Quatorze anos de FRRRKguys

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Foto: T. Angel, 24 anos. Autorretrato, 2006.

Osasco, 21 de Junho de 2020.

Carta para a legião de freaks que nos atravessam e são atravessades pelo nosso trabalho ao longo desses quatorze anos.

Hoje retomo parte do texto do ano passado.

Em 21 de Junho de 2006, eu tinha 24 anos e fiz a primeira publicação no que seria ou viria a ser o FRRRKguys, na antiga rede social chamada Fotolog. A primeira foto foi a do meu namorado na época e depois da dele, milhares de centenas de fotos, de quase todas as partes do mundo, construíram o que seria a primeira fase do FRRRKguys, também conhecido como “aquela porra é coisa de viado” (sic). Risos.

Uma conta ou análise que consigo fazer agora que o tempo se espaça, é que em 21 de Junho de 2006 fazia apenas dez anos que eu estava vivendo intensamento a cultura da modificação corporal e os diferentes usos do corpo. Lá trás eu dizia que “já tinha 24 anos” e agora eu digo que eu “só tinha 24 anos” e isso muda tanto tudo. Lá trás eu dizia que “já vivia tudo isso por 10 anos” e agora eu digo que “só tinha vivido aquilo tudo por dez anos”.

É verdade… Viver tudo aquilo que uma década nos permite – na minha própria pele: a loca in loco – antes da criação do FRRRKguys foi o meu processo de (de)formação equivalente – para além de uma discussão apenas sobre o tempo – a uma graduação, mestrado e doutorado. Foi um processo entender que esse tipo de conhecimento – que se fez e se faz através da experiência – tem importância tanto quanto os títulos acadêmicos que eu tenho e os que eu talvez nunca terei.

Perceba que não estou elaborando um discurso contra a vida acadêmica e nem dizendo que ela não é importante. Estou elaborando um discurso de que há uma produção de saberes, conhecimentos e afetos para além da vida acadêmica e que ela – a produção – é importante. Inclusive considerando que para nós – pessoas freaks – conseguirmos chegar na academia – não como mero objeto de estudo – mas enquanto protagonistas e intelectuais da construção de uma narrativa que é sobre nós e/ou nossa história, “o corre é outro“, como dizem aqui na quebrada. Nem a gente chega nela e nem ela chega na gente.

Dito tudo isso até aqui, cabe seguir contando para vocês que tenho consciência que a minha biografia vai estar sempre marcada pela biografia do FRRRKguys e ambas também conseguiram marcar a história da modificação corporal na América Latina, principalmente no Brasil, obviamente. São quatorze anos trabalhando sozinha com essa plataforma. Quatorze anos… É um peso (não um fardo) e uma grande responsabilidade.

A cara do FRRRKguys em 2010.

Entre idas e vindas na linha do tempo… É importante também dizer que continuar com vida em 2006, ainda que eu estivesse mais como dançando, nua, manca e de olhos vendados no parapeito de um prédio de muitos andares, estava sendo um processo de encontrar maneiras de me remendar, re-costurar, reconstruir, reforçar todos os meus pedaços que foram quebrados e estilhaçados pela pressão social por ser o que eu era (e ainda sou). Algo que eu também só fui perceber com o espaçamento do tempo.

Eu estava tão quebrada – em pequenos pedaços – que nem sabia exatamente ser de outra forma ou que seria possível estar vivendo de outra forma, com algum tipo de dignidade, sabe? É muito pesado, cruel e perverso você não ter dignidade humana e achar que isso é o certo e que de alguma maneira a culpa é sua. Hediondo quando a opressão é tamanha que você se apequena, se resigna e tenta se enquadrar na normatividade compulsória que dizem para você que é real. E, céus, essa normatividade compulsória é uma falácia… E embora assim o seja, ela nos mata.

Quando se está morrendo e uma parte de você está lutando pela sobrevivência acontece uma espécie de mecanismos de autodefesas que se acionam e apenas percebemos que algo está acontecendo e não sabemos exatamente o que. Não há muita racionalidade ou possibilidade de explicação, você apenas age para não desaparecer.

Eu me recusei em 2006 a desaparecer, recusei a desistir de mim (do que eu era/sou) e depois tomei consciência também que continuar com vida no sistema de necropolítica que temos, que busca eliminar tudo aquilo que se entende por diferente, era a grande revolução e rebeldia. Assim, eu decidi que não iria morrer mais e por pirraça… E é claro que escrever isso em 10 linhas dá a sensação de que foi algo simples. Não caiam nessa cilada. Aqui não é conto de coaching, é conto de crawling. Estou falando de algo que começou em 2006 e que está acontecendo até agora, 21 de Junho de 2020.

Saúde mental em colapso em 2006.

E vocês devem estar pensando, “mas que diabos essa gata tá dizendo, é aniversário do FRRRKguys e porque elas está falando da vida dela?”, explico.

Eu ouço de modo recorrente que o FRRRKguys ajuda muitas pessoas, no sentido de que, de algum modo esquisito (como não poderia deixar de ser), o trabalho que é feito aqui consegue acionar a pulsão pela vida aí. Vou repetir, o trabalho que acontece aqui aciona a pulsão de vida das pessoas.

Eu sempre me emociono quando recebo essas mensagens tão espontâneas, corajosas, honestas e generosas. Obviamente por saber que o trabalho feito aqui na periferia de Osasco, muitas vezes em computadores extremamente precários, internet capenga, tem a força de chegar tão longe: dentro do coração de alguém. Não apenas chegar, mas mover algo. Transformar.

A cara do FRRRKguys em 2009.

Emociono principalmente porque no fundo eu entendo exatamente o que a mensagem quer dizer e com uma linguagem e uma vivência que é particular nossa enquanto freaks e que ninguém que esteja fora da nossa comunidade dá conta de entender com nossa específica exatidão. Justamente por isso, acho importante também dizer agora que o FRRRKguys exerceu – e ainda exerce – o mesmo papel pra mim mesma. E, provavelmente, por conta disso, estejamos aqui ainda, de pé… Com vida.

Ele foi criado quando a sociedade havia roubado completamente o meu sentido e desejo em continuar com vida. Foi aqui, com o FRRRKguys, que eu encontrava algum tipo de conforto e alegria. Não apenas pelas publicações que eu fazia, mas pelas relações que se construíam e pelos planos que começavam a me invadir e que nos trouxeram até aqui. Construímos – eu e vocês – nossa própria rede de afetos. Quatorze anos.

Agora paro por aqui.

E mais do que dizer qualquer outra coisa, reservo esse final de texto apenas para agradecer todes vocês que fizeram e fazem parte dessa nossa construção de rede, teia e afetos. Uma construção que é o grande chamado pela existência e permanência da vida em nossos corpos modificados. O FRRRKguys existe porque embora tenha uma cabeça que o coloque para andar, existem incontáveis corações e espíritos que o impulsionam. Preenchem de vida. “It’s alive, it’s alive”… Somos uma plataforma monstruosa.

Nascemos – como as flores de lótus – da lama. Ocupamos a superfície agora. Mas nossas raízes ainda estão fincadas nas lamas e lodos para não deixarem que esqueçamos de onde viemos, quem somos e quem veio antes de nós.

Se o trabalho aqui te inspira vida. É porque ele sempre foi e sempre será sobre não deixar morrer. Seja a nossa ancestralidade freak, seja a nossa história rica e complexa, seja as nossas existências potentes e fundamentais que rasgam e ultrapassam isso tudo que a gente consegue ver.

Estou orgulhosa – sem pedantismo ou ego inflamado – de ter chegado até aqui. E infinitamente grata, de seguir caminhando ao lado de vocês.

Muito – mas muito mesmo – obrigada de todo coração.
Feliz aniversário ao FRRRKguys.
Feliz Dia do Orgulho Freak para todes nós.

Amor,
T. Angel

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