“Aprender mesmo a gente aprende quando o saber não é mercadoria. Quando é com mestres e mestras, eles não cobram. Eles ensinam para manter o conhecimento vivo. Quando você compartilha o saber, o saber só cresce. É como as águas que ‘confluenciam’. Quando o rio encontra o outro rio, ele não deixa de ser rio. Ele passa a ser um rio maior”.
Nêgo Bispo
Há algumas marcas e marcos na história da comunidade da modificação corporal e, mais especificamente na comunidade freak que precisam ser compartilhadas e celebradas. Em 25 de Janeiro o Grupo de Estudos Sobre Modificações Corporais – GESMC completou 10 anos. Mais do que apenas rememorar essa década, queremos contar um pouco sobre os processos que nos levaram até a sua instauração.
Dois mil e vinte e quatro é um ano importante deveras para essas histórias que temos vivido e escrito. Que reverberam na elaboração e permanência do GESMC até aqui e depois daqui. Oxalá depois daqui.
Marcos, marcas e histórias de rios que ‘confluenciam’…
É em 2024 que se completou 20 anos da precoce partida de Felipe Klein (1983-2004). A experiência de Klein no campo das modificações e experimentações corporais influenciaram toda uma geração para além do Brasil. A sua precoce morte em 17 de Abril de 2004 nos ensinou que a sociedade dominante não nos oferecerá paz e nem dignidade até mesmo depois que morremos. Ao contrário, ganharão prêmios e congratulações por nos desumanizarem mais do que fizeram em vida. Não nos esqueceremos. Felipe Klein, presente!

É em 2024 que se completou 18 anos do FRRRKguys. Um trabalho independente que tem escrito e ao mesmo tempo fomentado a cultura da modificação corporal no Brasil, chamando para instauração e organização na comunidade freak. Um trabalho que busca lembrar sempre – e o tempo todo – que modificação corporal sem consciência de classe é harmonização e conformação com um sistema hediondo de moer gente, sobretudo das populações minorizadas e subalternizadas, como a nossa. “Não somos corpos dóceis”, já dizia o Manifesto Freak.

É em 2024 que se completou 10 anos da precoce partida de Enzo Sato (1987-2014). A curta história de Sato na indústria do body piercing, nos mostrou sobre a importância da criatividade, dedicação e de acreditar sempre. A sua precoce morte em 26 de Setembro de 2014 nos ensinou que o nosso tempo é outro, infelizmente, quase sempre mais curto. Que é preciso sensibilidade e atenção aliada ao cuidado da nossa gente. É preciso cuidar da nossa gente, porra! Que, a despeito de toda dor da partida, é preciso cuidar das nossas cerimônias fúnebres para nos oferecer dignidade. Que, a despeito de toda saudade, é preciso cuidar dos nossos mortos para lhes oferecer mais existência. Enzo Sato, presente!
É em 2024 que se completou 10 anos da instauração do Grupo de Estudos Sobre Modificações Corporais – GESMC. Encontros frequentes em 2014 e 2023. Em São Paulo, Paraná e Minas Gerais. Em cozinha, sala, garagem, praça e estúdios. Encontros espaçados ao longo dos anos. Mas a insistência em continuar. Algumas vezes apenas ali marcando o apoio em uma produção audiovisual como Sauntering, ou como suporte em cursos e palestras que tratavam de dissidências e, principalmente, do nosso recorte de modificações e experimentações corporais.
O Grupo de Estudos Sobre Modificações Corporais – GESMC surgiu em 2014 da necessidade de se promover estudos, diálogos críticos e profundas reflexões sobre as práticas que rondam a comunidade da modificação do corpo e que tem se desdobrado na comunidade freak. Diante de todos os retrocessos que fomos vivendo desde 2013 com a antipolítica, a ascensão da extrema-direita, aumento de células neonazistas e a proliferação do fundamentalismo religioso, era preciso se organizar. Buscou e se assumiu um papel independente e que foi se auto-elaborando, o GESMC está desde seu início e não pretende estar nunca relacionado com nenhuma instituição. Entendemos que as instituições são mais uma ameaça para as práticas e culturas de se modificar o corpo (dentro do nosso recorte) do que o contrário. Não nos dobraremos.

Há muito o que gostaríamos ter feito… Mas estamos em paz com o que conseguimos até aqui.
Há muito o que pretendemos fazer… E precisamos de muitas mãos, cabeças e corações para continuar.
Vamos seguindo dentro da precariedade que marca toda a nossa trajetória. Do começo até aqui.
Deixamos um agradecimento público para todas as pessoas que fortaleceram o GESMC ao longo dos anos. Seja participando como palestrante, seja como alguém que estava com interesse em somar com vozes e escutas desobedientes, ou as duas coisas.

É preciso ainda dizer que temos um pequeno caderno – surrado pelo tempo, é verdade – onde coletamos as assinaturas das pessoas presentes em nossos encontros. Algumas pessoas que assinaram o caderno, hoje estão encantadas. Dar continuidade ao trabalho do GESMC é também oferecer mais existência para essas pessoas. Do encontro com suas assinaturas, letras e energias depositadas ali, naquele tempo precioso, é entrar em contato com a história que buscamos escrever e, mais do que isso, é cuidar, proteger e disseminar vidas: como sementes jogadas ao vento.
É preciso seguir adiante, rumo a quem sabe, talvez, mais algumas décadas. É preciso seguir adiante sem medo. E sem perder o sonho de vista. De olhos pigmentados bem abertos. Coletivamente, como rios bravos que se encontram e se agigantam. Monstruosamente.
GESMC, viva!
NOTA: Havíamos pensado em elaborar um encontro presencial e remoto para celebrar os dez anos, mas escolhemos ficar aqui com as palavras. Celebremos cada qual a sua maneira e reconhecendo a importância que cada qual oferece para essas marcas e marcos. Que venham os encontros quando tiverem que vir. Seguindo, seguindo…