E quando o maquinista do trem é freak?

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Olhar hoje para o mercado de trabalho formal e a sua relação com pessoas com modificações corporais, definitivamente, não é a mesma coisa quando comparamos com dez, quinze, vinte anos atrás. Embora muito tenha mudado nessa relação, principalmente quando pensamos a tatuagem e o body piercing, estamos bem distantes do que seria ideal. Nesse sentido, seguimos existindo – dando literalmente a cara modificada a tapa – e brigando pela ocupação de posições e profissões que historicamente nos foram negadas, dentre eles a de maquinista de trem. 

Assim tem sido a história de Felipe Barbosa, nascido em São Miguel, Zona Leste de São Paulo, maquinista concursado pela Companhia Paulista de Trem Metropolitanos – CPTM. Um profundo apaixonado pela arte do desenho, acabou se aproximando da tatuagem como porta de entrada para outras técnicas de modificação corporal. Os povos indígenas também colaboraram com o seu repertório sobre as possibilidades dos usos do corpo. Com espírito curioso, pensava muito sobre a cultura da alteração corporal presente em diferentes povos indígenas, pensava em como era possível essa cultura pulsar e fruir em diferentes povos que supostamente não tinham contato. Todas essas questões e paixões tomavam o Felipe.

Todavia, ele teve o seu tempo e o seu processo para chegar na alteração de si: alcançar seu próprio corpo. Em 2009 passou pelo curso de eletricista no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – SENAI, sentia ali as forças da normatividade compulsória manifestas pelas discriminações corriqueiras e controle dos corpos. Finalizou o curso e começou a trabalhar na área como instalador de elétrica e técnico eletrônico. Junto com isso, entrou em 2014 na faculdade de Engenharia, recebendo bolsa de estudo pela Faculdade de Informática e Administração Paulista – FIAP. O curso e a bolsa não trouxeram satisfação alguma e, assim, Felipe Barbosa abandonou a ideia de se tornar engenheiro.

Essas experiências todas despertaram em Felipe o desejo de buscar aquilo que realmente gostava e fazia sentido profissionalmente e pessoalmente, e aqui que as modificações corporais entram em sua jornada freak.

A evolução dos alargadores nos lóbulos de Felipe Barbosa

Fez a sua primeira tatuagem aos 22 anos de idade. Fez também o Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM e pelo Sistema de Seleção Unificada – SISU conseguiu em 2017 uma vaga em Economia na Universidade Federal do ABC – UFABC. E como a grande maioria da juventude pobre brasileira precisou abrir mão da universidade depois de 1 ano de curso. Morando em São Miguel, trabalhando na Mooca e estudando no ABC Paulista, São Bernardo, se tornou insustentável manter.  Seguiu assim trabalhando e modificando seu corpo.

Em 2018 fez o concurso público para trabalhar como maquinista na CPTM, conseguiu uma boa colocação e foi aprovado. Felipe contou ao PodModificast que quando passou para fase seguinte, a do exame médico, teve receio em ser reprovado no concurso por conta das modificações corporais, o que felizmente não aconteceu.  Inclusive, é importante destacar que por parte da companhia, o profissional alega nunca ter sofrido nenhum tipo de discriminação ou constrangimento. Ele nos contou que:

“A CPTM em si, olha, tem sido muito aberta não só comigo mas com todo o quadro lá, ainda bem. Eles sempre estão fazendo algum tipo de ação de inclusão.”

Porém, por parte das pessoas usuárias do serviço, tem a típica reação de suspeita. O corpo freak, dentro de um sistema de normatividade compulsória, é sempre um corpo suspeito. Felipe conta que mesmo uniformizado ouve perguntas desconfiadas se trabalha na companhia, como se para nós essa realidade não fosse possível. E, de fato, não era, mas tem sido conquistada e construída com a insistência freak em permanecer. Resistir.

Hoje Felipe retornou para universidade, voltou para o curso de Economia na Universidade Paulista – UNIP. Hoje Felipe Barbosa tem 92mm nos lóbulos, alargadores no septo nasal (12mm), hélix (8mm) e nostril (5mm), muitas tatuagens visíveis (incluindo a cabeça) e implante subcutâneo na mão. Hoje ele é um maquinista de trem concursado, que a despeito de todas as discriminações, exerce sua profissão cotidianamente levando milhares de pessoas para seus variados caminhos. Hoje ele é um futuro economista. E que importante é expandir a vida no presente ao ponto de projetar o futuro!

Se alguns anos atrás Felipe buscava satisfação pessoal e profissional, ao que parece ele tem encontrado. Para nós, acessar a sua história, é acessar a criação de novas possibilidades e imaginar novos contextos possíveis para as pessoas freaks e as outras tantas dissidências.

E quando o maquinista do trem é freak? Você apenas senta e vai, sem saber, sem nem imaginar… Apenas passa. Nós seguimos.

Nós seguimos caminhando entre vocês.

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