A saúde mental entre pessoas com modificações corporais e freaks

AVISO DE GATILHO: A pesquisa e o estudo trata sobre temas sensíveis e delicados que envolvem discriminação, violência, adoecimento e morte. Antes de prosseguir, reflita se é o melhor momento de entrar em contato com essas discussões. 

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NOTAS SOBRE A PESQUISA E O ESTUDO

Durante o período de 11 de Novembro a 11 de Dezembro de 2024 o FRRRKguys e o Grupo de Estudos Sobre Modificações Corporais – GESMC realizou a “pesquisa sobre saúde mental entre pessoas com modificações corporais e freaks”. O estudo coordenado pela historiadora e ativista T. Angel buscou identificar a qualidade da saúde mental entre a população modificada e freak. Importante frisar que a análise dos resultados, assim como os apontamentos descritos a partir deles, foi elaborado por uma historiadora e ativista da luta pelo direito das pessoas freaks e não por uma pessoa especialista da psicologia. Gostaríamos que ele fosse considerado como é, ou seja, um trabalho independente e de ativismo.

Por população modificada, entende-se o grupo de pessoas que alteram seus corpos com modificações corporais não hegemônicas*, como a tatuagem, o piercing, os implantes, as escarificações e etc. Por população freak, entende-se a organização política de pessoas ligadas com as modificações corporais e fortemente preocupadas com as modificações – além de seus corpos e corpas – das estruturas que sustentam as desigualdades e injustiças sociais. Para saber mais sobre a diferença entre comunidade da modificação corporal e comunidade freak CLIQUE AQUI.

Conforme comunicado no momento da realização da pesquisa, os dados quantitativos coletados serão divulgados em formato de texto e infográfico, preservando as identidades e o anonimato das pessoas participantes. Com discussão em encontro do Grupo de Estudos Sobre Modificações Corporais – GESMC previsto para o primeiro semestre de 2025. Aqui é o primeiro movimento, a divulgação do texto.

Participaram da pesquisa 79 pessoas, respondendo um formulário Google Forms. O resultado está detalhado abaixo.

*Falamos sobre modificações corporais não hegemônicas, mas compreendemos que a tatuagem e o piercing foram assimiladas pelo capitalismo e em muitos contextos ela está capturada pela normatividade compulsória. Capitalismo e normatividade compulsória andam de mãos dadas.

PERFIL DAS PESSOAS PARTICIPANTES

Participaram da pesquisa de modo voluntário e espontâneo um total de 79 pessoas, as quais responderam um questionário na ferramenta Google Forms.  Aqui é uma camada onde rabiscaremos o perfil das pessoas participantes, etapa fundamental para se pensar saúde mental e corpos modificados e freaks.

Das 79 pessoas que responderam o questionário, todas, todos e todes têm seus corpos tatuados. Além disso, 75 têm seus corpos e corpas perfuradas, 33 são escarificadas, 20 realizaram implantes, 9 pigmentaram seus globos oculares (eyeball tattooing), 32 bifurcaram a língua e 5 possuem nulificações. Percebe-se – e se faz importante pontuar – que a maioria leva em seu corpo mais de uma técnica de modificação corporal não hegemônica, compondo um repertório estético particular.

A faixa etária das pessoas participantes iniciou nos 20 (a pessoa mais jovem) e foi até os 49 anos de idade (a pessoa mais velha). A maioria estava entre os 29 e 30 anos. Temos a hipótese de que a comunidade da modificação corporal e, principalmente, a comunidade freak tem uma baixa expectativa de vida considerando o restante da população, no entanto, não temos pesquisas de órgãos oficiais e tão pouco acadêmicas que ofereçam sustentação para hipótese levantada. Precisamos ter essas pesquisas. Trouxemos a hipótese – que não é um mero achismo vazio – enquanto um complemento, partindo das pesquisas e produções realizadas no FRRRKguys ao longo desses 19 anos.

É preciso considerar a relação entre território e corpo, e o respectivo impacto na subjetividade e agenciamentos que surgem a partir desse dado. Ser uma pessoa freak ou ser/ter um corpo modificado em São Paulo, capital, é uma experiência, que vai ser diferente de uma pessoa freak ou modificada que vive na periferia de Osasco ou na Praia da Pipa no Rio Grande do Norte. Não articulamos aqui o binarismo bom ou ruim, melhor ou pior, estamos afirmando que existem particularidades e especificidades que precisam ser encaradas e consideradas, sobretudo quando estamos pensando saúde mental.

Dito isso, as pessoas participantes da pesquisa estavam localizadas nas seguintes regiões do Brasil:

Pensar território e corpo é fundamental.

O dado acima é importante para que possamos romper com a perspectiva sudestina na comunidade da modificação corporal e, principalmente, na comunidade freak. O dado é importante para pensarmos em teias de apoio e construção de outras relações que escapam do eixo Sul e Sudeste. Se queremos pensar a saúde mental da nossa comunidade, precisamos primeiramente expandir o nosso olhar sobre ela. Enxergando inclusive o invisível, o que não está conosco e, com isso, perguntar: como ampliamos a nossa teia? Caso contrário, seguiremos o mesmo padrão desastroso das classes dominantes e dos grupos normativos, considerando que a sudestinidade é o centro e não deve ser. Paulo Freire (1921-1997), nordestino, em Pedagogia da Esperança nos convidava para sulear, enquanto chamamento para um olhar para o Sul Global, enquanto crítica à perspectiva eurocêntrica e o imperialismo do norte global. Para nós que estamos no Brasil, ou seja que a nível global já suleamos, é preciso internamente defender o nortear. Nortear a comunidade freak é também falar sobre saúde mental.

Os dados étnico-raciais são fundamentais para discussão sobre saúde mental na comunidade da modificação corporal e comunidade freak. Embora tenhamos que considerar que essa questão pode ser mais fechada na comunidade da modificação corporal, por tudo que cabe nela, temos a comunidade freak que se afirma e elabora enquanto antirracista e anticolonial. A autodeclaração das pessoas participantes da pesquisa são:

Dados étnico-raciais da pesquisa.

Há muito para se dizer sobre sobre o marcador étnico-racial. Mas queremos apenas destacar que as modificações corporais não hegemônicas ou a freakzice não elimina o privilégio branco. Não podemos perder isso de vista. Enquanto provocação anticolonial, que sensação amarga ver uma cultura que tem fortes raízes nas populações originárias do que hoje é o Brasil, ter uma participação tão pequena na pesquisa. Entendemos que parte disso é o nosso micro alcance enquanto plataforma e mesmo comunidade. Mas será que é só sobre alcance mesmo? Quando vamos nos grandes eventos das modificações corporais quantas pessoas não brancas estão lá? Quantas pessoas não brancas estão oferecendo palestras, workshops ou produzindo eventos? Precisamos ter isso em vista. Repetimos: as modificações corporais não hegemônicas ou a freakzice não elimina o privilégio branco.

O recorte de gênero é fundamental para pesquisa, sobre a autodeclaração da identidade de gênero as pessoas participantes responderam que 74,7% são pessoas cisgêneros, sistematizados em 49,4% sendo mulheres cis e 25,3% homens cis. O gráfico abaixo ilustra a informação.

Identidade de gênero na pesquisa.

Assim como em todos os grupos sociais, a população transvestigenere é pequena. Nesse sentido, na comunidade da modificação corporal ou comunidade freak não temos ruptura com a hegemonia. Embora na pesquisa tenhamos 25,3% de pessoas transvestigeneres participando, o que é um número significativo para um comunidade também pequena, ainda estamos falando de uma população minorizada e vulnerabilizada, principalmente na atualidade com as pautas anti-trans em curso.

Sobre orientação sexual é possível dizer, por meio da pesquisa, que temos uma ruptura com a heterossexualidade compulsória. As pessoas participantes se autodeclararam como:

Orientação sexual na pesquisa

Se analisarmos a pesquisa de mestrado Além da pele: um olhar antropológico sobre a body modification em São Paulodo Camilo Albuquerque Braz de 2006, vamos perceber avanços importantes com a ruptura com a heterossexualidade compulsória e mesmo com a heteronormatividade. Os avanços são marcados mais visivelmente na comunidade freak – comprometida com a luta contra as LGBTQIAPN+fobias – do que na comunidade da modificação corporal. Esta última – no que se refere a diversidade sexual e de gênero – segue com a mentalidade presa no passado, as vezes em 2006, outras vezes em 1230.

Pensando agora o marcador da deficiência, 89,9% declararam que não são pessoas com deficiências. Embora com baixa participação na pesquisa, esse dado é fundamental para que possamos traçar estratégias de enfrentamento ao capacitismo e da bipedia compulsória, que tanto impacto gera na saúde mental. Temos 10,1% que precisam ser considerados na pesquisa e lembrar que por trás de todo número, temos pessoas. Nossa gente. Sobre o capacitismo e a bipedia recomendamos fortemente a leitura da tese de doutoramento do Edu O. intitulada Vocês, bípedes, me cansam! Modos de aleijar a Dança como contranarrativa à bipedia compulsória na Dança defendida em 2023 na Universidade do Estado da Bahia – UNEB.

Por fim, e não menos importante, foi importante para a pesquisa saber qual o nível educacional das pessoas participantes, considerando o acesso e permanência na educação. Das 79 pessoas participantes, 1 tem doutorado enquanto 1 não tem o ensino fundamental completo. Obviamente que são extremos, mas que de algum modo trazem um apontamento importante e outras hipóteses. Quais os desafios das pessoas com modificações corporais e freaks em acessarem e permanecerem na educação institucional? Porque se em uma ponta temos uma pessoa que não finalizou o ensino fundamental – temos um ponto crítico – na outra ponta teremos apenas uma pessoa que conseguiu o doutoramento – o que é tão crítico quanto. A faca é de dois gumes. E quem a está amolando?    

Ainda sobre o nível educacional, 29,1% das pessoas têm graduação incompleta, enquanto 17,7% completou o Ensino Médio. Falar sobre pessoas freaks na educação é também falar sobre acesso ao mercado de trabalho, é falar sobre carreira e é falar sobre saúde mental. Tudo está conectado.

SAÚDE MENTAL ENTRE PESSOAS MODIFICADAS E FREAKS

Temos plena consciência que a nossa pesquisa teve um alcance pequeno e com isso uma amostragem bastante curta, mas nem por isso sentimos que ela tem menor importância, relevância ou validade, sobretudo quando encontramos o vazio e o nada que há de estudos sobre a nossa comunidade, em especial, a freak e a pauta da saúde mental.

A maioria das pessoas ainda estão interessadas em saber se dói fazer uma modificação corporal ou se vamos nos arrepender quando envelhecermos e não consideram, em nenhum momento, que a nossa gente não tem envelhecido, ao contrário, ela tem morrido aos montes muito precocemente. Muitas dessas pessoas foram suicidadas pela configuração de mundo que temos e só nós sabemos, só nós nos importamos, só nós precisamos refazer as nossas cerimônias fúnebres, para buscar oferecer algum tipo de dignidade na morte, para quem também não a teve em vida.

Esse é um dado que precisa ser destacado, nós não temos uma dignidade integral em vida e ela tão pouca está assegurada em nossa morte. A pesquisa – pequena e relevante ao seu modo – busca de alguma forma colaborar com o enfrentamento dessas violências silenciosas e invisíveis e que tanto tem afetado bruscamente a saúde mental de nossa gente e da nossa comunidade.

Das pessoas participantes da pesquisa, 88,6% não conhecem iniciativas e ações voltadas ao cuidado da saúde mental da população freak e de pessoas com modificações corporais. Assustadoramente as que disseram que conhecem, mencionaram o trabalho do FRRRKguys. Falamos de assustador porque não podemos ser a única plataforma. Temos consciência do nosso papel e responsabilidade, mas definitivamente não podemos ser a única via. Precisamos de atenção e esforços aqui para ampliar esse debate. Ficamos obviamente felizes em saber que consideram o nosso trabalho como algum tipo de cuidado, mas é preciso mais do que isso, o que implica em muitas outras lutas e frentes de trabalho, como o acesso à educação, trabalho e saúde. A gente grita viva o SUS, e precisa gritar mesmo porque é importante demais, mas precisamos gritar no mesmo tom: quando é que vocês vão nos tratar com dignidade? Desenvolveremos melhor esses pontos abaixo, em cruzo com os dados da pesquisa.

A partir de agora, de modo mais enfático, toda informação precisa ser lida de modo interseccional. Com a lucidez de compreender que quanto mais marcadores sociais da diferença se somarem em um corpo modificado ou freak, mas vulnerável a pessoa se encontrará. Não é sobre uma corrida de quem sofre mais, mas é ter a sensatez e a sensibilidade em perceber que as violências que atravessarão uma pessoa com deficiência, preta e freak não serão as mesmas de uma pessoa sem deficiência, branca e freak. Aqui é apenas um exemplo. A freakzice não elimina certos privilégios como o de classe, raça, gênero, sexualidade, deficiência, origem e etc. Se não entendermos isso, não entenderemos nada.

Ponto de partida é saber como as pessoas participantes estavam com a sua saúde mental. O gráfico abaixo nos apresenta uma amostragem.

Gráfico sobre como estava a saúde mental das pessoas participantes.

Das pessoas participantes da pesquisa, 32,9% não sente segurança em andar na rua. Lembra da intersecção? Então faremos uma sobre freakzice e gênero, considerando o número alto de mulheres cisgêneros que participaram da pesquisa. Uma pesquisa do Instituto Locomotiva, divulgada em Novembro de 2024, mostra que 97% das mulheres têm medo de andar na rua. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, 20% dos estupros no país acontecem em via pública. Os registros de importunação sexual aumentaram 46% no ano passado. Acabamos de acompanhar dois casos hediondos de violência contra a mulher e feminicídio que se iniciaram justamente nas ruas: A jovem Vitória, assassinada em Março, a jovem Bruna assassinada em Abril de 2025. Quem tem o direito – privilégio? – de sentir segurança em andar na rua?

Ainda pensando a rua, mas não somente ela, 43% das pessoas participantes da pesquisa afirmaram ter sofrido violência policial. Vamos fazer outra intersecção? Freakzice e raça. Em São Paulo temos hoje o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) de extrema-direita e alinhado com o fascismo brasileiro. A Frente Povo Negro Vivo realizou ato contra a violência policial no Estado e frisou, o que temos aqui “é política de morte”. Segundo dados novamente do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, pessoas negras tem 3,8 vezes mais chances de morrer em intervenção policial. Em 2024 ainda, foram 814 mortes em decorrência de intervenção policial em São Paulo. A 2ª edição do relatório “As câmeras corporais na Polícia Militar do Estado de São Paulo: mudanças na política e impacto nas mortes de adolescentes”produzido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), lançado em Abril apontaram que entre 2022 e 2024 aumentaram 120% a morte de crianças e adolescentes nas chamadas intervenções policiais. É importante destacar que é o período de gestão da morte – necropolítica – do governador Tarcísio que é de extrema-direita e que está inviabilizando o futuro de muitas maneiras.

Em ambiente público, 82,3% das pessoas que responderam a pesquisa apontaram que já sofreram discriminação por ser uma pessoa com modificações corporais e/ou freak. Aqui estamos falando de uma violência específica e direcionada e, em um país com uma ascensão fundamentalista religiosa, a demonização é o lugar comum. Basta olhar para a história para sabermos o que fundamentalistas religiosos fazem com quem consideram “endemoniados” ou com aquilo que não é de Deus. Procure saber, procure saber…

O ambiente virtual também é terreno de disputa, 48,1% das pessoas participantes da pesquisa alegaram que já sofreram discriminação em ambiente virtual por ser uma pessoa com modificações corporais e/ou freak. Para além dos dados coletados na pesquisa, o exemplo mais evidente que podemos trazer para discussão é o caso da Mar Revolta que enfrentou uma onda de ataques de ódio, aparentemente organizados, em sua conta no Instagram. Na ocasião, publicamos o texto “Eles nos odeiam muito: artista freak e travesti é atacada pela legião de imbecis da internet.

Precisaremos também falar sobre a instituição família, aquele modelo que tanto os fascistas defendem e que precisamos sim colocar em pauta, discutir e problematizar. Das pessoas participantes da pesquisa, 78,5% sofreram discriminação no ambiente familiar por ser uma pessoa com modificações corporais e/ou freak. Desse grupo, 15,2% sinalizaram que passaram por expulsão da própria casa. Ainda, quando perguntamos sobre violência física, tivemos o dado que 20,3% foram vítimas de violências físicas em que os agressores também foram pais e mães. Quando a pergunta foi se houve perda de pessoas por conta das modificações corporais ou ter se tornado uma pessoa freak, a resposta foi que 43% das pessoas participantes perderam alguém, desse número 67,6% apontaram que foram familiares. É realmente urgente colocar em pauta esse modelo de família que violenta, expulsa e abandona suas pessoas. É sim preciso colocar em pauta, discutir e problematizar.

A discriminação de pessoas com modificações corporais e freaks em ambiente hospitalar também é uma realidade pouco debatida, além da nossa bolha. Das pessoas participantes, o total de 64,6% alegaram ter sido vítima de discriminações e violências em hospitais. Coletamos na pesquisa relatos das discriminações, o que renderá um artigo separado, mas que como exemplo que precisa ser exposto: a repetição dos casos do descuidado com a aplicação de injeção ou retirada de sangue, afinal de contas gostamos de sentir dor e agulhas, associação estereotipada de pessoas com modificações corporais e o uso de drogas, com isso a falta de apreço, atenção e cuidado, assim como a repetição de relatos da brutalidade no atendimento, da recepção à pessoa médica, da pessoa médica a profissionais da enfermagem. Mais uma vez repetimos, é preciso defender o SUS, mas é preciso em igual medida defender que tenhamos tratamentos éticos e seguros em ambiente hospitalar. É preciso haver um letramento específico sobre a nossa população por parte da classe trabalhadora que atua na área da saúde. É impossível falar sobre saúde mental integral, enquanto ainda não tivermos a garantia de ir em um hospital sem sofrer violência. Não esqueça da interseccionalidade.

O acesso e permanência na educação é garantido na Constituição para todas, todos e todes. Mas infelizmente ainda as institucionais educacionais têm falhado miseravelmente quando o assunto é diferença. Das pessoas que responderam a pesquisa 54,5% alegram que sofreram discriminação no ambiente escolar/universitário por ser uma pessoa com modificações corporais e/ou freak. A maioria das violências – e assim que elas precisam ser chamadas e enxergadas – partiram de colegas, mas também docentes. A velha noção autoritária de legislar sobre o corpo alheio segue em vigor aqui e tem impacto no acesso e na permanência da nossa população na educação, seja no ensino básico mas também no ensino superior.

O mercado de trabalho por sua vez também deixa sua colaboração para o adoecimento da população com modificações e freaks. É importante dizer que quanto mais modificações corporais se tenha, maior a chance de discriminação e violência, incluindo espaços que ofereçam serviços de modificações corporais, em especial tatuagem e piercing. Sim, o capitalismo assimilou essas duas técnicas, alimentando a exploração dessa classe trabalhadora e ao mesmo tempo a sua exclusão (quando algum tipo de excesso ou ruído na normatividade compulsória é percebido). O capitalismo alimenta diretamente a normatividade compulsória, em outras palavras, você até pode ter uma tatuagem desde que não pareça uma pessoa tatuada. O combo elitista, da branquitude, da cis-heteronormatividade também cabe aqui feito uma luva de cimento. Por isso falamos de ruptura entre comunidade da modificação corporal e comunidade freak, esta última se posicionando fortemente como anticapitalista, como não poderia deixar de ser.

Ainda sobre o mercado de trabalho e pessoas com modificações corporais e freaks, das pessoas que responderam a pesquisa 53,2% alegaram ter sofrido discriminação no ambiente de trabalho, enquanto 64,6% apontaram que já perderam uma oportunidade de trabalho por conta do corpo que tem e é. Aqueles velhos clichês de “a vaga já foi preenchida” e não foi, “você não tem o perfil da empresa” que sabemos qual é o combo que buscam, “vamos entrar em contato” e nunca entram, são as portas fechadas que conhecemos bem e que alimentam diretamente a vulnerabilidade de toda uma comunidade. Lutemos bravamente contra a escala 6X1, que afeta principalmente a classe trabalhadora da modificação corporal mais precarizada e explorada, mas não nos esqueçamos da luta pela superação do enorme obstáculo: o nosso acesso ao mercado de trabalho.

Por fim, e fundamental, precisamos romper com a ideia cristalizada de que pessoas com modificações corporais só poderão trabalhar exclusiva e obrigatoriamente com modificações corporais. Precisamos expandir esse campo, e lutar para que tenhamos mais pessoas modificadas e freaks na educação, nas ciências, na medicina, na psicologia, na cozinha, nas vendas, nas tecnologias e onde quer que essas pessoas queiram estar. Falar sobre pessoas freaks e modificadas é também e sempre falar sobre classe trabalhadora.  

Outro ponto inflamado – e que perpassa diretamente a saúde mental – é a relação das pessoas freaks e modificadas com o sagrado, o espiritual, a religião. Temos, como dito, um país em ascensão fundamentalista religiosa, com isso, temos a demonização da nossa cultura e gente. O dado de que 48,1% das pessoas que responderam a pesquisa apontaram ter sofrido discriminação em ambiente religioso não nos aparenta ser uma surpresa, diante do contexto que temos. Todavia, é preciso considerar que algumas pessoas modificadas e freaks são teístas ou acreditam em algo e que seus direitos de crença e fé precisam ser protegidos. Isso também é sobre saúde mental.

O direito da fé e crença precisa ser assegurado.

Quando perguntamos se existe a sensação de que as discriminações sofridas por ser uma pessoa com modificações corporais e/ou freak  já afetaram negativamente a qualidade de vida, obtivemos o seguinte dado.

Efeitos da discriminação na qualidade de vida.

Em uma perspectiva global, é preciso sulear. Em um perspectiva de nós que vivemos nesse lugar que chamaram de Brasil, é preciso nortear. Em uma perspectiva da comunidade da modificação corporal ou da comunidade freak, é preciso cuidado a afirmação positiva e política de nossa diferença. O autocuidado. O cuidado coletivo. A afirmação da vida. A pesquisa e estudo que nos propusemos a realizar, são nutridos por esses desejos: cuidado coletivo, afirmação constante da vida.  

Das pessoas que responderam a pesquisa 46,8% estão em terapia. Precisamos descobrir modos, maneiras e formas de ampliar que esse cuidado seja possível para mais pessoas freaks e modificadas. Acompanhades por profissionais da psiquiatria, temos 32,9%.  E temos aquela % invisível de pessoas que nos escreveram posterior ao período da pesquisa confessando que queriam muito ter participado, mas que não tinham condições psicológicas no momento. Esse dado precisava aparecer de algum modo aqui, enquanto um sinal.

Diante de tudo o que foi apresentado, chegar no dado de que 67,1% das pessoas que responderam a pesquisa já tiveram diagnóstico de depressão acende um alerta. Reforçamos a necessidade de teia de apoio, autocuidado e cuidado coletivo. Reforçamos a necessidade de organização coletiva e luta contra toda e cada discriminação apresentada aqui. Não podemos relegar tudo ao campo da psicologia – sem negar sua importância – enquanto a configuração de mundo estiver armada para nos exterminar, seja simbolicamente, psicologicamente ou fisicamente. Ou ainda, nos exterminar epistemologicamente falando. Os nossos saberes são sagrados justamente porque vêm de fora.

Das pessoas que responderam a pesquisa, 58,2% disseram que já tiveram ideação suicida, enquanto 22,8% têm ainda. Quando tratamos sobre as tentativas, 55,6% já tentaram abreviar a própria vida. Então é isso, precisamos lidar com o fato de que nesse momento temos uma % significativa da nossa gente, da nossa comunidade, que pensa em não continuar conosco aqui. O que fazemos com essa informação? Cada qual terá uma resposta. Só, por favor, não caíamos no lugar da culpa e nem busquemos respostas fáceis para problemas complexos e multifatoriais. Nós do FRRRKguys igualmente podemos fazer muito pouco, mas a partir daqui, dessa sistematização de dados, pretendemos elaborar uma listagem de profissionais da psicologia com modificações corporais, freaks e aliades, com um primeiro movimento. Não nos esqueçamos também do serviço prestado pelo Centro de Valorização da Vida – CVV e deixamos nossos canais completamente abertos para que possamos encontrar e traçar outras estratégias para que a saúde mental da nossa comunidade seja cuidada com a dignidade que merece.   

Embora apenas 59,5% responderam que sim na pesquisa, nós gostaríamos de afirmar – a despeito da dor que isso nos implica – que você conhece alguém da comunidade da modificação corporal e/ou da comunidade freak que tenha se suicidado.  

Sabemos que existe a ideia vil e perversa de que o suicídio é um dos passos para pessoas que se modificam demais. Como se fosse um tipo de caminho único. Na realidade se trata de uma tentativa estúpida, distorcida e sem base científica de tratar uma questão complexa de modo simplista, estereotipado e covarde. Essa ideia inclusive já foi repetida – sem responsabilidade alguma – por pessoas da comunidade da modificação corporal. Estejamos de olhos bem abertos.

Sabemos que os veículos de comunicação e a indústria cultural não nos representam e tão pouco nos oferecem algum tipo de dignidade nem na ficção, nem na vida e nem na morte. Então lutemos para que isso se realize em algum momento e, ao menos, façamos isso por nós.

A maioria das pessoas que responderam a pesquisa (74,7%) disseram ter uma teia de apoio e afeto. Todavia uma parcela significativa (25,3%) não tem. Isso precisa ser olhado com atenção por todas, todos e todes nós. O que a comundidade freak quer? Guardem essa pergunta, ela retornará em outro momento.

Até ontem nós tínhamos dados soltos, conversas que apontavam problemas, e a sensação de que algo não estava bem em nossa comunidade. Os adoecimentos psicossociais, os desaparecimentos, as partidas precoces que não dão trégua. Agora, embora com uma pesquisa muito pequena, temos dados. Torcemos muito para que cientistas de diferentes áreas do conhecimento produzam pesquisas mais robustas sobre essa questão. Torcemos ainda mais que para que essas, essus e esses cientistas sejam pessoas com modificações corporais e freaks, porque sabemos que nenhuma ciência é neutra e precisamos chegar lá também, construindo pesquisas que estejam simbioticamente implicadas em nossas carnes e espíritos.

Olhemos para essa pesquisa e estudo não como um fim, mas um começo.  Como uma amostragem, com toda certeza subnotificada, da nossa relação com a saúde mental, que é que foi proposto, mas não deixando de vislumbrar o objetivo maior que foi – e sempre será – buscar dobrar o tempo (de vida) de nossa gente. Creio que aqui temos um objetivo e compromisso coletivo. Fiquemos com vida, enquanto uma dança furiosa da indignação e da nossa recusa em fazer parte da configuração do mundo tal qual está posta pelas classes dominantes!   

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