Ir e vir: quais portas se abrem para o corpo freak?

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Foto: reprodução/Instagram

“Engraçado que tudo isso chegue agora em tantas conversas pelo menos em Nova York, e espalhe-se na imprensa, quer seja em um tom de horror (“Olha o que estão fazendo com seus corpos!”) ou com um tom de menosprezo (“Ah, são só um bando de marginais, primitivos modernos, alienados ou rejeitados por uma América que se torna cada vez mais exclusivamente high-tech”).”
Contardo Calligaris

A epígrafe utilizada, retirada de um artigo presente no livro Crônicas do individualismo cotidiano (Ática, 1996) do escritor e psicanalista Contardo Calligaris (1948-2021) foi publicada originalmente no New York Newsday em 1995.  No texto, o autor pede que deixemos de lado o escândalo hipócrita, em relação ao que as pessoas fazem com seus corpos, lembrando-nos que as modificações corporais são parte de uma cultura milenar, presentes em diferentes tempos e espaços. Anos e anos se passaram – quase de repente 30 – e ainda não conseguimos sair dessa corrida frenética em círculo, dentro de um sistema em que impera a normatividade compulsória.

Já há um tempo venho observando as notícias que são encaminhadas para as minhas redes e dispositivo móvel, com base na leitura que é feita pelos algoritmos das movimentações que realizo online. O mês de dezembro, em particular, foi marcante. Havia uma repetição insistente de notícias que relacionavam pessoas com modificações corporais com arrependimento, vício e violência. Temáticas clássicas, já bastante datadas e gastas, mas que o jornalismo genérico e hegemônico adora quando trata das modificações corporais. Certo, não serei tão crítica, aparentemente abandonaram e superaram (ou esqueceram) da também bastante celebre pergunta do “mas dói?”, avançamos… Não.

Toda essa chuva de publicações que chegou até mim, me fez muito pensar sobre o direito de ir e vir “garantido” na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Quais portas se abrem para o corpo freak, para que de fato possamos ir e vir (ainda que em nossos territórios)? E é importante dizer o óbvio, por exemplo: que ir e vir é um direito humano fundamental; que todo corpo é uma pessoa. Em 2023 ainda se faz necessário marcar e demarcar essa questão – toda pessoa é/tem um corpo – pois visivelmente ela não foi entendida. Alguns corpos – como o freak – ainda não conquistaram o status da humanidade. Quanto mais freak, mais desumanizade. Ninguém liga.

Faço o convite agora que vocês entrem em uma ferramenta de busca – pode ser o da Google mesmo – e digitem o nome de Melissa Sloan. Daily Star, The Mirror, BHAZ, Extra Globo, Pais & Filhos e tantas outras empresas jornalísticas, mundo afora, falaram dela. Vão aparecer inúmeros resultados de busca, em diversos idiomas contando o seu caso. Aparentemente há um texto original que vai sendo colado, mixado e replicado sem exaustão e sem ponderação.

Busca realizada em janeiro de 2022

Qual história é contada sobre Melissa Sloan? Bem, Melissa é mãe, tem 45 anos de idade, vive no País de Gales, Reino Unido, e tem muitas tatuagens visíveis, incluindo no rosto. As matérias, que costumeiramente vendem uma suposta neutralidade, vão repetir que ela é viciada em tatuagens, ideia sustentada com uma frase dita pela própria Melissa, que alega ser chamada de “Melissa louca” (sic). Percebam que não há neutralidade alguma de veículos que atendem os interesses estéticos, econômicos e políticos da hegemonia. Fica ali no ar uma possível patologia, um desvio… Não é muito implícita a coisa. Você fez a busca do nome dela no Google?

Pelo tom das matérias, fica explícito que a Melissa é alvo de múltiplas violências. Ela não consegue acessar o mercado de trabalho, como também não pode frequentar bares locais e foi privada de assistir a apresentação de natal de sua filha na escola. A direção da escola orientou que ela assistisse pelo lado de fora, através de uma janela. Como quem diz, embebido pelo espírito cristão natalino: olha você é monstruosa demais para estar entre nós, arautos da normatividade compulsória, da moral e dos bons costumes. É…

Curioso que embora Melissa Sloan seja vítima de tantas violências, naquela imparcialidade falsa e perversa jornalística, as reportagens se concentram em construir uma narrativa em que a culpabiliza por tudo. O corpo modificado dela é o problema. Utilizam palavras em negrito como vício, obsessão e fazem montagens com fotos dela antes e depois das “tatuagens faciais assustadoras” (sic). O que tudo isso quer dizer exatamente? Sei bem, sei bem…

Ninguém questiona que tipo de formação essa escola oferece para as crianças ao tratar uma mãe de maneira tão brutal. Ninguém questiona o motivo do mercado de trabalho ainda ser regido por um modelo arcaico e excludente (racista, misógino, LGBTfóbico, capacitista, gordofóbico e etc). Ninguém questiona porque ainda em 2023 segregamos pessoas – por conta de seus corpos – de espaços sociais e coletivos. Nada. E as ausências dessas questões deixam presentes muitas coisas: segregação, exclusão, violência, discriminação, desumanização, etc, etc…  É.

O caso de Melissa Sloan não é isolado. O também britânico Matthew Whelen, 42 anos, conhecido internacionalmente como um dos homens mais tatuados do Reino Unido, contou ao The Mirror que foi impedido de entrar numa boate e em alguns restaurantes em Sidney, Austrália. Amy Smith, 23 anos, de Leicester, Reino Unido já esteve circulando na imprensa também denunciando discriminações sofridas na escola dos filhos. O francês, Sylvain Helaine, 36 anos, foi proibido de trabalhar como professor. Em 2014, o alemão Rolf Buchholz, 62 anos, teve a entrada negada em Dubai, Emirados Árabes Unidos, onde se apresentaria com o Cirque Le Soir.

Se faz importante marcar que estamos falando acima de pessoas modificadas que são brancas, europeias, heterossexuais, cisgêneras e sem deficiência… Façam o exercício de refletir sobre toda essa discussão em outros recortes de raça, cor, etnia, origem, gênero, deficiência, classe… Pois é. Não para estabelecer um ranking de quem sofre mais, mas para expor o tipo cruel de mundo que temos configurado para as pessoas, principalmente quando olhamos para as dissidências de modo interseccional. Eles e elas que estão ligados com os interesses hegemônicos não se importam, a gente é que precisa se apropriar da discussão e se importar: é sobre nós!

Nós – as pessoas freaks, as monstras, as demônias, esquisitas aberrações da antinatureza – que habitamos as periferias da periferia do capital, sabemos que as portas não se abrem para os corpos e corpas freaks. Elas nunca estiveram abertas. Nós sabemos que o nosso direito de ir e vir é cerceado com arame farpado dentro desse mundo trincado. E é justamente por isso que aprendemos a não esperar as portas se abrirem, mas sim, catamos a malícia de entrar pelas brechas, frestas e rachaduras. As portas assim como algumas mentes nunca se abrirão.

Que se explodam (as portas e mentes fechadas). Nós não temos o privilégio do tempo. Não temos tempo de esperar e nem para perder. Azar o deles e delas. Nós seguimos caminhando entre vocês. Entrando pelas fendas, buracos, rachaduras. Indo e vindo e retornando… Sempre retornando.


REFERÊNCIAS

Tattoo addict mum ‘forced to watch child’s nativity from window’ due to extreme look
https://www.dailystar.co.uk/real-life/tattoo-addict-mum-forced-watch-28771373

Mulher é proibida de assistir a peça natalina na escola da filha por causa de tatuagens faciais: ‘Assustadoras’
https://extra.globo.com/noticias/page-not-found/mulher-proibida-de-assistir-peca-natalina-na-escola-da-filha-por-causa-de-tatuagens-faciais-assustadoras-25633082.html

Mãe é impedida de ver apresentação de Natal na escola da filha por ter tatuagens “assustadoras”
https://paisefilhos.uol.com.br/familia/mae-e-impedida-de-ver-apresentacao-de-natal-na-escola-da-filha-por-ter-tatuagens-assustadoras/

Mulher ‘viciada em tatuagens’ é proibida de ver apresentação de Natal da filha
https://bhaz.com.br/noticias/internacional/mulher-viciada-tatuagens-proibida-apresentacao-filha/

Sem conseguir emprego, viciada em tatuagens agora é barrada em bares
https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2022/12/12/sem-conseguir-emprego-viciada-em-tatuagens-agora-e-barrada-de-bares.htm

Homem é proibido de entrar em boate na Austrália por ter rosto totalmente tatuado
https://br.vida-estilo.yahoo.com/homem-%C3%A9-proibido-entrar-em-070045154.html

Man ‘turned away from nightclub’ after spending thousands on face tattoos
https://www.mirror.co.uk/news/weird-news/man-turned-away-nightclub-after-28803868

Mãe tatuada denuncia discriminação na escola dos filhos
https://www.metroworldnews.com.br/estilo-vida/2021/12/06/mae-tatuada-denuncia-discriminacao-na-escola-dos-filhos/

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