Perfurando bolhas: modificação corporal extrema para quem quiser ver

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O exercício de olhar para o passado e o presente da cultura da modificação corporal tem sido cada vez mais complexo. Avançamos em algumas tantas discussões (conquistas!) e, por conta disso, percebemos que paira um tipo de imaginário que tudo sempre foi como é agora. É um imaginário que necessita atenção para evitar a anestesia e o esquecimento de que o que vivemos hoje na cultura da modificação corporal é o resultado de muitas águas que se mexeram e se revoltaram no passado. Muita gente antes de nós…

Ao andar nas ruas – ou perder algumas horas em alguma rede social – é se deparar com uma série de braços fechados, pescoços pintados e tatuagens faciais. Piercings adornam os rostos. Classe, raça, gênero, deficiência, idade, sexualidade não são mais barreiras intransponíveis como antes. Algo que não imaginávamos que pudesse acontecer nas décadas de 80, 90 e mesmo no começo do ano 2000.

As campanhas publicitárias de universidades privadas, bancos e até multinacionais milionárias de fast-food trazem personagens com modificações corporais para as mídias e holofotes, numa grande assimilação pelo capital. O que mereceria um texto específico sobre esse ponto justamente para que escapemos da cilada da anestesia neoliberal mencionada acima e da representatividade esvaziada.

O acesso e permanência no mercado de trabalho por pessoas com modificações corporais também vão se alargando. Posições vão sendo ocupadas e marcadas. Temos Gabriel Boric, o jovem presidente do Chile, com suas tatuagens visíveis nos braços e que, pasmem, não precisam mais ser escondidas. Artistas e ativistas vão também incendiando o debate sobre o direito de decidir sobre o (uso do) próprio corpo. Sem pedir autorização, sem negociar dignidade.

Gabriel Boric é o presidente do Chile (2022-2026). Foto: reprodução/Instagram | @gabrielboric

Assistimos a virada de chave que esse movimento – de transformação social  e cultural – proporcionou, isto é, a positivação desses corpos e corpas rabiscadas, perfuradas, cortadas, modificadas. Algo novo vai sendo construído e que faz eco com as lutas dos movimentos sociais em busca de visibilidade e representatividade e, mais do que isso, por justiça social.

As gerações que estão chegando agora no mundo já entram em contato pela primeira vez com a cultura da modificação corporal de uma forma completamente diferente de quem nasceu entre os anos 70 e 90, por exemplo. A carga negativa é gradativamente trocada por uma positiva. E não estamos falando de pouca coisa quando pensamos que isso significa desafiar e superar a demonização, patologização, criminalização dessas corpas e subjetividades. Principalmente considerando ainda o retrocesso conservador e reacionário com pitadas explícitas de fascismo tropical e teocrático do nosso presente.

Houve um tempo em que Shannon Larratt (1973-2013), criador do BMEzine, publicava nas redes sociais ou no Modblog quando um corpo modificado ou outro aparecia em algo de grande visibilidade, quando alguém com um braço fechado de tatuagem fazia algo que não era esperado e ganhava algum tipo de destaque positivo fora da bolha da comunidade da modificação corporal. Ele trazia a informação como um grande evento. E era. E tem sido.

Shannon Larratt. Foto: reprodução/Facebook

O BMEzine, criado em 1994 no Canadá, se tornou esse tipo de bolha, principalmente quando pensamos a visionária rede social que existia ali, o IAM.BME. Falamos no passado, pois desde o falecimento de Shannon em 2013 aquele espaço não é o mesmo. Nunca mais foi o mesmo. O IAM era uma zona de segurança para as pessoas da comunidade da modificação corporal e freak. Enquanto as redes sociais da época Fotolog (e suas variações) e depois o Myspace e Orkut censuravam as publicações que envolviam diferentes usos do corpo, o IAM era o que estava abaixo da superfície. Não apenas acolhendo diferentes usos do corpo, mas como um terreno fértil de troca de relações que são mantidas vivas até hoje.

Mas o mundo mudou (para além do bem e do mal). E algumas bolhas estão sendo perfuradas com esses movimentos das pessoas da comunidade da modificação corporal. Movimentação que se realiza de dentro para fora e de fora para dentro. The Lizardman (1972-presente) é uma dessas figuras responsável por tencionar essa bolha aparecendo em variados programas de televisão, revistas (não só de tatuagem) e chegando ao cinema, com uma participação no filme Song to Song (2017), com um elenco de peso, como Ryan Gosling, Michael Fassbender, Cate Blanchett, Natalie Portman e Christian Bale. O longa tinha previsão de lançamento em 2013, conforme publicamos AQUI na época.

The Lizardman. Foto: reprodução/Instagram | @thelizardman23

Depois tivemos a grande ruptura de camadas da bolha com o Zombie Boy (1985-2018). Trabalhando com os grandes nomes da fotografia, da moda e artistas pop como Lady Gaga. O modelo se tornou uma grande referência da modificação corporal, não apenas abrindo portas, mas estourando estruturas, possibilitando que pessoas fora da comunidade da modificação corporal pudessem enxergar beleza nos corpos com modificações corporais extremas. Com ele, a chave foi virada mais um pouco.

Zombie Boy. Foto: reprodução/Instagram | @zombieboyofficial

E chegamos agora na era das redes sociais, que transformou todas as nossas relações sociais e culturais, abalando inclusive as nossas concepções sobre (o que é) verdade e ameaçando a democracia (Fora, Bolsonaro!). E sem dúvida alguma é o momento – ainda que com muita disputa – que a bolha se desfez.

Agora os corpos com modificações corporais extremas, as corpas e corpos freaks, estão ali aos olhos de quem quiser ver. Falamos de disputa porque muitas imagens são censuradas, perfis são derrubados e ainda temos as ameaças de processos por grupos de pessoas que acham que têm o controle sobre os conhecimentos do corpo ou sobre o que uma pessoa pode ou não fazer de si. O ambiente virtual não é seguro tal qual o mundo fora da bolha nunca foi.

Para entendermos impactos e proporções e transformações, nos debruçaremos nas duas pessoas citadas, The Lizardman e Zombie Boy, e nos seus números no Instagram. O norte-americano The Lizardman tem um total de 11.100 seguidores, e por sua vez, o canadense Zombie Boy tem 357 mil seguidores. Números altos, claro que sim, mas temos uma outra pessoa que estremeceu essas relações todas, estamos falando de Black Alien. O francês tem em sua conta no Instagram mais de um milhão e 100 de seguidores.

Black Alien. Foto: reprodução/Instagram | @the_black_alien_project

Black Alien tem levado para as redes sociais – reverberando nas mídias genéricas ao redor do mundo – uma forte e profunda discussão sobre o corpo modificado. Fala-se sobre tatuagens em longas extensões do corpo, mas também sobre implantes. Pigmentação da esclera e nulificações. E essa comunicação agora se realiza completamente folha da bolha. A bolha foi totalmente perfurada. O impacto social e cultural é instantâneo mas também ao longo prazo.

Black Alien. Foto: reprodução/Instagram | @the_black_alien_project

Para nós que vivemos a cultura da modificação corporal, na configuração ocidental que se construiu na segunda metade do século XX, é um grande privilégio acompanhar a história enquanto ela está sendo escrita. Algumas coisas já podemos sentir e mensurar os efeitos e outras, o grande encarregado em nos contar será o tempo. O mesmo tempo que para comunidade da modificação corporal é outro, quase sempre mais curto. Que venham as próximas histórias.

Ploc!

Nota 1: O fato de analisarmos 3 meninos cisgêneros, heterossexuais e brancos – de países ricos – merecem uma atenção na análise. Não entramos nessa questão aqui, mas deixamos uma fagulha para uma próxima página.

Nota 2: O texto não é sobre julgamento de valores do passado e presente. Tão pouco sobre competição de quem tem mais seguidores em redes sociais. É apenas uma análise histórica sobre processos e movimentações que não se dissociam.  

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