Conversas sobre corpos modificados, cárcere e crochê (e muito mais que isso)

0 Flares 0 Flares ×

Hoje uma frase anarquista inundou o nosso dia. Ela dizia que “ninguém que não deseje a tua libertação total pode ser considerado teu aliado”. E é sobre isso que queremos falar.

Amigurimi Giby é um jovem de 26 anos que nasceu e vive no interior de Goiás, mas especificamente na cidade de Jataí. Nos últimos anos ele tem vivido e construído sua jornada no campo das modificações corporais. Em inúmeras ocasiões ele esteve interagindo conosco, sempre com muito afeto e carinho. Sentimentos devolvidos com tamanha reciprocidade.

Poucos anos atrás, Giby passou pela cárcere e acabou virando notícia nesses programas policialescos de televisão. Mais do que falar sobre o delito que havia sido cometido, o corpo modificado do jovem era motivo de reprodução de senso comum, demonização dos corpos freaks e do discurso que aproxima estereótipo e violência.

Hoje, depois de cumprir sua pena, o jovem goiano está em liberdade. Tem desenvolvido um trabalho sensível e bonito de amariguri, que são pequenas bonecas e bonecos feitos em crochê. Ofício aprendido no seu tempo de prisão. E não, não queremos romantizar o sistema carcerário e nem escrever um artigo bonito sobre superação que rende compartilhamentos e pouco envolvimento sincero com as questões que sustentam o encarceramento em massa: o racismo, a desigualdade social e a falaciosa guerra contras às drogas.

Conversamos com Giby para sabermos mais sobre suas relações com as modificações corporais e, vamos além, discutindo também sobre o encarceramento, pontualmente sua experiência.

Compartilhamos abaixo a nossa conversa e deixamos o convite para que vocês reflitam sobre o conceito de crime, nossa ideia (e prática) de justiça, qual é a função da penitenciária e, principalmente, sobre o encarceramento em massa. Não esqueçam de incluir em suas reflexões, as causas que levariam uma pessoa cometer um crime. Ainda, é essencial que você tenha em mente que o Brasil hoje tem a quarta maior população carcerária do mundo (estamos falando de 700 mil pessoas) e que mais de 60% são pessoas negras. Dados do Infopen.

No Brasil de 2020 essa é uma reflexão urgente e fundamental e como já muito bem disse Angela Davis, “nós não reivindicamos uma reforma carcerária. Nós queremos que o sistema carcerário seja extinto, abolido”.

FRRRKguys: Como que começa a sua história com as modificações corporais? De onde veio o seu interesse e quando começa o seu processo?
Giby: A minha história com a modificação corporal começou quando eu tinha 15 anos aproximadamente e minha mãe resolveu fazer uma tattoo nela. Fui com ela, lá eu fui ver as revistas de tattoo, curioso né? risos
Vi um povo todo rabiscado de tattoo, já quis ficar daquele jeito na hora mas a minha mãe falou “tá louco? só uma, se quiser, e pequena ou um piercing“. Quase desmaiei de felicidade.
Acabei escolhendo o piercing porque iria demorar a tattoo. Tinha que marcar hora e eu queria algo naquele momento, naquele dia. Acabei furando o canto da boca e me achei o modificado já. risos
Depois disso fui colocando eu mesmo os piercings em mim. Depois em amigos, quando vi já estava cm 42 piercings no corpo todo. Isso acontecendo e eu menor de idade ainda, com 15 anos.
No ano seguinte, com 16 anos, resolvi fazer a tão sonhada tatuagem. E como eu amo a cantora Pitty, resolvi prestar uma homenagem pra ela e fiz o símbolo da nota de sol que ela tem. Só que não ficou igual eu queria, já marquei outra no mesmo momento paro o dia seguinte. Dessa vez uma colorida já que a primeira tinha sido preta. No outro dia já fiz a outra. Todo dinheiro que eu pegava era para tattoo. Mas só nas pernas, braços e tórax.
Quando cheguei nos 17 anos, já quis colocar os meus alargadores no nariz, minha primeira modificação que fiz, cheguei aos 20 mm com eles. Depois fiz meu eyeball com uns 20 anos. Na sequência resolvi bifurcar a língua, sete dias após pintar o olho. E já fiz também uma escarificação na perna.
Depois disso tudo já resolvi lacrar todo o corpo de tatuagem e estou nesse processo ainda porque tenho poucas. Apesar de ter o apelido de Giby. risos
E foi assim que entrei na modificação corporal. Mundo que amo muito e me completou demais,  apesar de ter muita competição: “sou melhor que tu“, “tenho um melhor estúdio“. Eu sigo só na humildade sempre, o resto Deus ajuda.

FRRRKguys: Hoje quais modificações corporais você tem?
Giby: Eu tenho eyeball tattooing, tongue splitting, escarificação, microdermais, branding, alargadores no nostril, lábio e orelha. Pretendo fazer mais, assim que conhecer mais pessoas desse mundo maravilhoso.

FRRRKguys: Você tem os olhos pigmentados. Quando você fez e como está a sua saúde ocular?
Giby: Fiz meu eyeball tattoo eu tinha uns 19, 20 anos aproximadamente. Até hoje nunca fiz nenhuma consulta em médico, mas  vou fazer logo logo. Tem uns 5, 6 anos que já fiz o procedimento.

FRRRKguys: Sabemos que você teve uma passagem na prisão. Você poderia nos contar o que houve? Como foi passar por isso?
Giby: Já tive passagem, mas como mãe diz, “cuidado com quem anda“. Fui andar com merda e entrei em merda, mas hoje vejo isso como um aprendizado da vida. Foi muito difícil passar por isso, mas minha família diz que onde Deus habita a esperança nunca morre. E sai com a cabeça erguida de lá após 2 anos.

FRRRKguys: Vivemos em tempos de muito ódio e o discurso de “bandido bom é bandido morto” tem saído – cada vez mais – do campo das ideias e entrando no campo das práticas. Tudo isso mina a capacidade de reflexão sobre o assunto, por exemplo: o que leva uma pessoa a cometer um delito ou qual a função da penitenciária. Gostaria de ouvir sobre sua experiência, o que te levou a cometer o delito?
Giby: Como disse antes, foi muito as companhias, as amizades podres que achamos que são amizades mas não são. Aí fui junto mas nunca foi preciso violência, em nenhuma das partes. Odeio violências não acho justo um bandido precisar agredir uma vítima pra fazer algo errado, acho isso covardia. Fiz o errado mas nunca precisei levantar a mão pra agredir ninguém. Acho que isso me ajudou com Deus porque ele me mudou muito. Hoje as pessoas me tratam como gente.

FRRRKguys: Na época, lembro que o que foi divulgado nas redes sociais e imprensa era menos sobre o delito e mais sobre um ataque da sua imagem. Você chegou a acompanhar isso? O que pensa dessa forma escancarada de discriminação?
Giby: Eles realmente falaram mais da minha aparência do que realmente eu tinha feito. Eles tentaram ofender a minha imagem, achei muito triste. Pela minha família, não por mim, porque eu não tenho vergonha das minhas modificações. Sim, tinha vergonha do que eu tinha feito. Mas foi isso, depois fiquei muito conhecido pela aparência, as pessoas meio que foram esquecendo a matéria e lembrando só das minhas tattoos e modificações.

FRRRKguys: Conte-nos como aprendeu o crochê e como o amigurimi entra na sua vida?
Giby: Conheci o crochê dentro do presídio. Via muitos caras fazendo. Achei bem interessante e resolvi aprender. Fui até um cara lá que era do grupo de oração que tem lá dentro e perguntei quanto ele me cobrava pra me ensinar o crochê. Ele me respondeu que só queria minha alma pra Jesus e que ele me ensinava. Achei tão lindo o gesto dele que comecei a ir no grupo de oração na msm hora. Quando foi a noite fui ter minha primeira aula de crochê. Ele fez e me explicou como pegava na linha e na agulha do jeito certo. Não como uns lá pegavam, me ensinou tudo do jeito profissional. Ele me falava que se eu aprendesse certinho, poderia até ganhar dinheiro com isso. Aí fui me interessando mais ainda, pois quando saísse dali, iria fazer tapetes pra vender. Passaram duas horas e eu aprendi o básico. Me empolguei em uma visita de minha mãe, pedi umas linhas e comecei a fazer os tapetes mais coloridos de lá, porque amo cor em tudo e por isso sou todo colorido. Quando deixei a prisão renovado fui até a loja pra comprar umas linhas e chegando lá vi uma coruja feita de crochê. Perguntei como era feita e a moça da loja disse que tinha uma revista ensinando alguns. Comprei a revista, três linhas e já comecei a fazer os tão fofos amigurimis. Ganhei o dom de criá-los da minha imaginação. Hoje prefiro fazer personagens de animes.

FRRRKguys: Para quem deseja comprar os seus produtos, como deve proceder?
Giby: Se alguém gostar ou se interessar no tema amigurumi pode entrar no meu Instagram @amigurumi_giby. Quis muito aprender a fazer porque homem é muito raro de fazer amigurumi crochê. Como não posso ter os ursinhos dos meus desenhos preferidos, agora eu mesmo faço todos que amo. Tenho uma coleção de quase 80 amigurimis de personagens.

FRRRKguys: Deixe uma mensagem para as pessoas que vão nos ler aqui.
Giby:
Errar não é o fim do mundo. Errei, mas com o erro eu aprendi muito e aprendi a viver com paciência, com fé e, por isso, resolvi trazer em linha, agulha em amigurumis. Basta querer mudar e ser diferente não só nas modificações mas nas escolhas da vida. E agradeço muito ao FRRRKguys que  SEMPRE acreditou em mim e SEMPRE me apoiou, mesmo de longe me incentivou a ser um modificado diferente.

0 Flares Twitter 0 Facebook 0 LinkedIn 0 Pin It Share 0 Reddit 0 Email -- 0 Flares ×