Freaks e outras arquiteturas corporais no mercado de trabalho

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Fotos: Acervo pessoal de Meputi

Seguimos com a nossa jornada em trazer e registrar a presença de corporalidades freaks no mercado de trabalho formal. Em retrospecto, já falamos do chão da escola, da fábrica, do escritório e do banco. Já falamos das linhas do trem, das linhas áreas e das outras linhas imaginárias que vamos traçando e rabiscando para desenhar contextos possíveis. Batendo o martelo (e a foice) que estamos falando, em conjunto, de consciência de classe.

Agora iremos falar do campo da arquitetura, como mais uma área possível de ocupação para nós freaks, por meio de uma conversa que tivemos com Meputi, arquiteto que trabalha hoje na Fundação Theatro Municipal de São Paulo.

Meputi é um arquiteto com atuação no setor cultural

Meputi é um jovem freak de 30 anos, nascido em Atibaia, interior de São Paulo. Quando dos seus 19 anos mudou para São Paulo para ingressar no curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie. Durante sua vida enquanto graduando, estagiou em algumas empresas e escritórios de arquitetura, no seu último estágio em 2016, trabalhou no escritório Fazemos Arquitetura com Juan Cabello Aribas, arquiteto madrilenho. Após se graduar em 2017, continuou no escritório focado em arquitetura de exposições, assim, trabalhou com importantes museus e equipamentos culturais, como o Museu da Imagem e do Som – MIS, SESCs, Centro Cultural Porto Seguro, dentre outros. Em 2019, foi convidado para assumir o cargo de Supervisor de Infraestutura e Arquitetura da Fundação Theatro Municipal de São Paulo, onde está atuando até o presente.

Meputi em 2019

Abaixo compartilhamos uma pequena conversa que tivemos com Meputi, para entendermos de modo mais aprofundado como sua relação com o mercado de trabalho se estabeleceu.

FRRRKguys: Você iniciou o seu processo de modificações antes ou depois de acessar o mercado de trabalho? Se antes, como foi? Se depois, teve alguma razão?
Meputi:
Eu sempre admirei o universo da modificação, desde que me lembro, mas a minha primeira modificação foi em 2013, com 20 anos, nas férias do meio de ano da faculdade, foi um piercing na aba do nariz. Nessa época eu tinha mudado para São Paulo há pouco mais de um ano, e não estava atuando na área ainda. Foi até engraçado, porque apesar de eu sempre ter tido muita vontade eu tinha muito medo da perfuração (eu tenho muito medo de agulha, até hoje), fui acompanhar uma amiga que ia trocar um piercing e lá ela acabou me convencendo a fazer o furo que eu queria tanto. Depois disso não parei mais né…  Quando eu realmente comecei a trabalhar na área de arquitetura, em 2015, como estagiário eu já tinha uns 7 piercings, o que já chocava a equipe. Meu primeiro estágio na área foi em uma empresa de escolas de inglês daqui de São Paulo, no setor de expansão. Eu já era uma imagem que destoava do ambiente corporativo.

Meputi na FTM em 2022

FRRRKguys: Comi tem sido a experiência em ser um corpo freak no mercado de trabalho formal?
Meputi: É complicado… Infelizmente o mercado de trabalho é muito quadrado. Constantemente eu sou estigmatizado por causa da minha aparência.

Lembro quando trabalhei em um escritório de arquitetura voltado para projetos de hospitais e clínicas médicas, na Vila Olímpia (eu acho isso engraçadíssimo). Eu ingressei no escritório no final do ano, se não me engano em novembro. No meio do mês de dezembro teria a confraternização do escritório. A equipe do escritório era o que todo mundo espera de uma empresa que atua na Vila Olímpia: um monte de gente de roupa social, na quase totalidade pessoas brancas, cabelos bem cortados, no padrão esperado pela sociedade, enquanto eu tinha um cabelão, uma barba enorme, usava sempre muitos anéis, brincos, colares e braceletes. Resolvi ir na confraternização. Me senti um animal raro em exposição. Na época eu não bebia álcool, então eu estava tomando um suco, quando algumas das meninas do escritório me abordaram pra perguntar por que eu não estava bebendo como todo mundo. Elas fizeram questão de falar que quando me viram chegar no escritório comentaram umas com as outras “nossa certeza que esse aí vai dar trabalho na festa de fim de ano”, unicamente pela minha aparência.

Meputi antes de entrar na Fundação Theatro Municipal

No escritório Fazemos Arquitetura, eu fui mais respeitado de um modo geral, foi uma experiência melhor, até mesmo pelo posicionamento político-social do Juan, arquiteto dono do escritório. Juan é espanhol, de Madrid, gay, todo tatuado, com uma visão de mundo expansiva, cheio de opiniões e uma personalidade forte, mas que me fazia participar de tudo. Sou muito grato pela experiência que tive com ele, que foi primordial pra minha formação como arquiteto. Ele sempre fez questão que meu nome saísse nas publicações das exposições que ajudei a projetar, me levava junto para as reuniões com os diretores, diretoras, curadores e curadores, e produtores e produtoras dos museus, e realmente ouvia minhas ideias também. As equipes dos museus também me respeitavam, acredito que também por já estarem acostumados com lidar com pessoas fora dos padrões e artistas de um modo geral. A única vez que tive algum problema nessa época foi quando da reforma do apartamento do Juan, que ele me deixou cuidando da obra enquanto foi viajar. O problema: a pedra da bancada da cozinha veio no tamanho errado. Liguei para a pessoa da marmoaria que foi extremamente grosseira comigo. Lembro que Juan ficou possesso com isso, disse que nunca mais trabalharia com a empresa.

Meputi no Paço das Artes

Mas o caldo realmente engrossou quando fui chamado, em 2019, pelo então Diretor de Gestão da Fundação Theatro Municipal de São Paulo, Homero Freitas, pra assumir o cargo de Supervisor de Infraestrutura e Arquitetura da Fundação Theatro Municipal de São Paulo. Até hoje olho pra isso e penso na loucura que foi ter aceitado esse convite. Eu não tinha muita noção do que eu estava assumindo na época e do tamanho do embrólio que é isso aqui. Na época eu conhecia o Homero há pouco tempo, e logo que nos conhecemos ele assumiu a Direção de Gestão do Theatro. A arquiteta que cuidava do setor anteriormente havia sido exonerada pelo Diretor Geral da época, uns dois meses antes, e o Homero entrou em contato comigo porque precisava de alguém com urgência, e como sabia que eu já estava atuando com arquitetura no setor cultural, achou que eu seria bom para o cargo. Aí que as coisas começam a ficar caóticas.

Pra se ter uma ideia do tamanho disso tudo: a Fundação Theatro Municipal (FTM, como chamamos), é uma Fundação de direito público ligada à Secretaria Municipal de Cultura e gerida por uma Organização Social (OS). O Complexo Theatro Municipal, que é gerido pela OS, é composto pelo edifício centenário do Theatro Municipal de São Paulo, o edifício contemporâneo da Praça das Artes, inaugurado em 2012, e a Central Técnica de Produções Chico Giacchieri, no Pari, que conta com uma série de galpões onde são produzidos e armazenados os figurinos e os cenários das apresentações. Essa gestão dos espaços é estranha, esse mês a revista Piauí fez uma reportagem sobre isso e sobre as muitas e constantes crises pelas quais a FTM passa.

Minha função, no cargo de supervisão de infraestrutura basicamente é  fiscalizar as ações da OS, propor caminhos, orientar processos, solicitar reparos, acompanhar obras, zelar pela manutenção dos edifícios, facilitar o diálogo entre as equipes técnicas e as diretorias, relatar as ações realizadas para a Secretaria de Cultura, entre uma série de outras atribuições. Quando entrei na FTM, eu assumi um setor desorganizado, com informações dispersas, sem históricos de processos passados, com uma pilha de comunicações oficiais a serem despachadas, dois inquéritos civis a serem respondidos, nenhum desenho de processos para as ações a serem realizadas, e de quebra ainda herdei uma relação conflituosa, tóxica e nada saudável com o arquiteto da organização social que geria o Theatro na época. Pra se ter uma noção, importantes processos de ações que deveriam ser tomadas estavam paradas desde 2013.

No topo disso tudo, minha aparência: um rapaz de 26 anos, assumindo um cargo de chefia em uma instituição com orçamento anual milionário para orientar o gerenciamento de obras que constantemente passam da cifra de milhão, cheio de piercings, e uma aparência de “rockeiro” (coisa que eu não sou, mas que constantemente associam a mim). O resultado: ninguém me levava a sério, a não ser meu chefe que é quem tinha me contratado. As reuniões com as equipes da OS eram desgastantes, constantemente caminhavam para termos exaltados e escandalosos, beirando o desrespeito. Era desgastante. Eu passava horas e horas abrindo caixas de arquivos, estudando os processos, lendo documentos no computador, lendo projetos, constantemente estendendo as horas no escritório até altas horas da noite, constantemente saindo do escritório depois da meia noite, tudo para tentar entender os rumos que precisavam ser tomados, para ser desqualificado em reuniões por causa da minha aparência. Eu tive que provar que eu sabia o que eu estava fazendo, indo para todas as reuniões com um calhamaço de leis impressas, grifadas nas partes importantes, as quais eu constantemente tinha que mostrar nas reuniões pra provar meu ponto. Chegou um ponto das relações que tive que, por diversas vezes, dizer “o responsável legal por isso sou, portanto isso vai ser feito da maneira que eu estou apontando. É a maneira dentro da legalidade, a não ser que você queira responder um processo por isso”. O desgaste foi tanto que toda a equipe de operações da época foi trocada durante os 6 meses depois da minha nomeação ao cargo. Aí as coisas começaram a andar.

Meputi em 2023

E infelizmente o jogo político em São Paulo muda muito, e muito rápido, e os cargos de diretoria da FTM constantemente tem seus ocupantes trocados pelos mais diversos motivos, e uma diretoria sempre entra querendo se mostrar como oposição absoluta à anterior. Estou aqui na minha 5ª gestão, e para cada novo diretor que entra eu tenho que provar que eu sei o que estou fazendo. Um dos diretores que passou por aqui, questionava absolutamente qualquer posicionamento meu, de uma maneira pejorativa, sempre adicionando perguntas como “há quanto tempo você se formou mesmo?”, “qual faculdade você fez mesmo?”, “há quanto tempo você ocupa este cargo?”. Uma outra diretora certamente me chamou pra uma reunião dizendo se tratar de um assunto, e quando entrei na sala dela, ela já foi logo soltando “olha eu sei que você tinha uma relação pessoal com o diretor anterior, as fofocas correm por aí, quero saber de você se você tem algum problema pessoal com essa troca de gestão”, apesar desse começo tempestuoso, quando ela entendeu que eu sou capacitado pra posição que ocupo, ela passou a confiar em mim inteiramente.

As relações do meu cargo sempre acabam me colocando de alguma maneira em contato com gente que nunca veria alguém com tantos piercings como eu, em condições “normais”. É o caso de uma das obras que estou tocando atualmente: a finalização do Edifício dos Corpos Artísticos da Praça das Artes. Essa obra, de um orçamento robusto, me fez ter contato com uma das empresas públicas do município. Em intermináveis reuniões cheias de homens religiosos heterossexuais brancos de camisa social, são decididas as destinações de verbas milionárias. Por muitas vezes essas reuniões são inteiramente tocadas por mim, que destoo do restante da equipe, pela aparência, modo de falar, roupas, entre outras coisas.

Em resumo, sendo quem eu sou, constantemente tenho de me reafirmar como profissional competente, uma vez que a primeira vista, eu sou apenas o “cara cheio de piercings”.

Muito além do “cara cheio de piercings”

FRRRKguys: Você tinha alguma referência na arquitetura de alguma pessoa dissidente/freak?
Meputi:
Não exatamente, mas sob alguns aspectos sim. Infelizmente o ofício da arquitetura ainda tem um desenho social do homem branco, de idade avançada, vestindo roupas sociais, ou, no caso mais extremo, uma camiseta preta. Dentro da academia, as mulheres mesmo as que estão dentro dos padrões da sociedade sofrem pra conquistar um espaço. Na mídia geral, quando se fala de arquitetos, as fotos em preto e branco de homens sisudos são exaltadas. Na faculdade, os professores, em sua maioria, pareciam ter sido fabricados em série, com estilos, roupas e pensamentos arcaicos, defendendo com unhas e dentes uma escola modernista que nem mesmo existe mais. Até mesmo os professores mais jovens se adaptavam pra reproduzir o mesmo modelo geral, que hoje eu reconheço inclusive em muitos dos meus colegas de profissão.

Mas nem tudo é tragédia, felizmente tive alguns arquitetos e arquitetas que passaram pela minha trajetória e me marcaram de alguma maneira: Dominic Fretin, Luiz Telles, Juan Cabello Aribas e Ruth Verde Zein.

Apesar de nenhum destes citados serem exatamente enquadrados como freaks (o mais próximo disso é o Juan, que como já citei é todo tatuado, mas eu duvido que ele mesmo se definiria desta maneira), são pessoas que ou tem/tiveram relações LGBTs e/ou pensamentos radicalmente transgressores, ou pelo menos que eu os via assim.

Dominic Fretin foi um dos primeiros professores que eu tive contato na faculdade. Alto, careca, com um bigode marcante que dava a ele um aspecto caricaturesco, e um modo de falar quase cantado, me cativou logo de cara. Foi um dos professores que eu passava horas conversando sobre cinema. Ele um cinéfilo apaixonado, e profundo conhecer de tudo de melhor e de pior que o cinema no Brasil e no mundo podem oferecer, fala por horas sobre os filmes mais absurdos dos quais eu nunca tinha escutado falar, me apresentou diversos artistas, obras de arte, e, uma vez que fui pra aula de saia, ele me mostrou a performance na qual o artista Flávio de Carvalho, na década de 1950, percorreu o Viaduto do Chá, trajando uma camisa com faixas transparentes e uma saia, que segundo ele seriam “as roupas adequadas ao clima tropical”.

Luiz Telles, um dos projetistas do Centro Cultural São Paulo, abertamente gay, e extremamente apaixonado pela vida e pela arte. Foi o primeiro “arquiteto gay” que pude conhecer. Com seu trabalho de doutorado sobre pixo e grafite em São Paulo, mudou a forma que eu via a cidade. Sempre na vanguarda de ideias, com um posicionamento arquitetônico muito diferente do restante dos outros professores que eu tinha, ele certamente ressignificou a imagem que eu tinha que os arquitetos LGBT deveriam esconder suas sexualidades. Tive o prazer poder me aproximar dele no final de sua vida, que infelizmente terminou cedo demais.

Ruth Verde Zein, foi minha orientadora do TCC, e é uma das mais importantes pesquisadoras de arquitetura do Brasil. Com livros escritos, sempre solicitada em congressos no mundo todo e opiniões divertidíssimas sobre os arquitetos, ela se posiciona como uma arquiteta feminista muito fortemente. Ruth é dessas pessoas que é impossível você não admirar. Ela fala com propriedade de pesquisadora, e adiciona aqui e ali uma fofoca presenciada por ela mesma sobre o assunto em questão. Me apoiou muito quando ingressei na FTM, pra quem vez ou outra eu ligava pra desabafar.

Já o Juan é o que mais destoa desse grupo. Com um espírito de artista, desbocado, um pouco impulsivo, e sempre todo coração, adorava questionar a academia brasileira de arquitetura. Tendo uma formação em Madrid, com outras referências, sempre entrava em embates com os arquitetos brasileiros. Muitos não entendiam o que ele queria trazer como propostas. Os trabalhos esteticamente bem diferentes, com uma apresentação nada brasileira e sempre com muitas referências à vegetações tropicais, me causaram um encanto. Juan dizia que ele mesmo queria ser uma “Carmem Miranda contemporânea”. Apesar das constantes críticas ele ama o Brasil, estudava muito sobre o país, sua arquitetura, as conjunções sociais, e trazia na pele referências das quais gostava e que achava que representava o país: tatuagens de folhagens, costelas de adão, bananas, frutas… entre outras obras de arte. Certamente é uma das pessoas que mais me influenciou no modo como vejo a arquitetura e penso na minha atuação, além de ter me mostrado que não preciso exatamente me enquadrar em um padrão determinado pela sociedade pra ser visto como um arquiteto, mas há consequências.

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