“- E agora, o que faremos?
– Poesia, esses canalhas não suportam poesia”
Rafael Corrêa
Mar Revolta é uma travesti não-binária, freak, educadora climática antiespecista, tatuadora e artista. Autora do zines, plaquetes e livros. Leiam pessoas trans e freaks!
No início de Fevereiro Mar participou do Ciclo: rabiscando outras pedagogias como parte do público. De seu encontro com a T. Angel, no primeiro dia de evento, a artista se disponibilizou para acionar a performance “Muito mais-que-humanas: a desistência da espécie enquanto práxis decolonial”. A ação performática é metamorfose de seu zine homônimo.
O Ciclo: rabiscando outras pedagogias não foi gravado na íntegra. O que temos são pequenos vídeos e fotografias das pessoas que passaram pelo evento em seus três dias, enchendo – de vida – uma sala do Sesc, ainda que chovesse muito nesses dias.
No último dia do ciclo, 06 de Fevereiro, no fechamento das atividades, aconteceu a performance da Mar Revolta. Lembro dos arrepios que me tomavam os braços siliconados e a nuca tatuada. Muito mais que humanas. Há uma potência que obviamente vinha do texto (comprem e leiam o seu zine!), amplificada pelo instrumento ou tanque de guerra que bombardeava nossos peitos. Mar foi aplaudida e celebrada. Ao fim, pensei muito em “A bala” de Paul Preciado. Naquele momento de uma noite quente e chuvosa de São Paulo, a Mar havia se tornado uma franco-atiradora “silenciosa” que havia disparado direto em nosso peito. E acertado em cheio – e bum!
Por instantes, pude ouvir uma espécie de sussurro do Preciado, atrás de minhas grandes orelhas alargadas, ele dizia: “a vida é maravilhosa, estamos esperando vocês, nós os caídos, os amantes de peito perfurado. Vocês não estão sós”.
Em 09 de Fevereiro, Mar Revolta publicou um pequeno trecho em vídeo da performance em sua conta no Instagram. São os minutos finais da ação. Hoje, 19 de Fevereiro, o vídeo conta com 27.432 visualizações, 888 comentários e 959 compartilhamentos. Em conversa com a artista, surgiu a informação de que é o vídeo mais visto de sua conta.
Então, é preciso dizer aqui que desde 09 de Fevereiro, a Mar Revolta está sendo atacada diária e frequentemente por aquilo que Umberto Eco chamou de legião de imbecis da internet. Não há outro modo de descrever esse grupo de pessoas e como se comportam.
Quando houve uma crescente nos ataques, busquei saber como ela estava. Fiz isso em todas as outras vezes que conversamos. Ela sempre afirmando estar bem. Eu sempre preocupada. É ódio e ignorância demais despejados gratuitamente contra uma pessoa. Sem pausa. É covarde, é perverso e é uma manifestação explícita do quanto essas pessoas nos odeiam e nos querem exterminadas ou trancafiadas em hospitais psiquiátricos.
Essa legião de imbecis é constituída por fundamentalistas religiosos, direitistas e fascistas. Fiz questão de entrar em muitos perfis para buscar analisar se havia um padrão específico. Pude perceber que são pessoas comuns, com suas fotos sorridentes e suas famílias em dias ensolarados. Muitos utilizam perfis profissionais e de seus pequenos negócios. São pessoas que passam no vídeo da Mar e despejam algum ódio, clamam por seu extermínio e depois retornam para seus afazeres cotidianos, como jantar com a família ou brincar com suas crianças. São pessoas terrivelmente comuns e que também em comum compartilham e comungam de um ódio muito específico contra nossa gente. Defensoras ferrenhas da normatividade compulsória, a qualquer custo.
Há uma insistência em associar a Mar – e as pessoas que estão no ciclo – com o Centro de Atenção Psicossocial – CAPS, em outras palavras, o discurso patologizante e que clama pelos manicômios. Mencionam inclusive a experiência de Barbacena, Minas Gerais, com o Hospital Colônia. Muitos clamam por violência e expressam o nojo que sentem por ela (por nós). O discurso que sataniza a diferença aparece bastante principalmente das pessoas fundamentalistas religiosas. Alguns pastores comentaram o vídeo com o típico “amor cristão”, ou seja, ódio. E há inclusive um homem negro pedindo a volta de Hitler. Pois é… Essas pessoas sabem exatamente o que estão dizendo e fazendo.

Essas pessoas não têm empatia alguma, não se preocupam que ali na outra ponta existe alguém recebendo todas aquelas informações odiosas. Não se preocupam com a saúde mental. Não se preocupam se o que está sendo despejado, sem pudor algum e publicamente, pode afetar a vida de alguém. Respeito é uma palavra e uma ação que elas desconhecem. E é por isso que o vídeo da Mar – e principalmente tudo o que ela representa – incomoda tanto essa gente mesquinha e bem alimentada de ódio e covardia. Eles sabem exatamente o que estão fazendo, repito.
E, é por isso, em coro com Mar que eu digo, eles que fiquem com a maldita e mísera humanidade e a normalidade deles. O que queremos tem outro nome e está em outro lugar.
Freaks, monstras e pessoas dissidentes, estejamos sempre atentas com a nossa multidão esquisita. Diante de ataques grandes e insistentes assim, que tenhamos força para oferecer suporte, que tenhamos sabedoria para não deixar que essa legião de imbecis envenene nossos poços de vida.
Podemos ao menos deitar nossas cabeças essa noite, sabendo que não faríamos igual e é justamente essa a nossa preciosa diferença e raridade. Sigamos assim. Atentas, firmes e fortes e recusando – enquanto ação política – fazer e ser como eles.
Mar, te abraçamos forte e ternamente como uma onda, obrigada por existir e estamos contigo. Você não está só. Sejamos e façamos poesia para transtornar a normatividade compulsória e seus defensores.
