A artista Priscilla Davanzo fala sobre seu novo trabalho

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foto patricia cecatti(pour être plus belle et efficiente, 2005. Foto: Patricia Cecatti)

A artista Priscilla Davanzo vem ao Brasil com um novo trabalho, conversamos com ela para saber sobre isso e outras coisas mais. Confira abaixo.

 
T. Angel: Você retorna ao Brasil depois de morar por algum tempo em Portugal. Como é olhar para o nosso país com uma certa perspectiva de distanciamento? Digo, por exemplo, o que é possível ver de lá que estando aqui passava despercebido?
Priscilla Davanzo: Ver as coisas do lado de fora nos dá uma nova dimensão delas. É interessante como exercício de compreender como é diferente a comunicação oficial sobre o país feita em cada uma dessas esferas. Fora isso, acho que toda as questões da imigração ficam muito ocultas quando estamos no nosso país, vendo tudo do lado de dentro. A própria situação de imigração é um novo viés a ser observado, inclusive a partir do olhar dos diferentes tipos de políticas aplicadas a cada tipo diferente de imigrante. Ao mesmo tempo existe sempre um pesar com relação à impotência com relação aos acontecimentos locais do Brasil, as brigas políticas e sociais, os medos, os riscos, as necessidades de impor-se, etc.

 

T. Angel: Em seu novo trabalho de performance “cada janela é uma paisagem diferente”, você trabalha com a autobiografia, memória e novamente com a técnica da tatuagem. A primeira pergunta que temos é, pensando nos três itens que mencionamos anteriormente, qual a sua relação particular com os azulejos portugueses?
Priscilla Davanzo: A faiança – a técnica da cerâmica branca esmaltada da qual fazem parte os tradicionais azulejos portugueses – é uma das características mais típicas da cultura portuguesa e por sua vez, da cultura colonial no Brasil. Esse trabalho tenta discutir as questões da diáspora e da imigração, vistos a partir do olhar da saudade, da memória e da aventura. E nesse caso é impossível não pensar nas milhares de diásporas históricas que acontecem entre o Brasil e Portugal. Estando em Portugal, fica muito claro o quanto da nossa cultura típica (brasileira) é, na verdade, portuguesa. A minha experiência pessoal entra numa história de viagens, de aventuras, de partidas, de saudades e de memórias. A maior parte dos brasileiros tem algum tipo de relação com essa mesma história. O Brasil é um país cuja população é quase toda imigrante. As populações indígenas, originais da terra brasileira, estão cada vez mais excluídas e massacradas, mas num processo histórico que levou mais de 500 anos. Vieram portugueses, claro, mas também europeus de toda sorte, asiáticos, africanos, enfim, populações de todos os continentes do mundo. A diáspora é algo cotidiano na história do país, de cada cidade, estado, família. A minha família inclusive: portugueses, italianos, africanos, indígenas, espanhóis. Os azulejos agora estão na minha relação direta com Portugal – onde eu não sou nem brasileira, nem portuguesa – e é impossível não pensar no meu passado, no passado dos meus antepassados portugueses. Meus avós vieram da Ilha da Madeira ao Brasil recém casados pouco antes de estourar a Segunda Guerra Mundial numa aventura ao desconhecido. A Ilha da Madeira foi descoberta e colonizada pelos portugueses na altura das grandes navegações no século XV e seus habitantes foram portugueses que se aventuraram a um mundo novo – e tropical – fora do continente europeu. E nessa altura que eu vou ao velho mundo para estudar, me deparo com isso e não penso que pode ser acaso. Não gosto de pensar num trabalho autobiográfico, porque quero que seja biográfico também de todos os participantes. É biográfico, mas de muitas pessoas diferentes. A auto-referência surge como ponto de partida apenas. A memória – especialmente a memória dos outros – é algo que eu tenho usado muito nos meus trabalhos recentes, especialmente nas séries Sob Água (Under Water, Bajo Agua) e Coleção. Então juntar isso tudo para mim é realmente algo muito interessante. E a tatuagem! Estou muito feliz de voltar à tatuagem como técnica depois de tanto tempo. Acho que será uma grande aventura. Completamente incerta, mas extremamente excitante.

 

T. Angel: Em sua palestra durante o GESMC você disse que achava muito interessante o processo que acontece antes da performance em si, citando o exemplo do ‘Coleção’ (2014) em que por alguns dias você tinha um contato com o público e também o ‘bajo agua’ (2013) em que você também traçava uma relação similar de contato. Dessa vez em seu novo trabalho, o contato com o público estará te acompanhando durante os dois dias de performance, fale um pouco sobre isso, por favor.
Priscilla Davanzo: Esse lugar da participação tem sido muito importante no meu trabalho. Recentemente eu me dei conta que muito do meu trabalho anterior já contava com essa participação. O “projeto d.n.a.”, por exemplo, onde as pessoas vem até mim para serem matriz das minhas somatogravuras. O fato da série “Coleção” e da série “Sob Água” também contarem com isso só me abriu mais os olhos para como esse processo de interação e participação é importante para a forma do trabalho final. Esses trabalhos dessas duas séries que você cita tem a participação durante o processo criativo e essa participação que me inspira, dirige e direciona a forma final da performance. Eu tenho me visto cada vez mais como uma colecionadora de histórias (e estórias) pessoais, de pessoas, de memórias,  de saudades, de afetos. E não é à toa que exatamente essa relação de afeto – mesmo que fugaz – é o que tenho estudado no Porto. Essa troca e entrega a um outro desconhecido. Tem aí uma coisa do aventurar-se. E das memórias e saudades. Então quando eu fui pensar num trabalho novo – “cada janela é uma paisagem diferente” que apresento no Sesc Santana dias 1 e 2 pela primeira vez e depois na Bienal de Arte da Maia (Portugal) em setembro – as pessoas e o contato com elas teve que estar presente. Para mim foi quase uma obrigatoriedade. Eu me via muitas vezes explicando às pessoas com muito prazer outros trabalhos meus de tatuagem. Porque eles têm essa característica de ser um desenho/texto simples, mas que traz por detrás uma discussão e de virar essa discussão na maior parte das vezes. O que eu pensei agora foi: porque não já colocar essa discussão no meio do trabalho, no meio da performance? Uma discussão que está intrínseca a quase todos os brasileiros, a questão da mistura, da diáspora, da (i)migração. Então, no caso de “cada janela é uma paisagem diferente”, a performance existe na conversa com as pessoas.

 

T. Angel: Você disse que dá pouca atenção para esse lado de sua obra em que a tatuagem está posta como técnica sobre o corpo. Existe um motivo específico?
Priscilla Davanzo: Não, na verdade, nenhum. Acho que é só uma característica. Muitos dos meus trabalhos com tatuagem foram feitos antes de 2000 e eu quase não coloco eles no meu portfólio na hora de apresentar para as pessoas. Talvez agora isso mude, pois estou montando uma apresentação só com os trabalhos com tatuagem para a mesa de debates do Sesc Santana. Certamente depois disso vou começar a colocar mais esses trabalhos na roda aos poucos.

 

T. Angel: Já antecipando a mesa de debate em que você também foi convidada para participar no Sesc Santana, nos diga, ainda que brevemente, se você enxerga a tatuagem como arte? E qual é a sua percepção sobre o seu significado na contemporaneidade.
Priscilla Davanzo: Ui. Realmente, o significado da tatuagem na contemporaneidade é um tema pra uma tese de doutorado beeeeeeeeeem extensa. Estou muito curiosa com o que vai ser discutido na mesa. Eu como não sou experta em tatuagem, vou apenas apresentar meus trabalhos e dar pitacos sobre as poucas coisas que eu sei e acho que devem estar nessa discussão, como as questões antropológicas da função de identificação em grupos, da criação das “tribos modernas” (citando o Fakir), e da mudança de significado que aconteceu no tempo que eu pude ver. A tatuagem saiu mesmo de um lugar marginal para ir a um lugar mainstream, como diz o nome do evento do Sesc Santana. Mas para além do mainstream, a tatuagem hoje está no lar de todas as “boas famílias”, inclusive. Porque antes (até anos 70) a tatuagem era coisa de puta, marinheiro, drogado. Depois (até anos 2000) foi para o mainstream do glamour dos roqueiros, artistas, famosos e cia, vinculados à imagem de bad boy. Mas hoje, graças ao fenômeno de as pessoas tatuarem os nomes dos filhos, é possível ver pessoas que não tem nada – absolutamente nada – de bad boys com tatuagens. Elas não tem nada de modernos, nada de fashion, nada de nada além da pessoa comum que são. E são tatuadas. Acho isso um fenômeno fantástico. A Bia Ferreira já participou da mesa de debates anterior, mas estou certa que ela traria muito a essa discussão, dada a sua pesquisa acadêmica. Até a própria Célia Antonacci Ramos, que teve um olhar mais histórico na sua tese poderia trazer algo a essa mesa. Espero uma grande conversa dessa mesa. Acho que vai ser ótimo.

 

T. Angel: Sobre o seu trabalho ‘A vaca come duas vezes” (2000), que completa 15 anos, o que de mais memorável e significante você poderia nos contar dessa trajetória?
Priscilla Davanzo: “a vaca come duas vezes a mesma comida” é um trabalho desses que vai sempre me acompanhar no coração. É um trabalho com o qual aprendi muita coisa. Analisei muito a relação com o público – mesmo não sendo um trabalho participativo, tivemos à época muitos canais de participação, pois era o início do grande boom da internet – e certamente isso foi muito importante para meus trabalhos anteriores. Inclusive num sentido de que eu, quando fiz esse trabalho, não pretendia alfinetar ninguém. Na minha inocência juvenil, era apenas um jogo de ideias. Mas muita, muita muita gente ficou super ofendida com o fato de eu ter decidido fazer o que quisesse com meu próprio corpo… e isso me fez pensar UM MONTE. E, lógico, daí em diante, a inocência foi embora e eu passei a deliberadamente tentar alfinetar, testar, questionar, bater cabelo e causar com o meu trabalho, inclusive para provar que, SIM, as pessoas podem fazer o que quiserem com os corpos delas, mesmo que legalmente isso não seja aceito.
Fora esse lado do trabalho em si, “as vacas comem duas vezes a mesma comida” me trouxe dois grandes parceiros de criação: os videastas Marcelo Garcia e Fabia Fuzeti. O documentário em video arte “Geotomia” (2000) foi um grande sucesso e percorreu o mundo falando desse trabalho meu. É um belo filme que teve aí seu reconhecimento com alguns prêmios. O Marcelo já se foi desse nosso mundo, mas eu e a Fabia temos aí ainda hoje projetos futuros a serem desenvolvidos. É um elo criado que nunca mais se perdeu.

T. Angel: Acredito que você tenha acompanhado a produção da arte da performance brasileira, gostaríamos de ouvir as suas impressões sobre o nosso momento atual.
Priscilla Davanzo: Ui. Outra pergunta super difícil! Olha, eu estou a acompanhar alguma coisa – não é pouca coisa – do que se tem produzido em performance no Brasil, mas nem de longe eu vou conseguir acompanhar isso de uma maneira mais geral. É muita coisa mesmo que se tem produzido na performance tupiniquim. Esse ano (2014-2015) está a ser um ano emblemático por conta da presença da Marina Abramovic no país e certamente isso trouxe uma visibilidade para a performance no geral – desde as instituições artísticas e centros culturais até o próprio público. Eu vejo muitos festivais de performance pilimpando no país – quase todos funcionando de maneira quase que 100% independente – e isso é lindo, mas espero que algum nível de fomento possa existir mais direcionado a essa área, que acaba por ser deixada de lado na maior parte dos editais de fomento. Talvez essa vinda da Abramovic ao Brasil seja boa nesse sentido, mas isso só o tempo dirá. Ao mesmo tempo, a popularização traz aquela ideia fashion sobre performance e começa-se a chamar qualquer coisa de performance. Há de se separar o joio do trigo. E outro pormenor que me preocupa é o fato de que o tipo de performance que a Abramovic faz é um tipo muito específico de performance, mas acaba-se por fechar como se isso fosse o único jeito de se fazer performance. Eu já passei por esse preconceito, por trabalhar com outro tipo de performance e acredito que muitos outros artistas também tenham passado por isso. Mas acho que tem muitos festivais acontecendo dentro e fora de situações institucionalizadas e espero com fé que isso seja uma herança dessa época “pós Abramoviciana”.

 

T. Angel: Dissemos que você está vivendo em Portugal, mas é importante dizer que é para fazer o seu doutorado em Artes. O que você poderia nos contar sobre esse momento da sua vida e principalmente, o que vem pesquisando?
Priscilla Davanzo: A minha vinda ao Porto veio, sim, muito focada nisso: na minha pesquisa. Vim para fazer o doutorado na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, mas ao mesmo tempo que eu ainda não estava com a pesquisa 100% definida dentro de minha cabeça – e eu sou mutante, fico mudando tudo a toda hora – eu me deparei com um curso que tinha uma estrutura muito largada e cujo foco era um foco que não me interessava. Nessa altura estou largando o curso porque acho que não me trouxe as oportunidades de discussão que eu precisava. Mea culpa, eu que não me encaixei no formato e não consegui lidar com a xenofobia semanal de um professor que foi indicado ao cargo de diretor do curso. Mas é óbvio que dali tirei muitas coisas interessantes, a primeira delas o contato com colegas artistas e pesquisadores tanto alunos como professores e seus trabalhos e pesquisas. Uma das coisas mais importantes que aprendi aqui na Europa foi a pensar o trabalho artístico como uma tese – como a tese em si, acompanhada de um anexo em texto explicativo de poucas páginas, e não o trabalho artístico como um anexo da tese em texto, como se pratica no Brasil. Nesse momento estou focando a fazer o que eu deveria ter feito desde o início: ter focado minhas forças para estudar em um lugar que tem coisas que me atraem, temas de pesquisa que me instigam e oportunidades reais de crescer na minha pesquisa e produção artística. Mais notícias adiante, mas já aviso que vai demorar: o local onde quero estudar tem um processo seletivo de 1 ano e meio.

 

T. Angel: Para quem ainda não conhece o seu trabalho, quais seriam suas indicações?
Priscilla Davanzo: Acho que a ideia é ir com o coração aberto. despir-se das armaduras e lembrar que eu sou uma pessoa como qualquer outra. E perguntar, conversar, discutir com qualquer um ao redor. Se quiserem, é possível ver algumas coisas no meu Behance: be.net/priscilladavanzo porque eu ainda estou no movimento de fazer um portfólio on line.

 

Abaixo o convite para as atividades de Priscilla Davanzo na rede SESC.

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