Conheça Marie Marquês, mulher trans e tatuadora

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Fotos: acervo Mariê Marques

O meio da tatuagem brasileiro, que historicamente e por muito tempo, foi dominado por homens e, nesse sentido, carrega uma construção ciscentrada e heteronormativa, tem sido radicalmente transformado. Além da presença forte e cada vez maior de mulheres tatuadoras, a população LGBTQ+ tem se aproximado de modo bastante significativo da área. Pensando especificamente a população trans* – incluindo toda variabilidade de gêneros, para além do binarismo – também tem se aproximado e é importante pontuar suas particularidades. A transfobia ainda é um impeditivo bastante forte e nós precisamos falar sobre isso. Precisamos falar sobre isso quando sabemos que a transfobia impede que essa população chegue na profissão e quando chega é tão tóxica que repele essas pessoas. Precisamos falar sobre isso para romper com o mito de que a comunidade da modificação corporal é super acessível e inclusiva. Ela nunca foi e ainda não é. Mas trabalhemos, arduamente, pelo porvir. 

Em março de 2018 no Rio de Janeiro assistimos uma pequena movimentação importante acontecer. Mariê Marques, mulher trans e tatuadora, concorreu e venceu um concurso de Miss Tattoo na Tattoo Place Festival realizado em Niterói. Na ocasião, o Jornal Extra noticiou o resultado através de uma longa matéria com a vencedora. Diferentemente do que vemos na imprensa, tanto quando se fala de modificações corporais quando se fala da população trans, a jornalista Marcela Sorosine faz um trabalho bastante ético e que inclusive abre um importante espaço para que Mariê Marques fale. E nós precisamos ouvir o que as pessoas trans* tem a nos dizer. 

Falamos que essa movimentação é importante porque ela sugere quebras. Quebras quando pensamos que estamos a falar de uma tatuadora trans, quebras quando pensamos que um concurso de miss – que usualmente reforça padrões estéticos – se abriu para uma mulher trans e nordestina, quebras quando pensamos que uma convenção de tatuagem também está em processo de transformação, quebras quando pensamos que uma jornalista pautou toda questão de modo humanizado e ético.  Quebras que inclusive suscitam rupturas novas tantas.

E foi assim que chegamos em Mariê Marques para entrevistá-la. E gostaríamos que vocês que nos lerão nos minutos seguintes, tenham claro em vossas mentes que quando a tatuadora se queixa das dificuldades que rondam sua vida e profissão, a fala dela está debruçada em dados, tais quais aqueles que dizem que:
– 86 pessoas trans assassinadas, 7 casos de suicídio e ainda 29 tentativas de de assassinato, nos primeiros seis meses de 2018;
– 90% das mulheres trans* estão na prostituição;
– 35 anos é a estimativa de vida das pessoas trans* no Brasil, metade da média nacional;

Deixamos o nosso mais sincero agradecimento para Mariê Marques que tão gentilmente nos recebeu para essa conversa. E gostaríamos de dizer para você, Mariê, que não será preciso esperar cem anos para que alguém olhe para sua história e se sinta inspirada, que queira não desistir dos sonhos. Nós olhamos para você agora e sentimos vontade de seguir adiante, porque você nos inspira. Você não está sozinha e é bom e confortante saber que nós também não estamos. Muito obrigada!

E agora o convite é para que vocês leiam o nosso bate-papo. 

FRRRKguys:Mariê, quando começou o seu interesse pelas modificações corporais?
Mariê:
Eu sempre gostei da arte em geral e me encontrei na modificação corporal pelo simples fato de poder expressar minha personalidade sem ser julgada (pelo menos foi assim que eu pensei que seria).

FRRRKguys: Quais modificações corporais você tem hoje?
Mariê: 
Tenho cerca de 80% do corpo tatuado hoje.  

FRRRKguys: Quando você percebeu que poderia trabalhar profissionalmente como tatuadora?
Mariê: Posso ser bem sincera? Sim vou! Eu comecei no meio artístico muito nova ainda, antes de me transicionar. Mas a tatuagem só veio pra minha realidade depois que eu me vi sozinha, sem emprego e sem nada, mesmo já sendo formada em diversas áreas. Eu, enquanto nova, via meu irmão que tinha uma máquina caseira de tatuagem (ele não era tatuador) e eu com essa mesma máquina comecei de forma amadora. Logo depois decidi entrar para o mundo da tattoo de forma profissional. 

FRRRKguys: Sabemos que o meio da tatuagem ainda é bastante sexista, machista, misógino e LGBTfóbico, como foi para você – enquanto mulher trans -, iniciar nesse meio?
Mariê: 
Sem vitimismo, apenas a realidade: NÃO FOI NADA FÁCIL. Nunca vai ser fácil pra uma transexual estar em qualquer profissão que não seja a rua a prostituição. E quando ela se atreve estar em um local onde é dominado por homens cisgêneros é bem pior. Foi e é difícil até nesse momento dessa entrevista.   

FRRRKguys: Você tem contato com outras pessoas trans que trabalham com tatuagem ou outras modificações corporais?
Mariê: Conheço apenas uma que é body piercer e é uma grande amiga. Queria conhecer, seria bacana, conheço virtualmente meninas que pensam em iniciar, mas por ser difícil elas mesmas me contam que não conseguem por falta de oportunidades (como sempre exclusão). 

 

FRRRKguys: Sabemos que você tem participado de convenções de tatuagem, qual a importância das pessoas trans ocuparem esses espaços, em sua opinião?Mariê: Tendo cabeça pra ignorar olhares tortos, ofensas e muitas vezes críticas por ser trans, o resto dá pra levar (seria cômico falar isso se não fosse tão trágico). Mas somos parte da sociedade e não havendo algo descrito por lei que não podemos, temos o direito de estar lá!
E a maior importância é poder dar visibilidade e mostrar que nossa condição sexual não interfere no nosso talento e vontade de ser tratados como iguais. 
 
FRRRKguys: Em março desse ano você ganhou como Miss Tattoo no Tattoo Place Festival, que aconteceu em Niterói, sendo a primeira mulher trans a conseguir o título. Conte para gente como foi participar do concurso? 
Mariê: Só em poder levar esse título pra milhares de pessoas transexuais já foi incrível!
Mas não foi fácil, cheguei a fantasiar uma aceitação que na verdade só aconteceu na minha cabeça, onde criei uma zona de conforto e encanto. Onde só eu achei incrível (exceto amigos bem íntimos e familiares que também acharam incrível a minha participação). Por estar encantada em ser uma mulher trans, tatuadora e ter ganhado o primeiro lugar em um concurso voltado para mulheres cis, em um evento onde a única trans era eu, acabei não reparando como fui tratada de verdade. Que só pude enxergar depois de semanas após o evento. Tirando tudo isso foi ótimo levantar a bandeira e dar visibilidade a comunidade LGBTQ+.
 

 

FRRRKguys: Em sua opinião, os concursos de Miss Tattoo que acontecem ao redor do Brasil não estariam reforçando padrões estéticos do discurso dominante? Isto é, da mulher branca, cisgênero, heterossexual, magra e jovem. Estariam esses concurso contribuindo para objetificação das mulheres? O que pensa sobre isso?
Mariê: 
Sim, esses concursos reforçam padrões estéticos sim! Vou ser bem clara porque sei que não vou poder mais participar desse tipo de concurso depois dessa entrevista, mas o objetivo do concurso era pra ser notado o empoderamento, carisma, simpatia, tatuagem e respeito mas não é bem assim. Se você não é branca, cisgênero, magra e padrão delicinha, você não tem muitas chances. Mas isso já entrou na mente das meninas e até elas acabam se objetificando pra ganhar títulos ao invés de respeitar a cena da tatuagem e se auto respeitar em palco, digo isso porque ao participar do Tattoo Week Rio em janeiro de 2018 e saber que fiz tudo como pedia o “regulamento” em questão de empoderar, emocionar, movimentar, desfilar e ser tatuada, não ganhei o título . Mas meninas que ficaram de lingerie em posições sexuais levaram o título, não entendo. Mas ao sair de lá fui muito bem elogiada e até algumas juradas chegaram para mim e falaram não entender porque eu não levei o título. Mas sai feliz por poder ser autêntica e transparente e poder levar minha militância para páginas do mundo todo, como uma grande campeã. A faixa não foi dada para mim, mas o feedback foi tão bom que eu falei: o próximo eu ganho. E fui lá e ganhei! 

 

FRRRKguys: Em uma matéria que saiu no Jornal Extra, você diz que precisou abrir o próprio estúdio pra conseguir trabalhar. Conte um pouco para gente como foi esse processo em sua vida?
Mariê:
Sim! Um ano tatuando em casa de forma amadora pra me aperfeiçoar e aprender, mesmo sozinha. Fui depois procurar vagas mais nunca fui bem recebida e podem falar o que for, mas o fato de ser trans sempre me vetou de estar em studios como profissional. Foi então que juntando grana de anos para construir uma casa pra mim, eu arrisquei e abri um studio com esse dinheiro, na baixada. Na verdade bem lá dentro da baixada, em comendador Soares, Nova Iguaçu. 

 

FRRRKguys: E a sua relação com o público? Você já sentiu uma certa resistência das pessoas em não se tatuarem contigo pelo fato de você ser trans?
Mariê: Só sinto! O tempo todo, quase todo momento. Ouvi pessoas elogiarem meu trabalho e dizerem que jamais fariam uma tatuagem comigo pelo fato de eu ser “ viado”, “traveco”, como eles se referem à mim. É triste ser julgada só por ser você mesma.
 

FRRRKguys: Existe alguma situação marcante de transfobia no meio que você gostaria de compartilhar?
Mariê: 
Essa: uma cliente disse um certo dia e eu chorei de tristeza quando ela falou que “já pensei em vir até você antes, mas os outros profissionais já me falaram que não era confiável dar a pele pra você por riscos de saúde”. Eu chorei de soluçar. Pensava, o que eu fiz pra isso?  

 
FRRRKguys: Vamos falar agora do seu trabalho. Você segue algum estilo na tatuagem?
Mariê: 
Eu faço o que sou capaz, não chego a seguir até porque não conheço 100%de  todos os estilos. O que sei, aprendi na prática e na internet. Quando faço uma aquarela penso em focar energias positivas, felicidade, amor e esperança. Pois a aquarela é pra mim a arte mais livre e liberta de padrões. Quando um cliente vem até mim, eu analiso o desenho e digo que não faço pois ainda não  estou pronta pra isso. Sou sincera, já não tenho muitos clientes, imagina se eu sair fazendo besteira, só de olho grande…

 

FRRRKguys: Quais são suas principais influências para além da tatuagem?
Mariê: 
Megan Massacre, Kat Von D e algumas meninas brasileiras que não sei se posso citar o nome delas, mas me influenciam a ser cada vez melhor. Além de que a tatuagem tem que ser vista como algo muito maior que só um desenho na pele, tem que ser tudo ligado ao amor, a história, a arte e vai além,  muito além. As vezes sentimos e não explicamos.  

 

 

FRRRKguys: Planos futuros relacionados ao seu trabalho?
Mariê: 
É bem complicado nesse momento da minha vida falar sobre isso. Muito difícil mesmo, saber que cheguei até aqui e hoje já não sou mais tão forte como fui no começo. Mas não quero desistir, apenas não sei sobre o futuro, peço apenas que profissionais deem oportunidades para pessoas. Não julgue, ensine, ajude. É melhor… Vamos julgar pelos resultados e não pelo o que a pessoa é ou deixa de ser.

 

FRRRKguys: Para quem quiser acompanhar o seu trabalho ou se tatuar contigo, como deve fazer?
Mariê: E
u trabalho na baixada, comendador Soares. Tenho um WhatsApp que uso pra fazer orçamentos, falar sobre o meu trabalho e tudo relacionado. Vou deixar aqui (21) 9 7363.1364 . Tem o Instagram @marie.marques e tem esse @lapetite.tattoo que se encontram alguns trabalhos meus, em ambos. Tem o Facebook também, a minha página é Marie Tattoo e Piercing. É isso, venha tatuar comigo e me abraçar?

 

FRRRKguys: Você mantém um canal no Youtube, certo? Fale-nos um pouco do que você faz por lá? Qual a importância par você das redes sociais?
Mariê: 
Meu canal também é um lugar que procuro trabalhar com informações, ajuda, dúvidas, militância. Falo sobre a minha vida toda, pessoal e profissional. Mostro que podemos ser normais e ter vidas normais, como qualquer outro ser. As redes sociais hoje são a maior forma de comunicação e aprendizagem. Você aprende tudo o que é certo e errado. Você pode fazer o que quer. Eu procuro usar as minhas redes pra mudar alguma coisa no mundo e a gente sabe, está na internet, fica lá pra sempre. Imagina daqui 100 anos alguém ver meu canal e me ter como inspiração pra não desistir de seus sonhos? É gratificante saber que isso é possível.  

 

 

FRRRKguys: Gostaríamos muito que você deixasse uma mensagem para meninas trans (e meninos, menines trans também) que pretendem atuar na área.
Mariê: N
ão é fácil, nada pra gente trans vai ser fácil. Vão te bater, te humilhar, te fazer desistir e cabe a você não permitir. Por mais difícil que seja. Uma pessoa transgênero só é aceita nas ruas, nos carros, nos quartos de motéis. É assim que a sociedade quer nos fazer entender. É isso que elas querem que a gente ache, que só podemos fazer isso. Mas não é bem assim. Mostrem que somos mulheres trans, homens trans e somos capazes de realizarmos sonhos. Sei que é muito ruim viver sendo obrigada a provar a capacidade todos os dias pro mundo, mas essa é nossa vida e pra não sermos humilhadas temos que viver e provar coisas que outras pessoas não necessitam. Quer tatuar? Tatue! Você pode! Desde quando a arte tem gênero? E se tem gênero é um gênero  não binário,  pois arte não é homem, nem mulher, arte é arte. Viva e permita-se viver! 

 

REFERÊNCIAS

Tatuadora trans é eleita miss durante evento em Niterói
https://extra.globo.com/noticias/rio/tatuadora-trans-eleita-miss-durante-evento-em-niteroi-22478401.html

86 pessoas trans foram assassinadas no primeiro semestre de 2018
https://universa.uol.com.br/noticias/redacao/2018/07/01/86-pessoas-trans-foram-assassinadas-no-primeiro-semestre-de-2018.htm

Transexuais são excluídos do mercado de trabalho
http://especiais.correiobraziliense.com.br/transexuais-sao-excluidos-do-mercado-de-trabalho

Expectativa de vida de transexuais é de 35 anos, metade da média nacional
https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/expectativa-de-vida-de-transexuais-e-de-35-anos-metade-da-media-nacional

 

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