ou um adorno, você vende tatuagens, terá que atender ao mesmo tempo a cliente da Vivara que quer tatuar o infinito da sua pulseirinha de ouro até o cara que acabou de sair do sistema prisional. Então, não é um estilo de vida que se aprende na escola. Outra coisa, mais do que arte, tatuagem é um serviço de saúde pública, você pode ter contato com doenças que podem trazer diversos problemas a vida dos envolvidos. Então tatuagem não pode ser vista como uma moda passageira,  porque ela, em si, não é passageira. É sim uma decisão muito séria a ser tomada na sua vida, não devendo ser tratada de forma leviana!

0 Flares Twitter 0 Facebook 0 LinkedIn 0 Pin It Share 0 Reddit 0 Email -- 0 Flares ×

1 thought on “Uma profunda conversa sobre a história da modificação corporal com Trash”

Os comentários estão fechados.