Tradução: entrevista exclusiva de Lukas Zpira com Shannon Larratt

O banner foi feito com foto de acervo de Shannon Larratt (reprodução/Zentastic) e foto de acervo de Lukas Zpira (fotografia de Maria Issa).

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Shannon Larratt foi o fundador e a grande cabeça do BMEzine. Ele nos deixou em 2013, muito cedo, no calor de seus 39 anos de idade. Existimos enquanto FRRRKguys porque antes existiu Shannon e o BMEzine. É a nossa grande referência, ainda no presente. A morte física não interferiu nisso, tamanho seu impacto em nossas vidas. É e sempre será nossa grande referência.

Em muitos dias, diante dos eventos atuais que atravessam a comunidade da modificação corporal e aqueles que nos tomam com o desejo de viver (expandindo a manifestação da vida em si) a comunidade freak, nós ficamos com o desejo de saber o que ele diria, o que ele acharia. E, assim, é nele que também encontramos base para sustentar a ideia dessa teoria freak, dessa comunidade freak que estamos construindo-vivendo-chamando vida.

Desse desejo de ouvi-lo mais uma vez, retomamos as leituras de algumas entrevistas suas, infelizmente nenhuma em língua portuguesa. Com o desejo de que a sua memória siga viva e em respeito a grandiosidade de suas contribuições para nossa cultura e comunidades, traduzimos duas delas e aqui compartilhamos a primeira feita em 2009.

Conversamos com Lukas Zpira que nos autorizou a tradução e partilha em nossa plataforma. Para quem desejar acessar o material em inglês e francês, deixaremos o link ao final. Em 2017, Lukas republicou a entrevista enquanto um tributo ao Shannon, partindo dela que fizemos a tradução.

TRADUÇÃO DA ENTREVISTA FEITA POR LUKAS ZPIRA

Em 2009, Shannon Larratt perdeu o outrora famoso site BME (Body Modification E-Zine) que ele criou. Aproveitei o “momento”, ou devo chamar de ponto de virada, para perguntar ao rei caído a visão que ele poderia ter de um mundo que já governou. Esta entrevista foi publicada em dois diferentes blogs, no mesmo ano. Com o passar do tempo, vejo que algumas pessoas estão tentando reescrever a história e a chamada “comunidade” e estão reproduzindo o mesmo erro – criando uma norma que deve ser seguida se quiser ser aceito, talvez para não ser banido. Então, eu decidi republicar a entrevista. Uma importante mensagem para as novas gerações e um tributo à memória de Shannon. Descanse em paz.

Lukas Zpira: Olá Shannon. Você criou o BME em 1995 (correto?!), que se tornou e ainda hoje é o site de referência para a modificação do corpo, do extremo ao mais básico. Como começou e qual é a sua formação?
Shannon Larratt: Fundei a BME no final de 1994. Na época, eu trabalhava como programador de computador desenvolvendo software comunitário para sistemas telefônicos interativos e tinha acabado de conseguir um emprego fazendo joias corporais na Stainless Studios (no Canadá), onde pude trabalhar com o super influente piercer Tom Brazda. O BME começou como um site pessoal porque eu queria um lugar para falar sobre o que me interessava, e descobri que outras pessoas sentiam o mesmo, e tudo virou uma bola de neve.

LZ: Qual foi o papel da comunidade virtual IAM na evolução desse cenário?
SL:
O IAM foi formado quando a maioria das atividades no mundo da modificação corporal já existiam, mas o IAM definitivamente agia como um acelerador, criando um ambiente isolado no qual as coisas aconteciam muito rapidamente… No IAM, as atividades marginais iriam do “muito longe, mesmo na terra do BME (BME-land)” para o mainstream em questão de meses, e porque o IAM tinha uma porcentagem tão alta de artistas corporais influentes como membros, essas mudanças subculturais entraram no “mundo real” não muito depois.

LZ: Houve através do BME um certo efeito de mimetismo. Os artistas se influenciavam e os interessados ??copiavam o que viam no site. Quase poderíamos dizer que havia uma espécie de estilo BME imposto dentro desta comunidade. Quais são seus pensamentos sobre este fenômeno?
SL: Eu acho que é bem verdade que houve um fenômeno de mimetismo (e mimetismo amplificado onde a mímica tentaria superar a pessoa que a inspirou). Embora fôssemos uma cultura que abraçava o individualismo, às vezes parecia haver um “código de vestimenta”. Sempre me incomodou – e ainda me incomoda – que haja tão poucas vozes fortes e únicas nesta comunidade. Mas suponho que em todos os campos de todos os assuntos, apenas uma pequena porcentagem das pessoas são líderes e criadoras de tendências…

LZ: Você não acha que algumas pessoas deram um salto muito grande e passaram por modificações muito radicais para existir dentro desta comunidade?
SL: Um dos efeitos colaterais do IAM foi que nos deu a ilusão de uma comunidade solidária. As pessoas podiam passar um tempo no IAM e ter a impressão de que o mundo inteiro estava do lado delas – que o que estávamos fazendo era “normal” e “aceitável”. Acho que isso tornou mais fácil para algumas pessoas levar suas jornadas além do que realmente se sentiam confortáveis ??e, como resultado, algumas pessoas se viram em situações difíceis com as quais não conseguiam lidar…

Eu odeio pensar nisso, mas acho que o BME compartilha alguma responsabilidade em alguns suicídios, onde o BME ajudou a convencer as pessoas de que era uma boa ideia se modificar muito além do que estavam pessoalmente preparados para o mundo real. Eu acho que era difícil para as pessoas serem consideradas heróis no BME e depois serem derrotadas pelos humanos de carne e osso com quem interagiam diariamente. É claro que, em última análise, isso é responsabilidade da própria pessoa – e a culpa é de um mundo cruel e inaceitável – mas definitivamente me assombra.

LZ: E os praticantes realizando essas modificações corporais extremamente radicais em algumas pessoas sem qualquer consideração pelas consequências? Eles não estavam fazendo isso apenas para obter reconhecimento e adquirir status?
SL: Tenho certeza de que há alguma verdade na ideia de que alguns praticantes estavam apenas ultrapassando os limites para serem notados, e acho que é lamentável. Quando entrei na modificação corporal, eu morava em uma fazenda no interior, e não havia estúdios ou mídia de modificação corporal a que eu tivesse acesso, muito menos pessoas que torceriam por você – eu cresci no vácuo. Então, para mim, meu interesse na modificação do corpo é intuitivo e instintivo. Eu gostaria que fosse assim para todos, mas isso é algo que perdemos. Acho que a modificação corporal é melhor quando é uma verdadeira expressão do eu – quando é um reflexo do que você acha que os outros querem de você, então acho que você está se permitindo ser oprimido em um nível muito profundo.

LZ : Não foi uma escolha perigosa privilegiar e apresentar as modificações mais extremas em vez das mais artísticas?
SL: “O mais artístico” é, claro, um julgamento muito subjetivo! Apresentei e mostrei as modificações que me atraíram pessoalmente. Não acho justo dizer que dei prioridade ao “extremo” sobre o “artístico” – dei prioridade ao que eu gostava. É claro que minha própria personalidade e a personalidade do site estavam profundamente interligadas, então posso entender que pode parecer com o que você caracterizou em sua pergunta.


LZ : Muitas vezes você foi repreendido por administrar o site de maneira ditatorial e houve alguns conflitos significativos, como Steve sendo banido do IAM ou pessoas fazendo tudo o que podiam para estar em seus bons livros e obter uma posição favorável no site e especialmente no Modblog. Como você responde aos seus detratores?
SL: O que aconteceu com Steve foi errado, e o rompimento do meu relacionamento com Steve é ??um dos meus maiores arrependimentos. Steve era um praticante responsável, muito mais do que a maioria, para não falar do importante pioneiro que ele foi. Ele foi pego em uma caça às bruxas completamente injusta. Eu me sinto péssimo pela forma como ele foi tratado.

Quanto à tendência geral de ser um ditador, o BME surgiu como um ato de vontade da minha parte, tanto quanto foi um esforço da comunidade e, para manter essa visão pessoal, uma abordagem “ditatorial” era a maneira certa de executar isto. O problema é que quando comecei a ter problemas pessoais, esses problemas também eram vivenciados pelo site.


LZ: A cena evoluiu consideravelmente entre 2000 e agora, muitas coisas passaram do underground para o mainstream. Como você percebe essa evolução. Que papel desempenhou o BME, IAM, MODBLOG ou mesmo a enciclopédia BME?
SL: É incrível o quanto as coisas se tornaram populares. Verdadeiramente inacreditável! O BME desempenhou um papel central nessa transformação social por ser um farol que reuniu pessoas suficientes para dar massa crítica ao movimento, liderar o caminho e encorajar o crescimento dessa comunidade e dar-lhe legitimidade. Eu acho que sem o BME (ou algum site similar) o mundo da modificação corporal seria um lugar muito diferente – e muito menor.

LZ: Certamente você se deparou com algumas coisas ou personagens muito interessantes e intrigantes ao longo desse período, quais vêm à sua mente?
SL: Eu conheci tantas pessoas fascinantes, mas para mim, estou mais interessado na modificação genital masculina, porque como regra geral, é o mais “puro”… O mais livre de influência externa, e o mais instintivo . Eu tenho postado muitas das minhas entrevistas sobre esse assunto em bodmodsex.com e isso vai acabar em um livro ainda este ano.

LZ: Como você acha que o mundo da modificação corporal irá evoluir? Quais são as principais tendências que estão surgindo?
SL: Eu acho que a modificação do corpo está em um ponto de estagnação agora – não há muita mudança, e não há muito a ser adicionado. Isso, juntamente com a assimilação (mainstreaming) da modificação corporal, eu suspeito que isso matará a maior parte da modificação corporal além da tatuagem – o piercing certamente já é uma fração do que era há uma década. Muito do que tornava a modificação do corpo especial em um nível cultural foi irreversivelmente perdido – de muitas maneiras, o nosso sucesso foi o nosso fracasso.

LZ: Por um tempo, houve um boato de que você havia recebido uma oferta de 1,9 milhões para vender o BME, mas que você recusou para manter alguma integridade… verdadeiro ou falso?
SL: Bem, acabei vendendo o site por uma quantia significativa de dinheiro, mas não foi uma questão de integridade… Na verdade, não tive escolha. Basicamente, eu estava tão endividado por me defender legalmente que tive que escolher entre vender o site ou declarar falência. Não importava que eu tivesse um caso “vencedor” para provar que era o proprietário do site (esse era o cerne da disputa legal – a alegação de que eu era apenas uma “figura de proa” e não o verdadeiro proprietário ou força atrás do site). Uma das coisas que descobri é que, se alguém tem mais dinheiro do que você e está disposto a gastá-lo com advogados, “certo e errado” não são muito importantes!

LZ: O BME era um site lucrativo? Sendo assim, quanto? as doações foram consideráveis?
SL: O BME era extremamente lucrativo. Dito isso, por confiar em outras pessoas para administrar minhas finanças, fiquei com a impressão de que o BME quase estava quebrando, embora fosse realmente uma licença para imprimir dinheiro. Eu estava muito mais interessado no BME em um nível criativo do que em um nível de negócios.

LZ: O BME mudou-se várias vezes entre o Canadá, os EUA e o México. Por que isso?
SL: Os “escritórios” da BME sempre se mudaram comigo desde que eu fazia o trabalho fora de casa. Nenhum significado especial nisso. Quanto aos movimentos de servidor entre o Canadá e os EUA, isso ocorreu principalmente devido a preocupações com processos – relacionados a leis de obscenidade e manutenção de registros relacionados à idade – nos EUA, que tem hospedagem na web mais barata que o Canadá, mas leis mais rígidas. Antigamente, as mudanças também eram ditadas por quem me oferecia hospedagem gratuita (antes o BME era um negócio comercial que pagava suas próprias contas).

LZ: Houve recentemente dentro da comunidade BME uma espécie de “golpe” no qual você foi expulso do site. Como isso aconteceu? Sei que você não tem mais acesso ao site e notei que aqueles que ocuparam o seu lugar estão reescrevendo a história do BME e minimizando sua implicação e o papel que você desempenhou. Isso está correto?
SL: A “expulsão” aconteceu por duas razões principais – raiva e ganância. A raiva é o que alimenta a reescrita da história e o vitríolo contra mim que existe no site.

O processo também foi bastante surreal, com o BME sendo usado contra mim … Alegações de que “qualquer um que apóia o tipo de coisa que o BME trata é claramente louco demais para administrar um negócio de sucesso como o BME” foram apresentados para para promover a ideia de que eu era apenas um “mascote”. Muitas das entradas do meu diário, fotos de minhas próprias modificações corporais e assim por diante foram usadas para pintar uma imagem muito negativa de mim para o sistema legal conservador. É irônico, porque lembro que um dos primeiros artigos que publiquei, em 1995, era sobre um marido cuja esposa usou o interesse mútuo deles em piercings para pintá-lo com muito sucesso como um abusador instável e  levou tudo o que ele tinha em seu divórcio.

LZ: O que você está fazendo no momento? Onde você está agora nos projetos que você tinha em andamento, nos quais muitas pessoas estavam envolvidas, como o filme que você começou e que deveria sair há algum tempo?
SL: Estou limitado por contrato legal no que posso fazer, infelizmente – gostaria de poder ter mais um papel no mundo da modificação corporal. Mas estou trabalhando em projetos impressos (alguns dos quais estão documentados em bodmodsex.com e em meu blog pessoal em zentastic.com) na área de modificação corporal, bem como trabalhando em minha arte em geral e em vários outros projetos. A única coisa boa da venda do site é que me dá um tempo para relaxar e explorar minhas opções… E, claro, para curtir ser pai. Quando o processo legal começou, fomos basicamente informados de que o resultado provável era que “um de vocês ficará com o negócio e o outro ficará com sua filha” – minha prioridade sempre foi garantir que minha filha continuasse morando comigo.


LZ: O que você pode dizer sobre seu desenvolvimento pessoal ao longo dos anos no BME? As pessoas que estavam perto de você na época ainda estão?
SL: A “ejeção” realmente me mostrou quem era meu amigo e quem não era. Tem sido muito interessante aprender isso – ver pessoas que eu pensava serem velhos amigos espalhando mentiras realmente sórdidas sobre mim. Mas também tem sido bom ver quem são meus verdadeiros amigos, e esse é o lado da moeda que tentei focar. Ainda tenho muitos amigos dos primeiros dias do BME com os quais sou muito próximo. Muitos deles também foram expulsos do BME.


LZ: Se você pudesse fazer tudo de novo, o que você mudaria?
SL: A principal coisa que lamento foi não ter feito o tratamento para o tumor na minha perna (que confesso que não sabia que tinha). Por estar constantemente sentindo dores, tornei-me um forte usuário de maconha, que causava uma série de efeitos colaterais devastadores.

Primeiro, isso me tornou muito confiante e dependente dos outros – e escolhi as pessoas erradas para confiar e depender. Como confiei em outras pessoas para me ajudar com os aspectos financeiros do site – gerenciando-os completamente – deixei que as pessoas que viam o BME como um negócio o roubassem de mim pouco a pouco, o que, além da perda pessoal para mim, significou um uma grande perda para a comunidade em geral e temo que isso signifique a morte do site, ou pelo menos vê-lo se transformar em algo muito diferente do que eu imaginava. Tem sido muito difícil ver o site perder o rumo e ser forçado a ficar em silêncio – estou legalmente proibido de publicar sobre modificação corporal ou executar qualquer coisa “concorrente”.

Em segundo lugar, e de certa forma pior do que a perda do site, permiti-me ser influenciado pela negatividade e cliquismo das pessoas ao meu redor porque não estava me defendendo emocionalmente. Era mais importante para mim sentir que as pessoas ao meu redor estavam “do meu lado” e lá por mim do que fazer o que eu achava certo. Isso significa que concordei com a vingança contra Steve Haworth, e que concordei com a vingança contra você quando a BME publicou a crítica profundamente injusta de seu livro – me sinto absolutamente péssimo com essas duas traições e outras. Eu concordei com ataques a membros da comunidade em muitas ocasiões. É uma pena enorme.

Tenho muitas coisas dos cinco ou mais anos em que fumava maconha fortemente das quais me envergonho, mas abrir mão do controle das coisas com as quais me importava e deixá-las serem corrompidas pela raiva e ganância de outras pessoas são os piores. Se eu pudesse fazer as coisas de novo, é isso que eu abordaria.

Dito isso, e talvez o mais importante, eu tenho uma vida realmente ótima. Claro, há coisas que eu faria diferente e coisas das quais me arrependo, mas não me arrependo de onde cheguei na vida e sou uma pessoa muito sortuda e abençoada.

LZ: Você certamente ouviu falar sobre o caso de Andrew Niland, que foi preso no Canadá por ter realizado uma redução de lábios com o consentimento de uma pessoa adulta. No Japão há um piercer preso por práticas ilegais. Toro, outro piercer é processado na França por ter feito uma suspensão para um programa de TV em um menor, mas com o consentimento de sua mãe, também tive um julgamento (felizmente ganhei o caso) por uma escarificação que fiz em um menor que apareceu com uma falsa mãe. O que você acha dessa atitude repressiva encontrada em nível internacional? Sempre achei que o trabalho de re-apropriação do corpo era uma ação política… Você concorda com isso?
SL: Concordo plenamente. Se não somos donos de nossos corpos – se podemos ser processados ??por manipulação de nossos próprios corpos ou de indivíduos consentidos – então somos escravos. Não há direito mais fundamental do que a propriedade do próprio corpo.

REFERÊNCIAS

Shannon Larratt’s exclusive interview (ENGLISH)
https://hackingthefuture.blogspot.com/2009/03/shannon-larrat-exclusive-interview.html

Shannon Larratt (FRENCH)
https://laspirale.org/texte.php?id=202

Interview with Shannon Larratt + Rachel Larratt the “non” Interview by Lukas Zpira, & “Finita la Commedia” – Shannon’s last words (ENGLISH)
https://lukaszpira.wordpress.com/2017/10/29/interview-with-shannon-larratt-rachel-larratt-the-non-interview-by-lukas-zpira-finita-la-commedia-shannons-last-words/