Mariê Marques se despede dos concursos de miss tattoo

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Mariê Marques abre o coração sobre sua trajetória enquanto miss tattoo. Foto: acervo Mariê

Os concursos de miss tattoo que acontecem em convenções e festivais de tatuagem nunca nos interessam muito, é verdade, por incontáveis motivos. A objetificação histórica das mulheres presente nesses eventos e a manutenção de conceitos de belezas hegemônicos nos causavam desconforto. Também é verdade que décadas atrás a tatuagem não estava na caixa do conceito de beleza hegemônico, havia algo de contracultural e até subversivo, mas os tempos são outros… E aqui não há um julgamento moralizante se antes era melhor do que agora, mas apenas a constatação de que vivemos em outro tempo em que a tatuagem é artigo estético assimilado e – em muitos casos – de luxo.

Eis que no meio de tanta padronização, objetificação e assimilação assistimos a entrada de uma modelo trans no concurso. E é como se naquele momento esse esquema fosse hackeado. Foi muito importante para nós – enquanto comunidade da modificação corporal e para além dela – assistir as jornadas de Mariê Marques pelos concursos de miss tattoo, sabendo que o meio da tatuagem tem uma ala bastante conservadora e LGBTQfóbica. Considerando ainda o significado simbólico de ter uma – repito: uma – mulher trans disputando um concurso de beleza no país que mais mata mulheres trans e travestis. São tantas leituras que podem ser feitas…

De longe assistimos tudo isso como espaço fértil de disputa de narrativa dos corpos dissidentes e, ainda, entendendo na prática a estética com toda sua potência política. Não sabíamos até onde isso iria, quantas portas e janelas poderiam se abrir (ou se fechar), mas ao que parece esse capítulo aos poucos vai chegando ao fim.

Mariê Marques é uma tatuadora brasileira e a primeira mulher trans que venceu um concurso de miss tattoo. Ela participou de diferentes concursos e recentemente anunciou que não participará mais. E foi assim, que resolvemos conversar com a modelo para saber um pouco mais sobre a sua decisão e também sobre seus projetos futuros. Ouvir sobre sua experiência é muito importante.

Antes de seguir com a sua leitura, gostaríamos de reforçar que vivemos no país que mais mata travestis e mulheres trans. Guarde essa informação em sua mente e leia o relato de Mariê. Agradecemos demais pela partilha de suas histórias e desejamos muita boa sorte em seus projetos futuros.

Confira abaixo a nossa conversa e uma retrospectiva da miss.

Mariê com a faixa de Miss Tattoo. Foto: acervo Mariê

FRRRKguys: O que os concursos mudaram na sua vida?
Mariê Marques: Nunca me vi em cima de uma passarela, muito menos desfilando e concorrendo a um título de miss. Miss, como eu sempre disse, me lembra aquelas meninas perfeitas, princesas, padronizadas, como uma Barbie!  
Eu sei que sou perfeita em tudo que faço. risos
Caráter, simpatia, harmonia, educação, beleza, sensatez, representatividade, empoderamento e muita coragem. Por que coragem? Coragem eu digo pelo fato de eu me infiltrar em concursos ditos para mulheres (mulheres cis), porque você tem que ser trans e estar no meio pra sentir o que senti.
Pela minha experiência na passarela vi e ouvi muita transfobia vindo de outras concorrentes, ali somos concorrentes. Não de todas.
Eu me entristeci, me magoei, nunca consegui ir sozinha a um desfile pois sabia que uma ou outra ia me atacar com a maior educação possível com perguntas indevidas que pra mim me fazia mal. Porém, o concurso me mostrou pela minha força o tamanho da mulher que eu sou, da força que eu tenho, da vontade de vencer que sempre tive. Saio levando muita admiração por algumas amizades e tudo, mas por outros levo ranço e nojo, queria nem ter conhecido.
Os concursos que participei Tattoo Week Rio e Tattoo Place me mostraram que a mulher tem sim que matar um leão por dia pra ter seu espaço, seu respeito, seu direito de ir e vir e tive que jogar na cara de muitos o fato de eu ser uma mulher. Tive obrigacão de argumentar, discutir, sai com gente me detestando por não entender a minha dor e a minha vontade de estar ali. O quanto era importante pra minha carreira como tatuadora, modelo e como mulher. Levo experiências, levo empoderamento e levo muita, muita força, pois como disse, foi ali que me vi obrigada a lutar mais do que já luto todos os dias. Sai muito forte e digamos que tricampeã, né? Mesmo sendo coroada uma só vez.

Mariê com a faixa de Miss Tattoo. Foto: acervo Mariê

FRRRKguys: Por que decidiu parar?
Mariê Marques: Primeiro que em 2020 meus palcos serão outros (tentei o BBB, imagine eu no BBB?). Meus projetos estão aí, vem novidades muitos boas e eu não teria tempo também de me preparar pra desfilar em miss tattoo. Já conquistei o meu espaço nesse meio, agora vamos pra frente, evoluir mais e mais.
Decidi também parar pelo fato de que minha saúde mental vale mais. Sou a primeira travesti/trans, como quiser entender, a ser coroada como uma princesa da tatuagem, uma miss tattoo. Então, acho que meu papel nesse meio foi super necessário pra mostrar que trans e travesti pode e vai estar onde quer que seja… Mulheres querendo ou não, homens querendo ou não.Onde passo até hoje sou lembrada como  a miss da tatuagem, onde quer que eu vá. É muito orgulho pra mim representar diversas meninas, diversas trans pelo Rio e pelo Brasil como influenciadora e YouTuber. O meu título é reconhecido no Brasil e até mesmo fora dele. Fui estampa do maior jornal do Brasil, uma trans estampada como miss em um Jornal com grande circulação e como artista não é sempre que vemos isso. Por isso que sempre falo, sou a primeira miss tattoo trans do Brasil e do mundo. E me orgulho de ter levantado a bandeira todas as vezes que pude. Mesmo tentando ser boicotada sempre eu não desisti. Agradeço muito ao Tito que é o dono do grupo Tattoo Place por ele ter me tratado tão bem. Não vou falar de todos porque não posso, mas a ele sou grata pois me tratou como humana, independente de tudo. 

Mariê com a faixa de Miss Tattoo Place 2018. Foto: acervo Mariê

FRRRKguys: O que você espera para o seu futuro e para o futuro desses concursos?
Mariê Marques: Espero que já que são impostas regras que elas sejam seguidas, que julguem com honestidade e com verdade. Mas como concurso de beleza não é diferente e o miss tattoo é um conjunto de empoderamento, força, cena da tatuagem, representatividade da mulher e, na época, performance artística. Quando participei (nunca entendi um concurso de miss onde você tinha que performar), porém, fiz minha parte enquanto participei e quero muito poder ver outras trans lá, com coragem, porque as portas eu abri e, agora, vamos meninas: se joguem!
Mas agora é exigido gênero nos documentos pra participar como no atual regulamento de um dos próximos concursos. Achei um absurdo até pensei em participar como homem, já que meus documentos não estão ainda em mãos (pois minha retificação é muito recente). Por que eu tenho que provar ser mulher pra participar? Parece que eu inteira não provaria isso. Porém, não me prestaria a isso, então, preferi não participar, mesmo falando com a organizadora e ela dizendo que não tinha problema, eu não me senti segura sem documento pra provar que sou mulher, já que isso é importante. Espero sensatez, empatia, verdade, união, isso é muito necessário nesses concursos, que todas que participem, sendo cis ou não, lembrem-se que todas nós mulheres temos que nos unir e aos que são envolvidos com tatuagem entendam que vocês não devem reprimir, diminuir, zombar de ninguém pois vocês sofrem, são marginalizados, ainda por serem tatuadores. O preconceito está diminuindo mas sabem que sofrem.  

“Machismo mata” desfile protesto. Foto: Marcelo Mirrela
Durante o desfile de miss tattoo. Foto: Joseph Silva
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