Toda modificação corporal é igual, mas algumas são mais iguais que outras…

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Reflexões sobre recepções sociais sobre diferentes modificações corporais

Modificações corporais são técnicas que alteram por iniciativa pessoal e voluntária os contornos tantos que um corpo pode ter. Técnicas que são incontáveis e, dentre as tantas que existem, temos a tatuagem, o body piercing, a escarificação, o implante, etc, que é mais especificamente o recorte que tenho pesquisado, trabalhado e vivido por mais de duas décadas. Mas como já escrevi no Manifesto Freak (2015), todo corpo vivo é – de alguma maneira – modificado.

Eu tenho explorado diferentes técnicas de modificações e usos corporais nessa minha jornada. O meu corpo já foi perfurado (body piercing, body play, body suspension, pulling), pigmentado (tatuagem), cortado (escarificação, implantes, tongue splitting) e queimado (branding). Há muito mais para explorar, descobrir e conhecer.

Hoje será a primeira vez, em mais de dez anos de FRRRKguys, que relatarei aqui uma experiência pessoal com as modificações corporais. Quiçá escapando algumas vezes do recorte temático que tenho me dedicado, mas sempre retornado, feito um tipo esquisito de bumerangue.

Como parte do meu processo de transição de gênero, estou me submetendo ao processo de remoção definitiva de pelos do corpo com laser. O procedimento está sendo realizado em três partes diferentes do meu corpo: rosto, axilas e área abdominal. Ao todo serão 10 sessões em cada parte e escrevo agora um dia depois de realizar a 6ª delas em meu rosto. Experiência que me motivou a escrever sobre o assunto.

Foto tirada 1 hora depois da aplicação do laser.

Antes de iniciar o meu tratamento eu imaginava que uma sessão de laser já resolveria todo o meu problema para sempre. Na prática a história é bem diferente. Bem diferente mesmo!

Acho importante incluir que – dentro das minhas condições financeiras – considero que seja um procedimento caro. Eu precisei esperar por anos para conseguir fazer e estou resolvendo agora o que pra mim era mais urgente, no sentido do que mais afeta a minha disforia. Importante citar também que em 2018 fiz o teste de algumas sessões em uma clínica que oferecia o serviço por um valor mais baixo, que eu poderia pagar na época, e não obtive resultado algum.

No meu procedimento de agora estou utilizando o Laser Alexandrite, que é derivado de um cristal que carrega o mesmo nome. É um laser com comprimento de onda de 755 nanômetros cujas principais características são ter alta afinidade pela melanina e penetrar até a derme média, ou seja, em uma boa profundidade da pele. O que significa que áreas tatuadas não podem receber o laser. O que significa para mim em particular é que parte do meu rosto que é tatuado não poderá receber o laser. Essa parte eu já aceitei bem. Ainda que eu torça para que a tecnologia avance e eu possa fazer isso no futuro.

Entendo a remoção da pelos de modo definitivo como mais um tipo possível de modificação corporal, assim como as tatuagens, piercings, escarificações, implantes, etc. No entanto, colocando de lado o fato de que o procedimento está sendo realizado dentro de um contexto de transição de gênero, é uma técnica que tem escapado de qualquer tipo de julgamento e é exatamente sobre isso que pretendo tratar aqui também.

Eu me entendo enquanto uma pessoa trans não binária e de sexualidade bastante fluída. Por sua vez a sociedade de modo geral me lê como um homem cisgênero e homossexual, eu não tenho o que chamam de passabilidade de gênero, ainda que em alguns momentos eu perceba que as pessoas fiquem confusas sobre o que eu sou enquanto gênero. Nesse sentido andar pela rua com uma barba toda falhada ou mesmo sem barba não gera nenhum tipo de olhar torto. Até aqui nada fora do comum: uma pessoa que é lida como um homem gay, agora, sem barba.

Eu já fiz incontáveis tatuagens, perfurações, escarificações, implantes e consigo afirmar com muita facilidade que o procedimento de laser no rosto tem sido uma das técnicas mais dolorosas e intensas que já passei. Quando comecei o tratamento em Janeiro tive a sensação de que a máquina estava com defeito e que meu rosto estava sendo frito, além do alto nível de dor, o cheiro de queimado (que me lembrou o branding que fiz) me deixou com um grande desconforto. A grande diferença entre o branding (produção de cicatriz com queimadura) e o laser, é que enquanto o primeiro segue doendo depois de ser aplicado, o segundo a dor é aguda e segundos depois some.

Nas axilas o procedimento é completamente indolor, o que sinto em alguns momentos é apenas um calor na área da aplicação. Na área abdominal a maior parte também é indolor e em alguns poucos pontos há um tipo agudo de dor, que desaparece rapidamente. No rosto tudo é diferente, tudo é muito diferente… Na 2ª sessão eu pensei em desistir do tratamento, o que me fez continuar foi o resultado prático da técnica e, claro, o efeito direto na minha disforia. Na 5ª sessão – momento em que se utilizou a potência máxima do laser – eu voltei para casa me sentindo doente. Não tem sido um processo fácil, como eu imaginava que seria.

Eu tenho entendido o laser como um procedimento de modificação corporal extremo, seja pelo alto nível de dor como pela transformação no meu corpo que era muito peludo. Eu tinha muita barba e provavelmente por esse motivo a dor tem sido intensa. Embora todas as pessoas que tenho conversado e que fizeram o tratamento apontaram o alto nível de dor.

Quando comento com alguém sobre o procedimento de laser que estou realizando não há nenhum tipo de reação de espanto ou de asco. Não há nenhum tipo de julgamento moralizante como as outras técnicas receberam e ainda recebem. Diferente de algumas modificações corporais que tenho, essa se eu não contar, ninguém sabe. As perguntas sobre dor também não surgem, nem as que demonstram dúvida e nem aquelas que me colocam como masoquista. É incrível como ouço que eu gosto de sentir dor, sabem de nada… Também não existe o tipo de comentário que indica que eu possa me arrepender ou o que farei quando envelhecer. É como se a modificação corporal com laser não estivesse acontecendo, mas ela está ali, o tempo todo presente, bem na minha cara.

Essa experiência toda tem me confirmado o óbvio que essa minha jornada já me mostrou tantas outras vezes, mas talvez, para quem está fora da comunidade da modificação corporal possa não ser tão óbvio assim. Toda modificação corporal é igual – no sentido que altera o corpo atendendo um desejo pessoal de quem a faz – mas algumas são mais iguais que outras. O problema não é a técnica, permanência ou a dor que envolve o seu processo de modificação corporal, mas sim se ela atende ou não os parâmetros estéticos e biopolíticos do discurso dominante e fim. E fim.

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