Notas sobre “Manifesto Freak: canto das aberrações”

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Dois mil e vinte quatro é um ano especial para nós da comunidade freak. Muito especial e simbólico para nós do FRRRKguys em particular.

Dois mil e vinte quatro é o ano em que o FRRRKguys completará dezoito anos de atividades, e ainda, teremos os dez anos do Grupo de Estudos Sobre Modificações Corporais – GESMC, dez anos da partida de Enzo Sato (1987-2014) e vinte anos da partida de Felipe Klein (1983-2004).

Coincidência ou acaso, ou aquilo que a razão não explica, somando ao simbólico do ano, dois mil e vinte quatro começou com uma ocupação no Sesc Av. Paulista de corpas e corpos freaks. Manifesto Freak: canto das aberrações foi uma performance coletiva que aconteceu nas sextas-feiras de janeiro dentro da exposição Tornar-se ORLAN. Daqueles raros momentos de subversão da lógica dominante, saímos das bordas, das margens e de fora. Estávamos ali, dentro, inteiramente presentes. Transbordando presença.

Manifesto Freak: canto das aberrações. Foto: Leonardo Waintrub

Emilia Aratanha, Karine Guimarães, Thata, T. Abitante e T. Angel ocuparam aos cantos da galeria e em diferentes idiomas realizaram a leitura do Manifesto Freak. Português, espanhol, francês e inglês e tudo misturado com sotaques e molejos que somente as nossas línguas latinas, esquisitas, perfuradas e bipartidas podem fazer.

A sinopse de Manifesto Freak: canto das aberrações diz:

“Em cantos. Partindo do texto Manifesto Freak, cinco performers ocupam os cantos da galeria de arte com suas corporalidades e subjetividades esquisitas. Cada qual, em seu próprio tempo, com suas línguas soltas, bipartidas e perfuradas entoam os cantos das aberrações. As mãos também cantam. Vozes, cantos, silêncios, línguas e palavras que agem no tempo e espaço. Chamamento orquestrado e coreográfico – antinormatividade compulsória – das e para as malditas da história. Cantos. Bandos. Bardos.”

Manifesto Freak: canto das aberrações é mais uma metamorfose de um texto escrito em 2015, o tal do Manifesto Freak. Palavra é palavra que age, aprendemos com os Kaiowá, mas ainda assim não cansamos de nos surpreender e nos maravilhar. Metamorfoses.

Foram quatro dias intensos e bonitos e que transbordaram encontros, reencontros e o desejo de nunca deixarmos de nos encontrar enquanto multidões queer, freaks e monstras. Há uma potência de afeto que carrega a bateria da vida. Forte.

O backstage da gente esquisita. Foto: Leonardo Waintrub

No primeiro dia a gente falava da dificuldade que foi estudar o texto para acioná-lo em público. Da emoção que enchia os nossos corações e lavavam os nossos olhos (e espírito). Será que vamos conseguir ler sem chorar? Não que fosse algum problema derramar nossos fluídos naquele espaço-tempo tão singular. Rimos. Deixe fluir.

Choramos. Salivamos. Suamos. Sangramos. Fluímos.

Foram quatro dias e que cada qual de nós cinco vai levar essa experiência para sua vida de um modo particular. Vai ter uma memória favorita, um momento que deixe mais saudade, mas algo me diz que saímos diferente do que entramos e, só nisso, já ganhamos muito. Metamorfoses.

Interessava-nos muito em saber enquanto – extensão da presença – reverberação e afetamento o impacto em cada artista enquanto reflexo da participação da performance. Compartilhamos abaixo uma captura dessas sensações e ecos de vida. Dois mil e vinte quatro é muito simbólico e especial. 

Sangue sobre Manifesto ao fim das quatro apresentações. Foto: T. Angel

Fotos abaixo por Caique Leon.

Palavras de T. Abitante

“Ao receber o convite pras performances no sesc e decidir reler o manifesto fiquei inicialmente espantady com a data da escritura e depois com sua ainda atualidade no temas da luta pela diversidade. A primeira coisa que senti ao ler foi como se uma pequena corrente percorresse meu corpo, quase não consigo terminar de ler sem chorar. Me espantei sobre a minha própria história de ter tido a oportunidade de tomar contato com o texto tão cedo e me sensibilizou o quanto tempo estava longe dessa vivência de mim.

Passar pela academia e passar pelos preconceitos que passei tentando criar a partir de modificações e depois na tentativa de inserção no mercado de trabalho foram coisas que me travaram profundamente e acabei por me afastar tanto da comunidade freak (da qual questionava se pertencia por não conseguir meios para me modificar pra além do medo de não absorção pelo mercado) como do meio da arte. Isso começou  a se transformar de fato depois da minha transição para não binariedade. Reler o que li quando tinha 28 e ver ali todos os pedaços de mim que tinha enterrado fundo ganhando força de palavra no mundo foi muito emocionante. Me vi ali representady em meio a uma diversidade nossa.

Ler para o público enquanto dizia aquela leitura também para mim, poder olhar nos olhos das pessoas e ver uma pequena reação em seus rostos, ouvir a minha própria voz e a as vezes de quem estava próximo foi uma experiência bastante complexa. Entre o ato de entrar no estado performático até observar os efeitos posteriores que iniciam tem uma multidão de pequenos processos. 

No momento das leituras me senti confiante, quase estranhando o volume e a potência da voz que uso pouco;.Cognitivamente as vezes é difícil compreender palavras de forma correta e  tenho alguma dificuldade de verbalizar e organizar frases, às vezes ler e escrever é um pouco mais fácil por ter mais tempo de absorção e construção. Apesar de estudar e praticar performance, desde 2010, lido com ansiedade social, que em ação desaparece, em parte acredito que a prática da performance me ensinou muito sobre o estar do corpo no mundo e o quanto esse estar em observação ao invés de me engatilhar me deu uma sensação de segurança, que no contexto do canto das aberrações veio acompanhado pelo peso institucional do sesc. Pra além da alegria de ver a cultura freak num lugar de reconhecimento como esse.

Em parte participar daquela performance em um momento em que me sinto colhendo alguns frutos da minha pesquisa (com a qual me reconectei com intuito de voltar a performar em 2021) com as práticas corporais e treinos, agora sinto também contemplado o movimento de afirmação da minha identidade freak/esquisita. A leitura iniciou um processo pequeno, mas notável em algumas situações, de conseguir expor pensamentos e ideias para outras pessoas através da fala de forma mais natural. Me deu a sensação de segurança ao poder afirmar o quanto minha identidade está permeada pela questão das modificações corporais e forma de estar no mundo.

No último dia eu estava já com uma sensibilidade aumentada pela tpm e pelo stress de estar sem moradia fixa com dois gatos sob minha tutela. Quando Thata errou na perfuração eu fiquei com bastante raiva, que é uma parte do processo de sentir uma dor para a qual não estava preparady. Desci as escadas com os olhos lacrimejando e chorei mto durante a primeira metade da leitura, parecia sentir as palavras com mais intensidade, sentia meu corpo duro de tensão por odiar ler em público. A reação das pessoas, quando consegui levantar meu olhar era diversa, acho que só naquele dia me dei conta do quanto aquela emoção se espalhou em muitas pessoas, ver o brilho aumentando em seus olhos também. Nesse momento me faltam adjetivações pra essa última experiência. Sentir a tensão no ar, enquanto retirava lentamente as agulhas e sentia o calor do sangue descer pelo osso do nariz até poder ver as primeiras gotas caindo no papel. Me senti selando um pacto com a liberdade do meu corpo. A cacofonia de textos fechou com muita beleza essa pluralidade de vozes, tons e vivências. 

Eu agradeço demais o convite e por poder participar dessa história das dissidências freak nas artes, esse dia ativa em mim uma força de luta pela existência que às vezes parece já não ter forças pra seguir pelas opressões que um um corpo racializado, trans, nb e freak atravessa por aí. 

Monstruosidades unidas”

Palavras de Karine Guimarães

“Quando recebi o convite da T. pro Manifesto Freak eu estava longe, e meu coração ficou quentinho na hora imaginando nosso reencontro. O Manifesto sempre representou meus ideais, desde quando eu o li a primeira vez em 2015. Em 2018, em meio ao caos político que vivíamos, unimos as forças que nos restava pra lutar contra o fascismo, esse momento foi quando o Manifesto ganhou mais força entonado em nossa voz! Isso me faz ter lembranças profundas daqueles dias sombrios, essas lembranças me assustam, mas ao mesmo tempo aquecem meu coração, porque a gente estava lá, juntes! Dando a cara tapa e com orgulho escancarando nossos ideias, mesmo sem saber o que estaria por vir. Algumas vezes eu escutei, que demos forças pra outras pessoas também, que sentiam que estavam sozinhas dentro dessa linha de pensamento.
Quando comecei a ensaiar o texto para a performance, as lágrimas não paravam de escorrer e eu me perguntava se iria conseguir me apresentar sem chorar, incluso choro agora escrevendo essas palavras que mexem tão profundo com meus sentimentos.

Enquanto eu lia em voz alta, eu podia escutar a entonação das vozes dos nossos amigues que gravaram o manifesto lá em 2018. Percebi que muitas vezes eu lia as frases no ritmo deles, algumas delas já estavam a anos gravadas no meu subconsciente e vieram a tona, o que deixou tudo mais fácil e fluido do que eu poderia imaginar. Eu sentia todes ali comigo quando eu falava, e cada frase fazia mais sentido quando eu levantava meu rosto e via rostos de pessoas freaks olhando pra mim, e o mais emocionante foi ver no brilho dos olhos dessas pessoas, o quanto as palavras do Manifesto também as representavam.”

Palavras de Thata

“Quando soube que em janeiro haveria performances do Manifesto Freak, fiquei contente por abrirem as portas e espaço para escutarem algo que nos representa, nos identificamos e dizer em voz alta, e não o que doutores, especialistas e outros pensam que somos, sem pensar na
diversidade e que cada pessoa é distinta de outra, com gostos, desejos, opiniões, coroas e muito mais, do que apenas um padrão enlatado, rotulado e estigmatizado.
Quando soube, até então, não sabia que também participaria, minha felicidade era por valorizarem o Manifesto Freak que foi escrito em 2015 e publicado em 2016, isso pra mim, era o início de conquistas de trabalhos batalhados há mais tempo do que foi escrito. Antes de janeiro houve também, performances da T. Angel no Sesc Paulista, chamada “Ayer”, onde mais uma vez de todas que consegui prestigiar, fiquei emocionade e maravilhade, com toda a
entrega de corpo e alma, me fascina quando a vejo, e são 15 anos que nos conhecemos e nos conectamos. Tudo isso me traz muitas lembranças, de loucuras, conversas, danças, montação (figurinos), exposições, afeto, acolhimento, assuntos sérios e graves, de tristeza e alegrias, de
lutas, de força, de união para construir essa rede que tende a ampliar cada vez mais.

Em 2018, com as eleições, trágica por sinal, vi tanta força e coragem ao gravarmos um vídeo com alguns trechos do manifesto, realmente como forma de protesto pelo repúdio ao fascismo e por ver pessoas da modificação corporal se mostrarem ser a favor de fascistas, ser fascista, que não há
sentido, na minha visao/opinião, ser a favor de quem quer nos ver mortos, que somos
marginais e que é uma abominação o que fazemos com o nosso corpo de forma consentida, nosso próprio corpo que é político, assim como o seu também é, que nos apedrejam, xingam, humilham, matam, por não gostarem…

Mesmo porque ninguém pediu opinião ou fez algo em alguém sem seu consentimento. Se não gosta, não olhe ou apenas guarde sua indignação para si mesmo, ou se pergunte por quê algo que não foi feito em você te incomoda tanto, ao invés de investir esse tempo de ódio gratuito para algo que você pode fazer por você, em você, e quem sabe assim teríamos mais empatia, compaixão, solidariedade, amor, ao invés de guerras, destruição e poder corrosivo.

Ler o manifesto quando publicado, quando tive vontades, quando participei da gravação
quando fui convidade a participar, para participar em espanhol, as emoções eram sentidas de
várias maneiras, muitas delas eu não queria/conseguia que me vissem por estar vulnerável,
querendo chorar e demonstrar fraqueza para não desmoronar ou perder o chão. Isso soa
estranho para algumas pessoas, pela aparência ou por fora parecer calmo, falar baixo, quando
na realidade, nos pequenos detalhes, estou tremendo, com pavor e pânico por estarem
observando e julgando que esteja sendo feito errado, e isso faz parte da fobia social, e não
drama ou parecer esnobe, e a cada sexta-feira de janeiro de 2024, foram de superações,
esforços e persistência para sentir que sim, eu também sou capaz de muitas coisas, e mesmo
com os imprevistos da vida, eu continuo aqui. Adaptação, evolução, revolução!

“O amor é a resposta, não importa a questão”, essa frase tatuada na T. Angel, me aquece e já
me ajudou a não desistir.

Agradeço de todo coração a todes que participaram, ajudaram, fortaleceram, prestigiaram
presencialmente ou em alguns vídeos. Somos freaks, somos uma realidade!

  • Conseguir na primeira apresentação, mesmo após tremer quando senti estar sendo filmade,
    com coração acelerado e quase deixando o texto cair;
  • Na segunda a ansiedade também estava presente (em todos os dias na verdade), mas ao
    mesmo tempo foi empolgante sentir adrenalina também, por conta de estar ali, indo mesmo
    com medo, e perceber que já não havia mais tremores nas mãos, assim como no primeiro e
    nos demais dias, quando conseguia olhar para as pessoas, e via freaks sorrindo, pessoas
    prestando atenção, isso ajudou bastante, e claro, a iluminação vindo diretamente no meu rosto
    que não focar se estavam olhando e focar no sentimento que me trazia ao recitar;
  • No terceiro dia mesmo com a ansiedade e nervosismo estando menos intensos, notei que
    estava falando mais alto, senti que estava sendo ouvide e não apenas olhando, mais uma
    superação nesse ponto;
  • No quarto e infelizmente último dia, a saudade já estava presente entre nós, nos perfuramos
    antes de descermos para iniciar, e (eu) com alguns “engasgos” na fala pela euforia, quando
    terminamos de recitar e nos encontramos na sala onde se iniciava a performance, tiramos os
    catéters em nossas festas, e sangrando, cada ume em sua linguagem, recitamos alguns trechos
    separados que cada ume havia escolhido para recitar ao final de todas as apresentações e
    finalizamos repetindo “Adaptação, evolução, revolução” diversas vezes, enquanto o sangue,
    nosso DNA, marcavam nossas páginas para registro documentado, histórico e de acervo Freak.
    O que mais a dizer dessa experiência que além de marcante, emocionante incrível, e
    enxergamos também outras maneiras de não parar por aí, continuar com mais idéias para
    continuar passando a palavra do Manifesto Freak adiante, extremamente gratificante estar
    fazendo parte dessa história finalmente contada por nós, e com choro, mas de alegrias e
    emoções.”
Manifesto Freak: canto das aberrações. Foto: Caique Leon
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