Solari se foi e quem cuida da história da gente freak?

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Abre las puertas de la percepción
Usa el poder de tu imaginación
Aunque no puedas mirar hacia el sol
Sabes que sigue brillando
Piensa en las cosas que te hacen sentir
Cada segundo vivir y escapar
Es el momento y la gente al pasar
Sientes por dentro que todos se van
(…)
Desde el principio al fin
Solo quisimos vivir”

Moby & Amaral – Escapar

Como todos os 25, o céu se põe triste como meu coração“, escreveu na terça-feira, 25 de Julho, em uma postagem no Facebook a senhora Beatriz Lima, mãe de Eduardo Solari. Entendeu-se então que ele havia morrido naquele dia. Alguns lamentos de familiares e colegas nos comentários confirmando a sua partida.

Primeiro o baque da notícia: Solari morreu. Aquela sensação pesada de “perdemos mais um dos nossos, cedo demais“. Paramos para respirar. Depois passamos a pesquisar por mais informações. Nada em lugar algum, apenas o eco de um passado onde o seu corpo freak interessava, sustentando a mentalidade dos circos dos horrores. O encontro com o vazio. Como não havia nenhuma nota, por menor que fosse, em nenhum lugar, sobre a passagem de Solari? Quem cuida da história da gente freak? Quem cuida dos nossos mortos? Quem protege a nossa memória? Sensação amarga na garganta.

Seguimos na busca de informações. Em nossa pesquisa, descobrimos então que a passagem de Solari aconteceu em 2022. Foi anunciada pelo Facebook por sua amiga, a advogada Carmela Grüne, em 28 de Maio de 2022, todavia, sua morte ocorreu em 25 de Maio de 2022. Perdemos mais um dos nossos cedo demais, perdemos mais um dos nossos… E tardiamente estamos aqui escrevendo, buscando cuidar da nossa memória apesar da dificuldade que isso implica.

Eduardo Solari Lima, também conhecido como Two Faces, Dos Caras ou apenas Solari, nasceu no dia 31 de Dezembro de 1982 em Montevidéu no Uruguai. As modificações corporais fizeram parte de sua vida desde muito cedo, na adolescência ele iniciou o seu processo. Se tatuou fortemente e também se tornou um tatuador. Foi uma das primeiras pessoas uruguaias com o rosto tatuado em uma época em que a tatuagem não era bem vista ou bem recebida como nos dias de hoje. Era chamado por amigos como o primeiro freak uruguaio.

O primeiro freak uruguaio. Foto: reprodução/Facebook

Solari visitou o Brasil e participou da convenção de tatuagem internacional de São Paulo ali no começo de 2000. Sobre essa experiência, ele escreveu no Facebook em 2014 para um amigo, o tatuador Gabriel Callico:

“Você se lembra dessa convenção lá em São Paulo? (…) Essa era minha primeira grande convenção. Estava perdido… Recém nascendo… De fraldas! Você sempre me deu fôlego e terrível força. Eu me recordo saindo da convenção, caminhando por essa grande metrópoles. Eu não entendia nada do que diziam, apenas sorria para as fotos. risos
Que bom amigo, depois de tanto tempo possamos ter boas recordações. Eu vou sempre me lembrar destes momentos porque foram meu começo artístico. E foi o começo da minha metamorfose, que faz parte hoje em dia da minha atitude de vida.

Gosto muito que você se lembre destes momentos. Queira ou não nestes simples momentos crescemos juntos de certa forma. E consequentemente nós contribuímos com nosso grão de areia para cena que hoje em dia se vive no Uruguai no mundo da tatuagem. Além disso, os sentimentos das pessoas serão eternos, refletindo-os com a nossa arte em suas peles. Humildemente fizemos eternos esses momentos de quando a tatuagem estava de fraldas em nosso país. Bem, indubitavelmente você mais. Sempre tive e tenho um grande respeito por você como artista e pessoa, porque você estava já no caminho com essa grande luta, quando eu comecei a comprar minhas primeiras agulhas ai na 26 de Marzo.”

Da primeira visita em que Solari se sentia perdido, algo mudou e o encantou, e ele acabou migrando para o Brasil. Viveu principalmente em São Paulo e Porto Alegre, mas também em Santa Catarina, Rio de Janeiro e estrada afora mundo adentro. Tatuou em inúmeros estúdios. Marcou muitas peles.

Solari também teve uma história com as suspensões corporais. Localizamos um registro de 2008 em que ele faz um play piercing durante um suicide. As imagens do acontecimento mostram sua explosão de alegria e diversão.

Solari em suspensão, 2008. Foto: reprodução/Facebook

Sua imagem forte e o corpo freak somado de um carisma ímpar, fez com que Solaris se tornasse uma figura bastante conhecida para além da comunidade da modificação corporal. Aquilo que costumamos dizer como referência, sabe? Participou de alguns programas de televisão no Uruguai e também no Brasil, justamente onde o conhecemos. Esteve também estampado em revistas falando sobre modificação corporal, furando a bolha da própria comunidade. E mesmo que fosse bastante conhecido, e era, ninguém da imprensa (genérica ou a específica), que o utilizou tanto enquanto interessava, pode escrever uma nota de pesar, por mínima que fosse. Nada. E talvez pensando o que a imprensa hegemônica fez com o Felipe Klein (1983-2004), melhor não terem escrito mesmo… Melhor… Lamentável. Quem se importa com o corpo freak?

Solari na revista uruguai “Caras y Caretas”, 2001. Foto: reprodução/Facebook
Registro de notícia sobre Solari. Foto: reprodução/Facebook

Em 2010, Solari foi detido no Rio Grande do Sul e em 2012 condenado pelo Tribunal Federal do Rio Grande do Sul por tráfico de drogas. Durante essa fase, seu corpo freak foi utilizado em uma matéria para falar sobre a relação problemática do sistema prisional brasileiro com pessoas estrangeiras. E ficamos pensando, mas por que escolheram ele para ilustrar a matéria? Qual o sentido? E não tem resposta assim como não tem sentido, a não ser o de fazer o velho e conhecido sensacionalismo barato típico da mídia genérica. Ficamos pensando o quanto o jornalismo, em alguns momentos, reforça e sustenta a construção da vilania com e sobre nossos corpos e corpas.

Ainda, nesse processo difícil, Solari participou do Projeto Direito no Cárcere no Presídio Central de Porto Alegre, voltado para detentos em tratamento de dependência química. O Projeto Direito no Cárcere foi criado pela advogada e ativista Carmela Grüne com objetivo de estabelecer, pela gestão compartida com o Estado, plataformas de expressão aos apenados do Presídio Central de Porto Alegre, vislumbrando a música, a poesia e o cinema como instrumentos de educação inclusiva e fomentadores da expressão da cidadania local. Desse modo, o projeto através da implementação dos subprojetos: Literário; Direitos Humanos; Desmitificando o Direito; Rap Conexão Legal; Direito de Repente; CinePresídio e Vlog Liberdade incentiva, com pedagogia sensível, a utilização da arte para proporcionar o acesso à justiça. Foi deste encontro que Solari e Carmela se tornaram amigos.

Em 2014 Solari escreveu publicamente sobre a sua prisão. No texto publicado no Facebook dizia que era inocente e que sobrevivia única e exclusivamente trabalhando enquanto tatuador. Em março de 2015 anunciou e celebrou a sua liberdade e já fez o seu chamamento para retornar para as tatuagens. E assim o fez, retornou para sua profissão. Deixando suas marcas… E pegadas.

A causa de sua morte não foi divulgada, apenas a notícia de que Solari estava internado em estado grave em um hospital de São Paulo. Em seus últimos dias de vida trabalhou como artista de rua, principalmente com pirofagia. Definia-se como mochileiro. Freak e nomadista, como se tornou, agora viaja do outro lado, em outro plano. No entanto, nos deixa um legado que precisa ser protegido.

Solari foi um freak, tatuador, filho, neto, irmão, pai e amigo. Sobretudo, foi uma grande inspiração e referência para muitas pessoas. Mais do que lamentar tardiamente sua precoce partida, e lamentamos muito, queremos celebrar sua existência e o impacto que sua existência gerou em muitas pessoas, incluindo nós. Ele sabia da sua importância para nossa história e tratava isso com humildade. Assim como, ele sabia a importância de cuidarmos de nossa história. Que possamos aprender com ele que abriu algumas portas para nossa comunidade e, com isso, passemos a cuidar com carinho, respeito e sensibilidade da nossa gente encantada, nossas memórias e histórias. Que passemos a cuidar da nossa gente freak enquanto elas, eles e elus estão com vida. O nosso tempo freak é outro e, assim, outra também precisa ser a nossa construção de teia de afeto e proteção. Cuidemos de nós!

Descanse em paz, Solari.
Obrigada por tudo.

REFERÊNCIAS

Sistema prisional enfrenta dificuldade em punir encarcerados em cadeias brasileiras
https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2012/08/sistema-prisional-enfrenta-dificuldade-em-punir-estrangeiros-encarcerados-em-cadeias-brasileiras-3843181.html

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