10 coisas para não se fazer com uma pessoa com modificações corporais

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É óbvio dizer que todas as pessoas merecem respeito e um tratamento que preserve sua dignidade. Ao que parece estamos um pouco (bastante, no caso) distantes disso. Estou há pouco mais de duas décadas vivendo na comunidade da modificação corporal. Evoluímos em diversos pontos, mas percebo que alguns tipos de atitudes discriminatórias, preconceituosas ou sem noção seguem firmes e fortes atravessando o tempo. Acredito que precisamos – urgentemente – nos educar – enquanto sociedade – e uma maneira de fazer isso é dizendo o que não gostamos e como queremos que nos tratem. Parece óbvio, e é, mas algumas pessoas aparentemente têm dificuldades em entender. Assim, aqui estou eu, de forma didática tentando explicar mais uma vez, até que – quem sabe um dia, talvez – entendam.

Falo em primeira pessoa, falo por meio de minhas experiências particulares, mas ecoando em minhas palavras as vivências de tantas outras pessoas freaks da nossa comunidade, que tenho podido compartilhar experiências. Falo por uma legião de gente esquisita.

Segue então abaixo uma lista de 10 coisas que não são agradáveis e que você não deveria fazer com uma pessoa com modificações corporais.
Vocês perceberão no texto uma certa interseccionalidade com outras causas e essa parte espero que sirva para a comunidade da modificação corporal tirar algo de lição. Espero que esse material ajude em seu processo de desconstrução. Espero que consigamos – aos poucos – ir melhorando enquanto gente e enquanto coletivo. Ainda há tempo, evolua.

Boa leitura!

É muito ruim e desagradável quando você está dentro de um transporte público, na fila do banco, na mesa de alguma lanchonete e uma pessoa – que não te conhece – chega tocando o seu corpo sem consentimento algum. Algumas vezes é assustador porque você não percebeu a pessoa. A maioria das vezes é constrangedor, porque a pessoa não falou com você, mas se sentiu no direito de te tocar. Sem contar os casos onde a modificação corporal é nova e está no processo de cicatrização e não pode ser tocada. Então, por favor, se você ficou com muita curiosidade em tocar para sentir a modificação corporal de alguém que não conhece, fale educadamente com a pessoa, espere algum tipo de consentimento. Mas nunca, nunca toque alguém sem receber o consentimento prévio.

Uma prática comum no mundo inteiro é a de que em transportes públicos as pessoas tirem fotografias – sem permissão prévia – de pessoas modificadas. Essas pessoas acham que não percebemos, mas se enganam. Até mesmo porque na maioria das vezes os disfarces são toscos, sem contar os flashes que não são desligados e ficamos pensando “isso não pode estar acontecendo”. Algumas pessoas tiram essas fotos como quem fotografa animais exóticos em parques, o que é bem ruim. Outras tiram essas fotos para compartilhar em grupos ou expor em redes sociais para mostrar o quão bizarros somos, o que é pior ainda. Em 2014 denunciamos AQUI o caso do Guilherme Troiano, fotografado e exposto em rede social para ser ridicularizado.

Temos uma teoria de que as pessoas de fora da comunidade da modificação corporal tenham por crença que alargamos as nossas orelhas unicamente com a intenção de que elas possam enfiar os dedos ou objetos pela fenda dos nossos lóbulos. Mas é importante avisar que não é esse o nosso objetivo. Não é agradável e na maioria das vezes é constrangedor porque isso sempre acontece para reforçar o quanto os nossos corpos são indesejados. É comum que aconteça a ação de transpassar algo em nossas orelhas e a chamada para que todo mundo olhe o “grande feito”. Nós não somos objetos de bobo da corte e nem queremos servir para o seu entretenimento vil. Além do que, quando isso acontece, pode nos machucar e dependendo do nível da “brincadeira” rasgar as nossas orelhas. Não faça isso, principalmente se você não conhece a pessoa ou não tem intimidade suficiente para tal.

Desde que comecei a modificar o meu corpo nos anos 90, percebo o pelotão de seguranças me seguindo em alguns espaços. Já aconteceu em Shopping da classe média paulistana, já aconteceu em rede de supermercado famosa (esse episódio foi no ano passado), mas já aconteceu nas lojinhas e mercados das periferias também. E sabemos que tudo se agrava considerando a cor que temos. Se faz importante pontuar que embora seja super desagradável passar por isso, eu sou uma pessoa branca com o corpo modificado e tenho plena consciência que as violências que sofro são atenuadas por conta disso… Não chegou perto das violências que assistimos com a população negra, que inclusive morre asfixiada em supermercado. Como o caso gravíssimo do jovem Pedro Gonzaga, que era tatuado, diga-se de passagem.

Pedro, presente!

Não saberia contar quantas vezes estive em um espaço público, tranquilamente andando na rua ou tomando um suco e uma pessoa ou um grupo de pessoas (normalmente em grupo) chegam em mim e começam um verdadeiro espetáculo de show de horrores. Apontam, falam alto, riem, fazem cara de nojo e dor, fazem mil perguntas, falam mais alto para que as pessoas ao redor percebam e, por fim, reforçam o quanto desprezam ou acham o meu corpo asqueroso. Normalmente esse tipo de coisa é somada de toques sem consentimento. Não façam isso. É muito, muito, desagradável. Você pode achar o meu corpo asqueroso, você pode não gostar do que faço e está tudo bem. O que não está bem é se criar uma situação vexatória, expor alguém ao ridículo por conta do seu sistema de crenças. Viva a sua vida e deixe que eu viva a minha, se possível, em paz.

A maioria das pessoas opera com base na lógica dos estereótipos, o que é um grande problema. É problemático porque é bastante comum que estereótipos sejam falsos. Por isso precisamos trabalhar arduamente para que possamos nos desconstruir e entender que cada pessoa é uma pessoa. Ela – a pessoa – pode parecer alguém ou alguma coisa de acordo com a sua perspectiva de vida, mas é só a sua perspectiva de vida e talvez – acredite – não contempla o que a pessoa seja. Dito isso, se você tem alunes, funcionáries ou pessoas com modificações corporais em suas relações sociais, tente quebrar a lógica do estereótipo. Se você trabalha com recursos humanos, contratação de pessoal ou faz entrevistas para que estudantes entrem em cursos superiores, não julgue a pessoa pelo corpo que ela tem e pelo corpo que ela é. Não superestime e nem subestime. Uma pessoa com modificações corporais é só uma pessoa com modificações corporais. Não é mais e nem menos do que qualquer outra pessoa. E nunca se esqueça que as pessoas que mais prejudicaram as nossas vidas na história humana, não tinham tatuagens, nem piercings, nem escleras pigmentadas e tão pouco implantes. Pense nisso!

Essa parte é aquela que dói falar… Sabemos que as pessoas que são consideradas anormais, abjetas, esquisitas ou que estejam fora demais dos padrões, são expulsas de casa – ou assassinadas – pelas próprias famílias. No passado, essas pessoas eram mortas, jogadas na rua ou trancafiadas em hospitais psiquiátricos. No presente, a exemplo da população LGBTQ+, mortes e expulsões de casa pela própria família seguem em curso. Dentro da comunidade da modificação corporal essa é uma história que se repete. Já ouvi incontáveis relatos de pessoas que começaram a se modificar na adolescência e que foram expulsas de casa ou que foram violentamente agredidas fisicamente. A tortura psicológica é bastante comum. Quando comecei -nos anos 90 o meu processo, não sofri agressão física, mas vivi situações ruins. É horrível saber que 20 anos depois, adolescentes seguem sofrendo violências físicas e psicológicas somente porque modificam seus corpos. Quando é que vamos começar a aprender com os erros do passado?

Certa vez ouvi de um amigo que ele tinha passado por uma situação humilhante na frente do filho, por conta de suas modificações corporais. Quando entrevistei Andre Fernandes para o Singularis em 2016, ele contou a situação constrangedora que passou no hospital com seu filho recém nascido. Com 15 dias de vida na época, a criança teve uma convulsão, e funcionários do hospital desconfiaram que Andre e a mãe eram viciados em drogas por conta das modificações corporais. Foi preciso apresentar diversos exames. São histórias que tenho ouvido ao longo do tempo… Escolinhas que destratam as famílias com pessoas modificadas. Os dizeres grosseiros na rua, os apontamentos e incontáveis comentários em redes sociais desconfiando da capacidade de cuidar e de amar das mães e dos pais modificados. É como se a nossa humanidade fosse negada a tal ponto que se pudessem nos esterilizariam.

É muito comum e frequente que escolham a imagem de uma pessoa com muitas modificações corporais e façam memes e publicações para mostrar que aquela pessoa fracassou na vida, que nunca vai conseguir um emprego bom ou que seja uma pessoa que moralmente falhou. Teve o caso bastante emblemático em 2016 do Posto de Atendimento ao Trabalhador de Rio Claro que denunciamos AQUI. Na época o PAT fez uma publicação no Facebook zombando de pessoas com modificações corporais, afirmando que não conseguimos trabalho. Por sorte, estamos vivendo agora o tempo em que as empresas estão trabalhando por meio da perspectiva da inclusão e cada vez mais contratando pessoas diversas. Quem não entendeu ainda essa mensagem, precisa urgentemente se reciclar.

Você está doente e vai comprar remédio na farmácia e a pessoa que te atende começa a fazer um interrogatório sobre cada modificação corporal que consegue ver. E investiga as que não pode ver também. Você vai passar sua compra no supermercado, a caixa não te atende e fica fazendo inúmeras perguntas indelicadas e falando alto, chamando atenção de todo supermercado. Você responde tudo educadamente, ela diz que “essas coisas” todas parecem doenças. Você vai no hospital porque não se sente bem, o médico insiste em querer saber se você bebeu alguma droga e na saída te entrega um panfleto com “Jesus te ama”. Fui comprar remédio para meu cachorro que estava doente na época e o dono do petshop não me vendeu e se mostrou extremamente desconfortável com a minha presença. Teve também a vez que fui fazer um B.O por conta de um furto e o policial que me atendeu ficou insistindo em querer saber se eu consumia drogas e deixando a minha solicitação de lado. Taxistas que não param ou que preferem que você pegue outro táxi, mesmo depois que você já entrou no carro. Tem motorista da Uber que cancela a viagem quando te vê esperando na rua. E tantas outras vezes que só queria comer um lanche em paz, mas que só foi possível depois de desviar de uma metralhadora de olhares hostis e comentários maldosos. E a pergunta que fica é: quando é que vamos aprender com os erros do passado?

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