Remoções de modificações corporais, fundamentalismo religioso e o fetiche da normatividade compulsória

Foto: reprodução / Dermablend

“A nossa história com as modificações corporais é anterior a colonização. A colonização foi responsável pelo extermínio de parte dessa história. A colonização não acabou ainda.”
MANIFESTO FREAK

Quando eu era criança, vivendo em um lar fundamentalista religioso, lembro-me que em certo dia recebemos a visita de uma jovem que havia acabado de se converter. Ela tinha em seu antebraço uma cicatriz alta, em torno de quatro dedos de cumprimento, talvez um pouco mais… A jovem contava – com tom de arrependimento e melancolia – que antes ali havia uma tatuagem de uma rosa, algo que ela havia feito quando era “do mundo”. As pessoas ao seu redor olhavam e ouviam a história com certa admiração: ela havia sido salva. Aquela cicatriz – que era uma remoção de tatuagem – fazia com que a jovem se encaixasse no que se esperava de uma mulher cristã dentro dos códigos da moral e dos bons costumes. Ela atendia os desejos da normatividade compulsória. Essa história me marcou, pela cicatriz alta de seu braço e por sentir – ainda que fosse muito criança – que havia algo que não estava certo ali.

Histórias similares me atravessaram com o passar dos anos. Na adolescência e começo da vida adulta, essas histórias me alvejavam de maneira mais próxima e íntima. Amigos, amigas e amigues que se convertiam ao cristianismo em suas tantas variações e passavam a se desmodificar. No corpo, no discurso.

Sussurro: Essas experiências eram utilizadas como exemplos que eu deveria seguir. Havia uma pressão nada sútil para que eu trilhasse o mesmo caminho e me reconciliasse com a normatividade compulsória. Passasse dessa “fase”.

Qualquer pessoa com modificações corporais já deve ter ouvido incontáveis vezes a pergunta: “mas e se você se arrepender?” É um fetiche da norma.

A pergunta é – tantas vezes – acompanhada do desejo de que nós nos arrependamos e que paguemos o preço – leia-se: sofrer – pelas escolhas que fizemos em dado momento de nossas vidas. Para uma grande parte da sociedade – no espectro da esquerda radical a extrema direita –  as modificações corporais fazem parte de uma fase da juventude e que vai passar. O que rende aqui uma outra discussão sobre normatividade e etarismo, mas seguremos os dedos e as línguas.

Continuando.

Nós ousamos interferir na “ordem natural” do corpo, nós ousamos mexer naquilo que era “perfeito” e nos “enfeiamos”, assim dizem, assim pensam. Tem aquele grupo também que afirma – com profunda convicção – de que é tudo uma fase e que vamos nos arrepender sim. Como se o arrependimento – que beira o calvário – fosse o caminho natural para pessoas como nós. Veja bem…

Sussurro: Não existe nada estritamente natural sobre o corpo. Alguém avisa?

Saltamos para 2024. O fundamentalismo religioso domina a opinião pública e a política. São figuras poderosas e que buscam mais poder e dominação em todas as esferas da sociedade.  Existe uma projeção de que em 2032 o Brasil deixe de ser um país católico e se torne uma nação evangélica. É veloz. É veloz.

A comunidade da modificação corporal que não está descolada da configuração de mundo que temos, como não poderia deixar de ser, é impactada pelo fundamentalismo religioso. Igrejas de parede preta, prancha de surf e com pastores “descolados” e modificados surgem para acolher algumas pessoas de nós que foram destratadas ou excluídas de igrejas tradicionais. Cilada, armadilha e captura.

Igrejas que vendem a imagem de descoladas e que são abertas para pessoas dissidentes estão por aí movendo multidões e milhões. E movendo também e fortalecendo em igual medida a ascensão da extrema-direita, o neonazismo e o fascismo tropical. Nossos profissionais da advocacia nos alertaram para não mencionar nomes, mas procure saber… Procure saber…

Assim, temos as pessoas que se  desmodificam para se encaixarem na normatividade compulsória, mas também temos aquelas que ainda  modificadas buscam validação social almejando provar caráter ou idoneidade por meio de discursos religiosos. Como se de algum modo quisessem mostrar que o pacto com a normatividade compulsória ainda está de pé. Como quem diz, “somos diferentes mas iguais a vocês” ou na loucura da competição neoliberal que vivemos “somos diferentes e mais cristãos que você”. É, são tempos difíceis.

E a sociedade hegemônica gosta dessas coisas, ver uma pessoa freak, uma monstra, que colonizada, verbaliza versículos bíblicos e que servem para mostrar algum tipo de exemplo. O da superação ou da salvação. “A pessoa é esquisita mas é até uma boa pessoa, vai na igreja”… Ir na igreja não é e nunca foi sinônimo de que uma pessoa tenha caráter, precisamos ter isso muito bem resolvido em nossas mentes. Só para constar.

Pastores e pastoras com modificações corporais mais nos assustam do que ao contrário, como escrevemos AQUI em 2023. Assistir toda entrada do fundamentalismo religioso no meio da comunidade da modificação corporal mais nos rouba a tranquilidade do que o contrário. E por essas e outras que sempre chamamos – enquanto chamamento mesmo – pela comunidade freak, onde o fundamentalismo religioso é entendido enquanto uma ameaça (não só para nós, pessoas dissidentes, mas para nossa cultura) e assim precisa ser visto e compreendido enquanto fenômeno social de colonização, dominação e controle.  

O fetiche da normatividade compulsória e da sociedade hegemônica é nos ver e nos ter sem as nossas modificações corporais. Todo ano temos um vídeo novo de alguma marca de maquiagem removendo temporariamente as tatuagens de alguém freak demais. No início a gente olhava como algo inofensivo e até divertido, mas a insistência na produção desse tipo de conteúdo aponta para uma direção, dispara hipóteses e sinaliza para essa fetichização sobre nós. Precisamos, em algum outro momento, escrever de modo mais aprofundado sobre isso, inclusive analisando vídeo, contexto e reação das pessoas que consomem esses materiais.

Sussurro: vocês sabem que algumas pessoas ainda hoje precisam cobrir com maquiagem as suas tatuagens para conseguir trabalho? Vocês sabem que algumas pessoas precisam cobrir com band-aid o piercing ou o microdermal para poder trabalhar ou estudar, certo?

Agora temos os vídeos de remoções de tatuagem com laser. Nova tendência que alimenta a mídia genérica e hegemônica. São eles que nos provocaram a escrever essa reflexão.

Cada pessoa sabe onde o sapato aperta. Eu mesma, em certo momento da vida, já precisei me desmodificar em 2006 para tentar conseguir acessar o mercado de trabalho formal. A reflexão posta aqui não é para julgar as decisões que as pessoas tomam sobre seus corpos, inclusive compreendemos que se desmodificar é ainda se modificar, como escrevemos AQUI em 2016. O ponto é outro, é problematizar o quanto essas escolhas de se desmodificar são frutos de uma não escolha imposta pela normatividade compulsória. É uma captura. É uma assimilação. Porque não muda apenas o corpo, mas o discurso e atende interesses bem específicos e muito questionáveis. Sobretudo quando este vem carregado e inflamado pelo fundamentalismo religioso que está cada vez mais íntimo e mesclado com o fascismo. A gente não sabe onde começa uma coisa e termina a outra. É uma amálgama.

Para nós freaks e com inclinação para construção da comunidade e teoria freak, como diz a canção: “é preciso estar atento e forte”.

Sussuro: Vocês não vão nos capturar!

Adendo: Pessoas freaks têm o direito inalienável ao espiritual, ao metafísico, ao celestial e ao abraço das cosmovisões. Pessoas freaks têm o direito ao sagrado porque são igualmente sagradas.