Foto: Leonardo Waintrub
Edu O. é artista e professor da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia – UFBA. Diretor, dançarino e coreógrafo do Grupo X de Improvisação em Dança, desenvolve ainda projetos independentes como Kilezuuummmm.
Entre os dias 15 a 19 de Junho de 2020, o artista realizou o curso Dança e Deficiência no Centro Cultural São Paulo – CCSP, que por conta da pandemia aconteceu em Lives no Instagram.
Para finalização do curso, Edu O. fez a escrita, a crítica e a leitura da Carta aos bípedes, compartilhada logo abaixo na íntegra com sua devida autorização.
É ler, refletir e agir. Obrigada, Edu O.!
“Carta aos bípedes,
Você, talvez, não se dê conta, mas você é bípede. Sim, se você não possui nenhuma deficiência e é parte da categoria de pessoas construídas dentro de padrões normativos de corpo que consideram as experiências da deficiência como patologia, se nos olha com sentimento de pena, compaixão, se considera a pessoa com deficiência menos capaz, menos bela e improdutiva, se considera a deficiência como se fosse uma experiência única que se repete da mesma maneira para todas as pessoas e desconsidera a grande diversidade das deficiências e suas especificidades, além dos contextos pessoais, você é bípede.Se a sua inclusão quiser nos colocar nos cercadinhos específicos que mais excluem, sim, você é bípede. Se entende que o corpo sem deficiência é a única possibilidade de normalidade, sem dúvida, você é bípede.
Você é bípede, se a sua Dança desconsidera as possibilidades de diversos corpos e não se dá conta das limitações da própria bipedia (essa estrutura sócio-economica-cultural-política que determina o que é normal e o que é anormal. O que apresento como bipedia não se trata da maneira de andar, é sobre sistemas de opressão pautados na normalidade construída historicamente), se nas suas escolhas estéticas, artísticas e, portanto, políticas, você mantém e reproduz espaços de invisibilidade e não reconhecimento da produção de artistas com deficiência, se na sua curadoria você não se dá conta de que o tema secular da Dança é o corpo branco-cisgênero-bípede e não faz a mínima questão de transformar isso e nos mantém na programação como extras, se em suas aulas você nem pensa nas pessoas com deficiência e se aparecer alguma… ela que se vire/adapte porque “meu grand jeté é lindo demais para eu não mostrar”.
Sem dúvida não conseguimos desconstruir e destruir estruturas tão fixas assim, mas o fato de vocês terem nos acompanhado nesse curso e suportado tantas provocações, já indica um vento que vem de longe para soprar – quem sabe – alguma mudança. Nós mudamos quando entramos em contato com o outro, nos perturbamos com o desconhecido ou nem tão desconhecido assim, mas justamente por ser tão conhecido nem nos damos conta. O encontro… o contato… transformam.Durante essa semana entendemos juntos, esse “corpo intruso” que nos instiga, coça o meio das costas, essas bolhas que furamos para afirmar o que somos e rejeitar padrões impostos. Jamais esquecer de que quando entramos nos espaços os transformamos. Experiência vivida não se apaga. Ninguém fala por ninguém, mas podemos compreender o universo do outro e tentar criar junto com ele. Hoje, saberemos que voar… é do homem! (Djvan)
Se já havia passado da hora da mudança, não será este o momento para transformarmos nossos hábitos de consumo, romper padrões que criamos, repetimos e nos determinam o que é belo, o que é produtivo e capaz? Quando sairmos desse isolamento que vocês bípedes estão experimentando pela primeira vez, mas que para nós – pessoas com deficiência – é uma condição imposta pela falta de acessibilidade e oportunidades, o que vai importar? Quais vidas importam? Umas mais outras menos?O corpo com deficiência é futuro. Tenho repetido isso incansavelmente. A experiência da deficiência é um porvir constante, se não por alguma surpresa do destino, pela própria vida. Sim, quando envelhecemos é porque nos mantemos vivos e o envelhecimento é companheiro da deficiência. Se você tem problemas com a velhice, não seria esse também o momento de pensa-la como vida?
Pelo futuro que já é agora, eu quero agradecer a companhia de vocês durante essa semana.
Ocupar espaços de visibilidade, me entender parte de uma multidão e tentar quebrar as barreiras impostas pela normatividade, me movem e me fazem existir e, mesmo com toda insegurança, a aceitar o que nem me era tão confortável como fazer lives, por exemplo. Mas vocês me colocaram no colo e me fizeram acreditar que estavam aqui comigo, neste sofá cinza.
Estar acompanhado de Estela Lapponi, Alexandre Américo, Moira Braga, Clarissa Costa e Mickaella Dantas foi uma estratégia que encontrei em fazer ecoar reflexões e discussões que venho alimentando há muito tempo, buscando não centralizar o discurso, não personalizar essa história ainda pouco contada e quase nada acessada por grande parte das pessoas. Pensar num panorama, ainda que restrito, que reflita essas questões diante de realidades variadas e da diversidade que nos constitui nos diversos pontos do país: Salvador, São Paulo, Natal, Rio de Janeiro, Fortaleza, Cruzeta-Ilha da Madeira-Lisboa-Londres. Esse passado-presente-futuro AQUI.
Que bom ter vocês aqui comigo! Sentirei saudade, mas estarei logo ali do lado, no insta @eduimpro , caso queiram continuar de mãos dadas.
Até a próxima e que não demore tanto!
Com todo afeto
Edu O.”