O preconceito contra a modificação corporal ‘Tá na Tela’ da Band

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Foto: reprodução / Band

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Temos a sensação de que a televisão brasileira é uma das coisas – dentre tantas – mais prejudiciais para a saúde psicofísica das pessoas. É alienante no pior sentido da palavra. Escrevemos sobre a tv brasileira, pois é ela o nosso referencial é esse o contexto geográfico em que estamos inseridos.

Os programas de auditório, em sua maioria, trabalham com a idiotização de seus telespectadores e assustadoramente, fazem isso parecer legal para quem vê e rentável para os donos do negócio. Não somos estudiosos da televisão, não entendemos exatamente como funcionam as engrenagens dessa máquina, mas conseguimos facilmente entender quando tentam nos tornar idiotas. Há de se dizer, nós não somos e não admitimos ser tratados como idiotas.

A maior parte da história da modificação corporal contemporânea tem sida acompanhada e marcada por essa mídia vil, ou mais correto dizer, pelo mau uso que se faz dela. Veja bem, mau uso em nosso entendimento de grupo de pessoas que vem sendo sequencialmente marginalizado, oprimido, silenciado e subjugado por esse sistema de informação. Todavia acreditamos também que a televisão possa ser de grande utilidade e há exemplos concretos disso. Não estamos aqui para demonizar essa tecnologia, estamos aqui questionando como o seu uso tem sido negativo na abordagem que vem fazendo sobre as modificações corporais. Estamos aqui reivindicando uma revisão nesse modelo equivocado de falar sobre as nossas práticas de usos do corpo, que via de regra são culturais.

Se a ideia desses modelos de programa de televisão é – de algum modo – inovar, eles falharam. A falha a qual nos referimos não é só no sentido de não apenas inovarem, mas também de caráter. É igualmente uma falha no sentido de errarem ao desumanizar pessoas por conta de suas práticas culturais, de seus corpos e de suas particulares como sujeitos.

Historicamente seres humanos considerados diferentes, exóticos, selvagens e monstros foram exibidos como atrações em feiras, circos, zoológicos, universidades e, como agora, em programas de auditório. A lógica de desumanização do outro é exatamente a mesma e que isso fique bem claro. O discurso que fica na sombra desses programas de auditório, é o mesmo que pode transformar corpos com deficiência ou corpos não brancos, não heterossexuais, não cisgêneros e não ocidentais em atração de show de horrores. Recordemos de Saartjie “Sarah” Baartman (1789-1815) colocada como atração de circo por conta de seu corpo africano e rememoramos também o inglês Joseph Carey Merrick (1862-1890), que também se tornou figura de circo por conta de seu corpo deformado pela neurofibromatose tipo I. Além deles, tantos e tantas outras pessoas. Segundo consta em registros, em 1958 um Zoológico na Bélgica tinha como “atração” uma criança africana. Dentro dessa discussão, o genocídio nazista é um exemplo que não pode ser descartado, através dele vimos que quando o corpo que é diferente do padrão desejado – no caso, do modelo ariano – deveria ser exterminado. Será que só eliminamos essas práticas hediondas na teoria, uma vez que esses programas de auditório visivelmente articulam a mesma estrutura de opressão, violência e exploração? Se os circos de horrores e feiras que exploraram todos esses corpos que fugiam da normatividade encontraram fim através da pressão da sociedade, principalmente de gente ligada aos direitos humanos, será que chegaremos um dia que os tais telespectadores vão também não aceitar mais assistir pessoas sendo sumariamente abusadas publicamente? Será que esses programas de auditório nos idiotizaram ao ponto de não conseguirmos perceber que ao dar audiência para eles, também estamos sendo coniventes com essa reprodução de violência?

Estamos certos de que muitos irão dizer, “mas se aceitou participar, tem que tolerar tudo”. Para essas pessoas a gente diria: vocês estão errados. Vocês erram ao tentar justificar a violência do opressor e não usar de empatia para com a pessoa que é oprimida. Falando com um pouco de experiência prática, os convites para participar de pautas – seja na televisão, jornal, revista ou websites – nem sempre são claros, no sentido de que avise que haverá deturpação, manipulação e sátira. Normalmente ele vem camuflado com a justificativa de que a ideia é abordar o assunto das modificações do corpo para romper com tabus, para esclarecer dúvidas e informar a população, de verdade, acreditamos que esse exercício precisa acontecer, para que a visibilidade sobre essas práticas seja menos estigmatizada e rodeada de inverdades e preconceitos. Mas ao que parece, essas mídias, em sua maioria, mentem e ao fazer isso, reforçam todos os tipos de preconceitos possíveis. Há casos mais extremos em que a entrevista não chega nem a acontecer, situações em que os jornalistas enfiam palavras onde não existem e distorcem ao máximo tudo o que foi dito. A matéria escrita por Chico Felliti para a Folha de São Paulo é bem emblemática e não é caso isolado. Recomendamos a leitura dela, pois foi uma situação onde os entrevistados pediram para que o assunto, a modificação do corpo, fosse tratado de forma não leviana. É um caso onde houve uma explicação – antes da entrevista acontecer – sobre o histórico da imprensa em prestar desserviços para a comunidade da modificação do corpo. Aquilo que falamos antes sobre falha de caráter se aplica aqui.

CLIQUE PARA LER: http://www.frrrkguys.com.br/tatuadores-e-perfuradores-de-sp-temem-efeitos-de-uma-imprensa-sensacionalista/

Não conhecíamos o programa Tá na tela da Band e tão pouco o jornalista Luiz Bacci, se nós não conhecíamos o que dirá de quem não vive no Brasil... Tanto um, o programa, quanto o outro, o apresentador, não são originais em absolutamente nada e pior, colaboram com a reprodução de estigmas sociais, se aproveitam da vulnerabilidade das pessoas para construir suas pautas, subestimam a capacidade intelectual de seus telespectadores e, acham isso tudo muito normal. Nossa mais sincera opinião, deprimente.

O caso de Punky, que participou do programa Tá na tela ontem, é mais um desses que nos causa ojeriza e vergonha. A Band teve o trabalho de trazer um garoto da Alemanha e o oferecer ao público como a mais nova aberração do dia. É muito claro que não existia nenhuma outra lógica naquele programa além de usar a imagem do corpo do menino de forma vexatória e discriminatória. Eles não queriam informar, não queriam propor reflexões e tão pouco estavam preocupado em proteger – o mínimo que fosse – a figura do rapaz.

Assistimos tortuosos 22:81 de programa e não vimos nenhum sentido naquela violência psicológica e simbólica gratuita. O programa chegou no extremo do grotesco ao oferecer R$50,00 para alguma mulher beijar a boca de Punky. Estamos enganados ou o jornalista estaria também objetificando a mulher? Cruel, muito cruel. O apresentador cumpre bem o seu papel, desumanizou completamente o jovem. Zomba também de seus possíveis espectadores e daquelas pessoas que circulavam o entorno da gravação.

Muitas questões surgiram em nossa cabeça. Qual o real interesse em colocar o Punky exatamente no Centro de Tradições Nordestinas? Estaria o programa fazendo algum tipo de alusão de que aquela gente poderia, de algum modo, se chocar mais? Estaria o programa sugerindo que os nordestinos não lidam bem com outras possibilidades de existir? Por exemplo, quando o apresentador diz sobre o Punky que “se você chega nesse lugar sem o capuz, daria uma confusão danada”, ela estaria suscitando exatamente o que? Seria por acaso que aquela população – nordestina – agiria violentamente contra o garoto? Achamos ofensivo com o garoto, achamos ofensivo com os nordestinos, consideramos que se tratou de um ciclo absurdo de violência das mais variadas possíveis. Por isso dizemos, não é porque o garoto aceitou participar do programa, que ele é obrigado a ser usado, explorado e abusado daquela maneira.

Assistindo o programa fica muito visível que nem todas as pessoas se chocavam tanto quanto eles gostariam, por mais que o apresentador não economizasse em suas investidas, forçando situações desagradáveis e de choque de valores. Os comentários mais depreciativos e expressões de maior rejeição eram repetidas sem cansar. O apresentador Luiz Bacci diz em determinando momento que “falar que é algo mais assustador que já mostrou na televisão, é pouco”, acreditamos que está faltando para o senhor jornalista – e não é pouco – uma coisa que se chama autocrítica acompanhada de bom senso. O programa e a forma da abordagem sobre temas que visivelmente essa equipe está despreparada para lidar, foi de longe a coisa mais assustadora mostrada na televisão. Eles nos provam que o circo de horrores não foi eliminado da nossa história, ele apenas mudou de formato. A violência contra pessoas específicas está toda presente ali, para quem quiser ver.

Todos os programas sensacionalistas já fizeram exatamente a mesma coisa à exaustão. Torcemos daqui para que chegue o dia em que a população não aceite mais ser idiotizada e nem ver seres humanos serem desprezados daquela maneira. Que essa mesma população não aceite ser retratada na televisão como desprovida de inteligência para lidar com a diversidade, não aceite ser comprada para encher bolso de gente rica através de uma falsa ideia de entretenimento, que na realidade é produção e reprodução de violência pura.

Luiz Bacci, em dado momento, diz que tem uma grande pergunta sobre o Punky, “como bebe água, como come e come escova os dentes“? Nós temos uma grande pergunta para o jornalista, como um sujeito – aparentemente – instruído consegue ter apetite ou pode dormir a noite quando foi capaz de tratar o próximo com tamanha falta de respeito? Não que a gente queira aprender, mas só para tentar entender essa lógica absurda de existência.
Hoje toda a equipe do programa comemorava pelo Twitter os picos de audiência e o quanto ganharam a competição com outros grandes canais. Muitos cifrões estão rodeando esse sistema. E isso é muito errado, não há nada para comemorar.

Gostaríamos muito de recomendar que vocês contassem quantas vezes o discurso, isto é, a fala do Punky aparece no programa. Ela quase não aparece e não é por conta de idioma, mas sim de idiocracia. Nesse monólogo vil, o silenciamento está as claras.
Fica a prova de que maior que as perfurações das bochechas do Punky, é a insensatez e estupidez humana. Parabéns Band e envolvidos no programa, vocês conseguiram descer mais um nível na escala. Os nossos corpos modificados não são indicações ou tão pouco um passaporte que dê o direito de jornalista algum ou pessoa alguma nos desrespeitar e destratar as nossas práticas culturais. Se vocês não são capazes de lidar com a realidade de nossas existências, deixe-nos. Simples assim.

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