Nimona e nós, as montras…

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No dia 30 de Junho estreou no catálogo da Netflix a animação Nimona, produção britânica-estadunidense, dirigida por Nick Bruno e Troy Quane. Estamos falando de um filme que foi rejeitado pela Disney e que acabou sendo desenvolvido por uma produtora independente, a Annapurna Picture. Traz no elenco principal Riz Ahmed, como Ballister Boldheart, e Chloë Grace Moretz, como Nimona. Conta ainda com a participação de Eugene Lee Yang, RuPaul e Indya Moore.

O texto daqui em diante terá spoiler, caso seja um problema para ti, recomendamos a interrupção da leitura até que o filme seja assistido. É um filme que precisa ser assistido por você sozinhe, ou com a sua família, amigues… É um filme que precisa ser assistido.

A sinopse do longa diz que:

“Acusado de um crime trágico, um cavaleiro pede ajuda a uma adolescente para conseguir provar sua inocência. Mas o que acontecerá se ela for o monstro que ele jurou matar?”

As palavras daqui em diante partem da percepção de uma monstra. Se faz importante realizar essa marcação.

Bem, a história de Nimona se passa em um período medieval futurista e está concentrada no que é chamada a Instituição. É a configuração de sociedade da trama que precisa ser defendida e protegida das ameaças do que estão de fora (os monstros) e do que estão dentro (pobre que busca ascender socialmente). Cria-se um tipo de cenário visualmente bastante específico e uma ficção que dialoga bastante com a nossa realidade. Principalmente a realidade de nós, as monstras…

Obviamente que de imediato chama a atenção o fato do protagonista do longa, Ballister Boldheart, ser gay e uma pessoa não branca ou, em outras palavras, o longa ser concentrado em um romance abertamente homoafetivo e inter-racial desde os primeiros minutos, considerando que seu par é de ascendência asiática. É tudo apresentado de forma muito orgânica e aberta. Há de se pontuar ainda que o protagonista também é uma pessoa com deficiência e utiliza uma prótese no braço. Será por essa razão, isto é, a afirmação positiva das diferenças que a Disney não sustentou a aquisição da obra? Exige coragem para sustentar uma animação assim.

Nimona da Netflix, 2023. Foto: reprodução
Nimona da Netflix, 2023. Foto: reprodução

Certamente dentro da inicial perspectiva maniqueísta da trama, isto é, a disputa entre o bem e o mal, a guerra entre o herói e o vilão gera milhões de debates e reflexões. O filme provoca que a gente pense e repense sobre nossos mitos fundadores, no masculino mesmo, considerando que a nossa grande história foi contada por homens e sobre homens. O quanto esses mitos fundadores, em nosso caso brasileiro, é responsável pelo extermínio das diferenças e sustentam, até hoje, desinformações e pânico moral. E é aqui que o filme vai conversando mais conosco, as monstras…

Outro ponto central que a obra debate é o quanto certos grupos de pessoas serão sempre tratadas como vilãs ou no mínimo com suspeita. Dentro da dita lógica maniqueísta do filme e do mundo, sabemos quais corpas e corpos são vilanizados. Há uma construção política e de imaginário para que isso ocorra, que envolve inclusive produções do audiovisual. O professor doutor Jack G. Shaheen foi um grande estudioso sobre essa pauta, isto é, estereótipos raciais e étnicos utilizados para tornar pessoas vilãs. Assim como temos o professor doutor Adilson Moreira que vai elaborar uma profunda reflexão sobre o racismo recreativo, atravessando sua elaboração pelas produções audiovisuais e seus impactos reais nas vidas das pessoas negras.

Nimona é uma monstra. Avessa em ser tratada ou chamada enquanto tal, nós as monstras, sabemos o peso disso… Fatigada de responder perguntas bobas sobre o que ela é, nós as montras conhecemos as intenções e os caminhos que essas perguntas querem chegar ou levar… Ela é sagaz, tem a malícia de sair das perguntas bestas com humor e deboche… É uma das vias, que nós as monstras, encontramos para lidar com situações indelicadas e indigestas. Ou que envolvem diretamente a nossa sobrevivência.

Nimona da Netflix, 2023. Foto: reprodução

Ela tem alguns piercings em suas orelhas e a capacidade de se metamorfosear. Esse ponto é precioso para gente que tem na metamorfose parte fundamental da nossa existência. Enquanto pessoa freak me fisgou, enquanto pessoa trans mais ainda… Os textos e discussões sobre esse ponto são gigantes. Quando por exemplo, Nimona e Ball estão no metrô, ela metamorfoseada em um gorila e ele a encarando incomodado, em seguida pedindo para ela ficar normal. Ele justifica dizendo que acha que seria mais fácil se ela estivesse como uma garota, parecendo humana, e a resposta cirúrgica de Nimona chega: ficaria mais fácil para quem? Fora da ficção, o incomodo que as pessoas normativas têm com as pessoas dissidentes-monstras ao circularem em espaços públicos, foi muito bem representado no filme. Quantas vezes já passei por isso? Quantas vezes tive que me anular para deixar as pessoas mais confortáveis em estarem na minha presença monstruosa? Hoje, assim como Nimona, não negocio mais. Levou tempo para aprender. E sustentar.

Dos diálogos e cenas primorosas, ainda no campo da metamorfose, recortamos a seguinte:

“Ball: Qual a sensação (…) Isso de mudar de forma. Dói ou… Perdão. Pergunta besta.
Nimona: Sinceramente? Eu me sinto pior quando não mudo. É como se me desse um comichão. Sabe o segundo logo antes de espirrar? É tipo isso. Daí eu me metamorfoseio e me liberto.
Ball: E se você resistir? Se não se metamorfosear?
Nimona: Eu morreria.
Ball: Santa Gloreth, que horror!
Nimona: Deixa de ser ingênuo. Não é que eu morreria, mas eu também não estaria vivendo.”

Para nós que nos modificamos, transicionamos, nos metamorfoseamos é esse o lugar. Por isso cansa tanto as perguntas bobas das razões, as necessidades dos significados, as justificativas que esperam para que nos validem ou não. Lindamente o longa literalmente desenha ao público: se metamorfosear é não apenas sobre viver, mas existir expandindo em possibilidades e potencialidades. Para nós, não há outra forma. Nimona é uma grande e poética alegoria sobre transformações, transmutações e transições.

Embora Nimona seja bastante forte, destemida e debochada. A sua estória carrega o peso da solidão, rejeição e do não-lugar e a dor, que ela própria diz, supera a física. Há uma crueza em apresentar o quanto o ódio – que sentem por ela – faz Nimona sofrer, principalmente quando este vem das crianças. E é aqui que recortamos mais um diálogo bruto:

“- Viu como aquela garotinha me olhou? Crianças. Criancinhas. Elas cresceram acreditando que podem ser heroínas se fincarem uma espada no coração de algo diferente. E eu que sou o monstro?”

Forte. Provocativo. Apresentar como a configuração de mundo que se apresenta na ficção, e também a que experimentamos, torna algumas vidas precárias e matáveis sem que ninguém questione e se importe. A regra é exterminar o que é diferente de mim. E nós somos as monstras…

Há uma sagacidade no roteiro ao dizer que os monstros entram pelas brechas. E que a primeira brecha aberta nas muralhas da Instituição, segundo as palavras da Diretora, foi quando a Rainha aceitou quem um menino de rua pudesse empunhar a espada e se tornar herói. Ah! a luta de classes, há luta de classes… Antes de Ball ser culpabilizado por um crime que não cometeu, toda sociedade da Instituição já o desprezava e o odiava. E é uma monstra, também a priori culpabilizada e odiada, que vem colaborar para que o véu da hipocrisia seja queimado naquela estrutura social.

Nimona fala de diversos assuntos fundamentais de modo explícito e corajoso. Tem encantado os públicos que acessam a obra. Mas tenho a impressão que para nós as monstras, ele flecha de um modo singular…Pega-nos em outro canto. A gente ri. A gente chora. A gente respira fundo. A gente se encanta.

É de fato um filme que precisa ser visto por todes. E debatido, dialogado, pensado… Há um campo fértil político dos afetos que a obra abre.

Entremos!

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