Entrevista com Jafa sobre escarificação

0 Flares 0 Flares ×

Fotos: Acervo pessoal de Jafa

Jafa é um modificador corporal brasileiro, nascido em São Paulo e que já dois anos tem vivido o nomadismo. Em suas viagens pelo Brasil e mundo afora, tem se dedicado exclusivamente para as artes, principalmente as artes corporais. A escarificação (do inglês: scarification) é uma das técnicas que vem sendo explorada pelo profissional, que divulga os seus processos e trabalhos por sua conta no Instagram.

A escarificação é uma técnica de modificação corporal milenar com diversos registros em populações africanas. Assim como qualquer outra modificação corporal, suas motivações são diversas e plurais. Embora seja tão antiga quanto a própria tatuagem e a perfuração do corpo para adornos, é uma técnica que encontra uma maior resistência até mesmo dentro da própria comunidade da modificação corporal.

Conversamos com Jafa afim de entendermos um pouco mais sobre o seu trabalho e a sua relação com as escarificações em particular. Convidamos para que você leia o nosso diálogo abaixo:

FRRRKguys: Quando você começou a praticar escarificação? De onde veio o seu interesse?
Jafa: As cicatrizes sempre estiveram presentes na minha história como alguém que se machucou diversas vezes e aprendeu o básico de como lidar com o corpo ferido e, mais tarde, na minha adolescência aconteceu de surgirem cicatrizes inexplicáveis no meu corpo, na região das costas, fruto de um processo autoimune ou coisa parecida, e que foram se tornando cada vez mais hipertróficas, se aglomerando e formando grupos de texturas e padrões naturais. É óbvio que no começo foi uma experiência negativa, com muita interferência da medicina, com visita a diversos médicos que, apesar de não saberem explicar as causas ofereciam tratamentos de remoção que nunca tiveram efeito, pra não dizer que tiveram efeito contrário. Todos esses processos foram bastante dolorosos. Nesse processo de aceitação e busca por outras vias de compreensão disso, surgiu o meu interesse pela escarificação, tanto as tradicionais, que tanto me encantam, quanto as feitas por artistas contemporâneos. Nesse movimento que fiz as primeiras scars no meu corpo, primeiro umas no ombro, acompanhando as naturais que já tinha, com o artista e amigo Pombomorcego, que na época estava começando a trabalhar com ESU branding, e depois quando fui pra Europa trabalhando com tattoo, me encontrei com o Yann Brenyak e fizemos dois processos, fechando as minhas costas. esses processos intensificaram muito meu interesse pela escarificação enquanto processo e experiência. Comecei a praticar exatamente a um ano atrás, em abril de 2018, quando estava de viagem ao Nepal, onde realizei meus primeiros rituais de escarificação, numa cachoeira do Himalaia, com as três primeiras pessoas que toparam embarcar nessa comigo. foi depois da minha primeira suspensão corporal que tive coragem de iniciar a prática. Estava tatuando por quase 5 anos na época e sinto que toda a caminhada com a tatuagem foi para me trazer a isto.


FRRRKguys: Como você aprendeu a técnica?
Jafa: Olha, esta pergunta não tem apenas uma resposta. Meu primeiro “aprendizado” foi quando fiz as cicatrizes com o Yann. O primeiro aprendizado foi o sentir, e depois fazer o processo de inkrub que dura uns três dias. No meu segundo encontro com ele, pra adicionar mais elementos na peça, já estava tão encantado que pedi pra ele me emprestar a lâmina que ele estava usando pra me fazer uns cortinhos, ali mesmo, na hora, e ele me deu uns pequenos toques… Isso foi o suficiente pra eu entender que aquilo estava me chamando. Pedi pra acompanhar ele em alguns trabalhos, o que aconteceu, mas sem que tivesse um caráter educativo, era mais na amizade mesmo. Depois disso me encontrei com o Alex, Indigenak, artista que já acompanhava pela internet, na convenção de tattoo do Nepal, e pedi também a ele pra assistir um procedimento que ele ia fazer. Observar artistas trabalhando ao vivo foi o segundo passo desse aprendizado. Logo na sequencia fiz uma suspensão com Indigenak e saí da experiência motivado e encorajado a fazer minhas primeiras cicatrizes. Comprei em Katmandu mesmo uma caixinha de bisturis (os piores que já usei até hoje) e depois de oferecer pra algumas pessoas surgiram algumas interessadas. Aí o terceiro momento de aprendizado foi na prática mesmo, sempre com muito cuidado, e a experiência com tatuagem ajudou muito. A partir daí não quis mais parar e passei a trocar ideias com pessoas que fazem isso pra compartilhar informações.


FRRRKguys: Quais suas principais referências?
Jafa: Tenho basicamente três fontes de referências que se combinam, as escarificações tradicionais, a prática de gravura que não se manifesta no corpo e as artes de cicatriz feitas contemporaneamente por artistas que me interessam. Desses, o primeiro nome de referência que eu tive, que me deixou maluco desde a primeira vez que vi, é o próprio Yann. Daí seguem outros, a maioria não brasileiros, como o Shiva, Brenno Alberti, Indigenak,  a Primitive Mallory que conheci mais recentemente. Curto muito ver a cena ressurgindo no Brasil (que pra mim tem tudo a ver com escarificação dado os nossos cruzamentos culturais com África e também com praticas de modificações corporais indígenas), depois daquele momento em 2006, 2008, quando uma galera muito massa tava acendendo essa chama por aqui. Acompanho o trabalho de pessoas que estão fazendo isso hoje em dia por aqui, como o Pombomorcego, a Saty, a Alessandra Favoritto, o Buda, pra citar apenas alguns.

FRRRKguys: Existe um forte debate sobre automutilação (por cortes) e temos secularmente a escarificação, porém pouco discutida dora da nossa comunidade. Para quem entende essa técnica como uma forma de mutilação, o que você teria a dizer?
Jafa: Eu sou formado (por incrível que pareça) em Psicologia, então me interessa bastante pensar esses processos (de tattoo, scar, mods em geral) pra além da manifestação estética da coisa. Vou tentar resumir um pouco o que eu acho com relação à isso: viver nessa sociedade ocidental contemporânea pode ser muito angustiante, fruto de um esvaziamento de sentido das coisas, estabelecimento de padrões inalcançáveis, individualismo e isolamento, etc. Acho que a grande maioria dos casos de automutilação acontece em momentos de muita angústia, de dores que se sente internamente, e que naquele momento muito intenso, sentir uma dor física, ver o próprio sangue, todas essas coisas, alivia, gera sentido, desloca a atenção. Estou pensando mais nos casos de pessoas que se cortam mas não necessariamente têm intenções suicidas. Na minha experiência e pesquisa, compreendi que a dor pode ser, e é, muito poderosa, ela é intrínseca a vida, é uma sensação muito básica e primitiva, e chama a atenção pro presente, pro corpo, nos conecta de uma forma curiosa com nós mesmos, ela esteve presente na grande maioria dos ritos de passagem de quase todas as culturas, como um catalisador de intenções. Pra mim, fazer arte dessas emoções tão intensas é de uma potencia enorme. Eu penso uma coisa como “transformar dor em amor”. Enfrentar o medo (numa cultura que só reforça o medo), deixar sangrar (numa cultura que evita a dor e aceitar a dor a todo custo), e se permitir se cortar (com toda essa carga que estávamos falando) numa situação segura e com alguém em quem se confia, tudo isso pode ter um efeito muito positivo no processo de autoconhecimento de uma pessoa, além de deixar uma marca da qual se possa lembrar e se orgulhar. Eu acho que aceitar a dor como parte da vida pode ser um processo de cura muito forte. Fazer arte dela e vesti-la, no mundo de hoje, uma ação política até. Eu poderia discorrer muito mais sobre isso em outro momento, porque tudo isso me interessa e faz parte da pesquisa que tenho desenvolvido.

Lembrando que todo e qualquer procedimento de modificação corporal deve ser feito por profissionais com a devida capacitação e experiência. Sempre busque um profissional para sua segurança e melhor resultado do procedimento.

CONTATO
https://www.instagram.com/jafadilambas/

0 Flares Twitter 0 Facebook 0 LinkedIn 0 Pin It Share 0 Reddit 0 Email -- 0 Flares ×