A comunidade dos Morlocks e a comunidade freak: pontos de convergência

0 Flares 0 Flares ×

Uma única vela iluminará seu caminho. E nós – a colônia outrora chamada de “Morlocks” – nunca mais cearemos, nem dormiremos, nem correremos para a escuridão NOVAMENTE!”
Medula

Para nós do FRRRKguys as histórias do X-Men sempre foram importantes referenciais. É comum ver a relação de identificação que as pessoas da comunidade da modificação corporal e, principalmente da comunidade freak desenvolvem com a obra criada em 1963, nos Estados Unidos da América, por Stan Lee (1922-2017) e Jack Kirby (1917-1994).

O universo X-Men tem um amplo repertório político de crítica social. Trecho retirado de HQ de 1982.

É inegável o nosso apreço pelas equipes, como a dos próprios X-Men com a liderança do Professor Xavier, da X-Force formada por Cable e também da X-Factor, Novos Mutantes e até, por exemplo, da Irmandade de Mutantes e Clube do Inferno. Sem contar os diferentes agrupamentos organizados pelo Magneto em diferentes narrativas dos quadrinhos, séries animadas e filmes.

A comunidade dos Morlocks em sua formação clássica.

Ao longo do tempo, da nossa jornada no campo da modificação corporal, ficávamos ali ora com maior simpatia com a ideologia do Charles Xavier, com a ideia de que mutantes e seres humanos poderiam viver pacificamente, e outrora do Magneto, com a consciência de que nunca haveria aceitação e que mutantes deveriam conquistar seu espaço pela força (mutante). Mas borrando a noção binária de mundo, foi nos Morlocks que encontramos maior simpatia e, digamos, identificação. E aqui vamos, sem nenhuma pretensão erudita, rabiscar algumas ideias de pontos de convergência entre a comunidade dos Morlocks e a comunidade freak. Há outros tantos pontos de divergência que talvez apareçam aqui ou em algum outro texto futuro…   

Callisto é a lider dos Morlocks.

Antes de tudo, precisamos dizer que a comunidade se batizou com o nome de uma raça – os Morlocks – da obra A máquina do tempo do inglês H. G. Wells (1866-1946) lançada em 1895. Ali com Wells, um viajante do tempo vai até o ano de 802.701 d.C. e encontra os Elóis, seres dóceis e pacíficos vivendo na superfície e encontra também os Morlocks, que vivem nos subterrâneos e  que, por conta disso e não apenas por isso, são figuras assustadoras e que inspiram pavor e medo. Apenas enquanto adendo, o escritor H. G. Wells, ícone da ficção científica trouxe muitas possibilidades e provocações sobre outras corporalidades, como exemplo e sugestão de leitura, A Ilha do Dr. Moreau de 1896.

Callisto explicando para os X-Men a origem do nome dos Morlocks.

Os Morlocks são mutantes que se juntam não enquanto uma equipe, mas como uma comunidade. Foram criados por Chris Claremont (1950-) e Paul Smith (1953-) e apareceram pela primeira vez no universo Marvel – enquanto comunidade – em 1983 na história em quadrinhos The Uncanny X-Men de número 169. Ironicamente com a mensagem na capa: a queda de Anjo.

O primeiro aparecimento dos Morlocks enquanto comunidade
A sequência e fechamento do arco.

Assim como acontece regularmente no universo Marvel, existem diferentes histórias de origem dependendo da mídia que olhamos, isto é, nos quadrinhos teremos uma (que vai mudando com o tempo e novos eventos), temos a das animações e daquilo que acontece no cinema e séries. O que não muda é o fato dos Morlocks serem essa comunidade subalternizada que representam o exagero: mutantes demais até para mutantes. Olha o Manifesto Freak aí, minha gente…

Um close em Callisto e seus piercings.
“Somos fugitivos, párias… Um povo sem lar, perseguidos pelos poderes que não queremos ou entendemos”
Tirinha do Linha do Trem bastante educativa e provocativa

Masque, Calliban, Callisto e Talho foram as pessoas que fundaram os Morlocks abaixo das ruas de Manhattan, Estados Unidos. O “abaixo das ruas” não é meramente uma figura de linguagem, a comunidade era o tipo de uma sociedade underground composta por mutantes párias e rebeldes que viviam nos túneis abandonados, túneis de esgoto e linhas de metrô abandonadas da cidade. Viviam nas sombras para sobreviver. Suas mutações físicas, assim, como as outras manifestações da genética mutante tornava impossível uma “passabilidade” humana dentro da sociedade hegemônica baseada no binarismo normal (pode viver) e anormal (deve morrer).

“Se o mundo fosse justo, Talho, não seríamos Morlocks” diz Callisto para Talho e Masque.

As suas aparências mutantes, esquisistas, anormais e monstruosas atravessadas por uma linguagem punk e pelas modificações corporais, faziam com que essas vidas fossem precarizadas, sujeitas ao ódio, ao nojo, ao medo, a muita violência e ao extermínio. Extermínio real! Em 1986 a comunidade foi massacrada no evento Massacre Mutante promovido pelo Sr. Sinistro. Restaram poucas pessoas da comunidade com vida, algumas buscaram asilo no Instituto Xavier e outras ficaram sobre a proteção de Medula nos túneis.

O Massacre dos Morlocks encomendado pelo Sr. Sinistro

Callisto, líder da comunidade, iniciou a formação dos Morlocks com Calliban, mutante capaz de rastrear outres mutantes, incluindo quem não conseguiria se integrar em uma sociedade normativa. Essa comunidade via os humanos (e mutantes passáveis, como os próprios X-Men) com desconfiança e um tom de raiva. Suas histórias são marcadas por atos criminosos e antissociais o que de alguma forma colabora com a construção da ideia estereotipada de que grupos subalternizados – principalmente aqueles que rompem com a estética hegemônica – são pessoas agressivas, violentas e más. Mas olha, precisamos dizer, o que era aquela paranoia de sequestrar mutantes padrões esteticamente? Sério, pra quê? Enfim.

Conversa entre Professor X e Callisto.

Além dos corpos e corpas que oferecem outras possibilidades estéticas e políticas, os piercings, as tatuagens e moicanos marcam a estética Morlock. Não à toa é que elus surgem no começo dos anos 80, o movimento Punk já estava fervendo (literalmente) na década de 70 toda. Sex Pistols, por exemplo, foram criados em 1975. É…

Algumas Morlocks reunidas.

No cinema, especificamente no filme de 2006, X-Men 3 – O confronto final, temos ali a presença de algumas (outras versões) dessas personagens como a própria Callisto (interpretada pela dominicana Dania Ramirez), Sanguessuga (interpretado pelo canadense Cameron Bright), Arco Voltaico (interpretada pela dominicana Omahyra Mota) que oficialmente nunca foi uma Morlock e sim uma vilã, inclusive envolvida no massacre mutante, Spyke (interpretado pelo canadense Lance Gibson) e Ouriço (interpretado pelo norte-americano Ken Leung) que também oficialmente nunca foi Morlock mas teve diferentes filiações para além do Instituto Xavier. Perceba, o filme é de 2006 e teve a correta escolha em trazer um elenco latino e não-branco (exceto pelo Sanguessuga) para representar os Morlocks. Ok, ok, mas nem tudo é tão certo assim, elus ocupam ali o lugar de antagonistas, da vilania, do mau… Clichê da branquitude, cis-heteronormatividade e capaticitismo, que aos poucos vai sendo superado pelo cinema (por pressão dos movimentos e lutas sociais), mas que vai demorar anos (séculos?) para ter um impacto no sentido de desconstruir os estereótipos sobre minorias e dissidências. É dívida histórica. Estejamos atentas!

Callisto liderando possivelmente o que seriam os Morlocks em X-Men 3 de 2006.
Callisto liderando possivelmente o que seriam os Morlocks em X-Men 3 de 2006.
Ouriço com tatuagens no pescoço e queixo.

No longa, as modificações corporais como body piercings e tatuagens visíveis, incluindo no rosto, ajudam na composição da estética. Obviamente que podemos pensar aqui em algo como o freakfake, isto é, o uso de modificações corporais falsas para construção de personagens, porque no início de 2006 e, ainda hoje em 2023, a contratação para trabalhos (mesmo no cinema) de pessoas freaks é um desafio, principalmente quando envolve intervenções no rosto. Estejamos atentas demais com isso e que possamos aprender com o Movimento Negro, Movimento Transvestigenere e Movimento das Pessoas com Deficiência.

Ouriço com tatuagens no pescoço e queixo.
Spyke com tatuagens nos braços.
Callisto com tatuagens e piercings.
Arco Voltaico, Psylocke, Ouriço e Callisto entre a estética punk e S&M

Havia rumores que em 2014 no filme X-Men: Dias de um Futuro Esquecido havia uma outra versão do Spyke, mas na verdade era o Soldado Mutante (interpretado pelo canadense Jaa Smith-Johson) confirmado no IMDB.

Apesar dos espinhos, ele tem o poder de mexer nos sentidos das pessoas gerando desequilíbrio e desorientação.

Ainda no cinema, temos mais Morlocks aparecendo em Deadpool em 2016, com Angel Dust (interpretada pela problemática norte-americana Gina Carano, acusada de racismo, transfobia e antissemitismo). Escolha equivocada da produção e ponto final. Optamos em não colocar foto da atriz/personagem por motivos de não fazer gente estúpida famosa. Pelo menos não aqui em nosso humilde espaço.

Angel Dust é a protagonista nessa coleção de HQ dos Morlocks (2002)

Também em 2016, em X-men: Apocalypse temos a presença de um jovem Calliban (interpretado pelo islandês Tómas Lemarquis). Importante mencionar, pensando a relação elenco e personagem que representa, o ator tem Alopecia, o que fez com que ele perdesse todos os pelos do corpo aos 14 anos de idade. Já em 2017, em Logan entramos em contato com uma outra versão de Calliban (interpretado pelo inglês Stephen Merchant), mais velho, e figura central na trama com Wolverine e Professor X.

Calliban em X-men: Apocalypse (2016)
Calliban em Logan (2017)

Nas animações, os Morlocks vão aparecer na clássica série X-men: The animated serie (1992-1997). Lembrando que foi anunciada em 2021 e prometida para 2023 uma continuidade, na agora chamada X-Men 97. A comunidade mutante também apareceu na já clássica, X-Men: Evolution (2000-2003).

Morlocks em X-Men: Animated Series dos anos 90.
Calliban e Callisto em X-Men: Evolution dos anos 2000.

No universo das séries, é em The Gifted (2017-2019) que vamos ter um Morlock em cena, estamos falando de Erg (interpretado pelo nigeriano Michael Luwoye) que carrega um M escarificado em sua face em respeito e orgulho pela comunidade que faz parte: mutante e Morlock.

Erg em The Gifted. série cancelada pela Fox depois de 2 temporadas em 2019.

Por conta de todos os eventos do universo das HQs, principalmente o massacre, não há muitos Morlocks com vida mais, apenas Masque, Callisto (sem poder), Erg, Sanguessuga, Bliss, Litterbug, Medula (sem poder) e Skids.

Capa dos quadrinhos com os Morlocks

Com tudo isso dito, vamos ali olhando para o universo X-Men e escolhendo estar ali mais perto dos Morlocks. Assim como temos olhado para comunidade da modificação corporal e temos preferido estar, construir e fortalecer a comunidade freak: aquela que fica no underground, transcorrendo pelos túneis. São apenas alguns rabiscos, algumas sensações, algumas impressões que nos tomam… Vamos reler o texto novamente. É, vamos reler tudo isso de novo… Vamos?

“Usei este colete no dia em que fundei a comunidade das monstruosidades ingratas. Parece apropriado que eu o use – quando os destruo.”
Callisto

REFERÊNCIAS

Mutant Massacre
https://marvel.fandom.com/wiki/Mutant_Massacre

Morlocks
https://marvel.fandom.com/wiki/Morlocks_(Earth-616)

Morlocks
https://comicvine.gamespot.com/morlocks/4060-3191/

Morlocks: verdadeiramente temidos e odiados
https://youtu.be/KyPsiaiHrX8

10 fatos sobre Callisto
https://youtu.be/wUX0QF3nVLw

0 Flares Twitter 0 Facebook 0 LinkedIn 0 Pin It Share 0 Reddit 0 Email -- 0 Flares ×