Há um ano, publicamos aqui a matéria e entrevista História do piercing: uma conversa com Jairo Camargo. Hoje retornamos com uma segunda parte, para aprofundarmos algumas reflexões, registros de sua história e dialogar. Falar sobre a profissão, pensar sobre a vida.
Jairo Camargo, nascido em 1973 em São Paulo, tem atuado como body piercer desde o início da década de 90. De ascendência indígena por parte de mãe é uma referência para nossa história. É um dos primeiros de uma profissão que hoje está consolidada e que não para de crescer no Brasil.
Agradecemos mais uma vez pela oportunidade e compartilhamento de sua história conosco.
T. Angel: Olá novamente, Jairo Camargo. Vamos para segunda parte da nossa conversa? Podemos falar um pouco mais de profissão e vida? Quem é o Jairo Camargo, em suas próprias palavras?
Jairo Camargo: Um enorme prazer estar aqui novamente. Agradeço a oportunidade. Claro que sim, sou uma pessoa que encontrei um caminho de muitas realizações na minha profissão desde quando ainda não era reconhecido como profissional. Ver hoje todo avanço me enche de felicidade. Eu sou um cara que tem a oportunidade de viver do que ama. Sempre tive um bom alicerce e respaldo de profissionais qualificados e amigos de profissão e isso na minha opinião é importante.
T. Angel: Sobre a sua ascendência indígena, você consegue nos dizer um pouco mais sobre essa origem?
Jairo Camargo: Ao certo não sei qual minha origem indígena. Minha mãe não era de aldeia mais, meus avós já eram de fazendas da Sul Mato-Grossense. Minha mãe fala Guarani, língua comum na divisa com o Paraguai. Mas isso me proporcionou uma infância conectada com a natureza selvagem do Brasil. Onde estão parte das minhas raízes.
T. Angel: Qual a sua perfuração corporal favorita?
Jairo Camargo: Em geral gosto de todas e já fiz perfurações em muitas partes do corpo. A língua quando eu vi pela primeira vez com um brinco me deixou extasiado. O mamilo é um clássico do piercing, o que eu mais gosto e tem representatividade pra mim, principalmente o masculino.
T. Angel: O que o body piercer modificou em você para além do corpo?
Jairo Camargo: Modificou meu conceito de vida completamente, aprendi a ver tudo de uma maneira igual entre as pessoas sem preconceito, de uma maneira que une as pessoas independente de qualquer fronteira.
T. Angel: A categoria freak apareceu em sua vida? Se sim, como você a compreende? Se não, o que pensa sobre o assunto.
Jairo Camargo: Meus primeiros contatos nos anos 90, tudo parecia freak. Mas a história me mostrou a parte mais antiga e as origens da body mod, nas convenções vinha muita gente de fora do Brasil. Vi as apresentações do Kamikaos, as primeiras suspensões aqui. Lukas Zpira, Emilio, La Negra e outros que não me lembro os nomes exatamente. Era muito legal.
T. Angel: Na primeira conversa falamos sobre o começo da sua carreira como body piercer, queremos saber hoje dos desafios que envolveram a sua permanência enquanto piercer e como você se sente agora enquanto profissional.
Jairo Camargo: Eu vivo isso desde o fim da adolescência pra adulto, então não é uma questão de ganhar dinheiro, é um estilo de vida. Passei por várias fases e tudo evoluiu sempre pra melhor, e sendo visionário sabia que isso ia acontecer. Minha vontade sempre foi s de ajudar, principalmente a fazer as pessoas que não conhecem nada a respeito disso entenderem o básico. Também tive vontade de abandonar tudo quando as coisas começaram a se popularizar de maneira errada. Como profissional estou sempre atento e busco atualizar meus conhecimentos técnicos e praticando constantemente. O bom é inimigo do melhor.
T. Angel: Você sempre trabalhou apenas em São Paulo? Caso não, por onde mais circulou ao longo dos anos?
Jairo Camargo: Sempre trabalhei em São Paulo, no mesmo estúdio por 27 anos. Existem navios, eu sou o Farol. As pessoas iam e vinham e eu sempre aqui, sem sair de SP. Tive a oportunidade de conhecer as melhores referências do Brasil e do mundo. Embora tenha sangue indígena, sou nascido e criado em São Paulo. Agora mais velho sinto necessidade de viajar.
T. Angel: Hoje temos associações, congressos e seminários para piercers profissionais ao redor do Brasil. Como você vê essas iniciativas?
Jairo Camargo: As iniciativas sérias que realmente capacitam as novas gerações de maneira correta.
Sou altamente contra curso online ou de uma semana que oferece certificado, uma longo assunto que quase destruiu a profissão.
T. Angel: Você teria interesse em participar desses seminários e congressos? Se sim, qual tema você gostaria de estudar e qual você teria interesse em ensinar?
Jairo Camargo: Sempre tenho interesse em aprimorar meu conhecimento e técnica em todas as áreas referente a modificação corporal. Material adequado, biossegurança, atendimento ao cliente pré e pós perfuração. Hoje muitos profissionais ensinam muito bem, o que eu gostaria é de poder ajudar com minha participação, o que muito me ajudaria a melhorar também.
T. Angel: Falamos na primeira entrevista do impacto do corpo modificado no começo de 2000. Como tem sido envelhecer sendo e tendo um corpo modificado? Como você tem lidado com isso?
Jairo Camargo: Eu estou muito bem, começando a envelhecer com toda modificação que eu tenho. Já tirei alguns piercings, fiz outros e alguns vão me acompanhar até a morte. Minhas tattoos estão um pouco desbotadas, as vezes um retoque nas cores, sempre tem espaço pra uma tattoo nova.
T. Angel: Temos um grande interesse em entender os processos educativos dentro do piercing. Sabemos que você não oferece cursos, mas que formou algumas pessoas. Poderia citar alguns nomes e falar sobre esses processos educativos na sua história?
Jairo Camargo: Eu sou da velha escola, quando você era apadrinhado pelo estúdio. Aprendi com quem já sabia, o que me fez conhecer como tudo funciona da forma correta. Dessa maneira tive quem aprendeu comigo. Eu fui um professor do fundamental. Depois eles seguiram seus caminhos. Os primeiros contatos que alguns tiveram sobre técnica do body piercing. Os mais marcantes foram o Pereira, Ater Pontes, Zumba, Enzo Sato, trabalharam comigo e ficaram mais tempo do meu lado.
T. Angel: Uma história marcante enquanto piercer que você poderia compartilhar conosco?
Jairo Camargo: Pra mim sempre foi um misto de diversão e trabalho. A reação das pessoas sempre é uma surpresa. Quando as joias chegavam da Wildcat da Inglaterra, por exemplo, era um momento marcante, dava vontade de estourar fogos de tanta felicidade.
T. Angel: Pensando o Jairo pessoa e não profissional, conversamos em privado sobre sua adicção. Sabemos que é uma parte sensível de sua história e que falar sobre ela é também um modo de alertar as pessoas de nossa comunidade sobre cuidados e redução de danos. Como foi e está sendo esse processo para você?
Jairo Camargo: Não foi uma fase fácil e eu não percebi o quanto ela estava progredindo em mim pra parar ou pedir ajuda. Redução de danos no meu caso não funcionou, tive que ter mudanças radicais nessa parte da minha vida caso contrário não teria sobrevivido. Isso inclui cuidado físico, mental, emocional e espiritual. Espiritualidade não é religião.
T. Angel: Sobre o seu cuidado com a espiritualidade, você poderia nos contar um pouco mais?
Jairo Camargo: A espiritualidade surgiu com a necessidade de acreditar que só um Poder Superior a mim poderia me ajudar. Uma luz, mesmo que no momento eu não pudesse ver. Como eu concebo isso é indiferente, pode ser a força do universo, o poder que vem de dentro de mim ou Deus. Mas sei que existe e que cada dia que eu deposito minha vida nas mãos dele, as respostas aparecem de várias maneiras. Qual caminho tomar, inspiração, um pensamento intuitivo ou uma decisão. Prece e meditação .
T. Angel: Falamos muito sobre a importância das redes de apoio e afetos para passarmos pelas fases mais turbulentas da vida. Você tem uma rede? Como tem sido isso para ti?
Jairo Camargo: Pra mim isso foi fundamental. Tenho sim uma grande rede de apoio e com toda certeza sozinho eu não teria conseguido sair. Até porque, enquanto eu não perdi tudo, não só na parte material e quase cheguei na completa insanidade eu não pedi ajuda, embora todos de fora sabiam que eu precisava. A doença me deixou sem enxergar e ouvir. Conheci a solidão como poucos vão conhecer.
Hoje um propósito importante e fundamental pra mim é ajudar quem quer ajuda pra parar de sofrer nas garras da dependência química e do alcoolismo, e fazendo isso quem eu mais ajudo é a mim mesmo. Ninguém entende melhor o outro do que quem passou a mesma coisa.
T. Angel: De tudo o que fez e viveu até aqui, qual a maior lição que você tirou?
Jairo Camargo: A lição nunca termina! Mas todas as experiências que eu passei, em todos os aspectos da minha vida, hoje me ajudam a ser um pessoa em paz com o mundo e comigo.
T. Angel: Para quem deseja realizar um procedimento contigo, o que deve ser feito?
Jairo Camargo: Como eu disse no começo, eu quero viajar e aproveitar o começo da minha idade que eu espero ser a mais serena. Atendo no estúdio de amigos, nesse momento estou na Zona Leste de São Paulo e é super fácil me encontrar nas redes sociais.