Tenho defendido a ideia de que existe a comunidade da modificação corporal e a comunidade freak, como duas possibilidades distintas. Sobre isso não voltarei a escrever aqui, recomendo a leitura do texto publicado em 23 de Junho de 2021 AQUI no FRRRKguys.
PRIMEIRAS PERGUNTAS
Há dez anos temos e lemos o Manifesto Freak. Para além das frases de impacto, o que temos? Como um texto se torna ação? Como um texto se torna comunidade?
PRIMEIRO RASCUNHO
“Essa comunidade vai muito além do nosso relacionamento cara a cara uns com os outros, como seres humanos. Na educação, principalmente, essa comunidade nos conecta com as […] “coisas boas” do mundo, e com a “graça das coisas boas””
Parker Palmer
No dia 1° de Maio de 2025 aconteceu o Aulão Beneficente, chamado e organizado por mim, para arrecadar fundos para uma pessoa freak em situação de muita vulnerabilidade. Abri o encontro levantando a pergunta: o que a comunidade freak quer? Sem pedir ou oferecer nenhum tipo de resposta, apenas deixando a pergunta, não no ar, mas como o ar. No entanto, agora busco aqui rascunhar uma primeira resposta.
A verdade é que ao perguntar o que a comunidade freak quer, eu passei a me perguntar se existe de fato uma comunidade freak. Estou certa que ela é um chamamento para construção, é um projétil, uma perspectiva outra para nós pessoas freaks com perspectiva progressista. Mas eu preciso saber, nesse momento, nesse aqui e agora, uma vez que afirmo que faço parte da comunidade freak, o que de fato existe dela. Para além do chamamento – para um amanhã incerto para a maioria das pessoas freaks – o que já conseguimos construir enquanto comunidade? O quão sólida e firme é essa construção? As respostas chegam e desaparecem na mesma velocidade. Eu as deixo ir e vir em fluxo.
Eu tenho certeza e posso afirmar que faço parte da comunidade da modificação corporal, porque tenho um corpo modificado, mas ela não é e nunca foi suficiente (ou segura) para mim e por isso fiz a travessia para a comunidade freak. Mas diante da experiência do 1° de Maio, eu passei a me perguntar, para além do discurso militante e errático de rede social, de espalhar a palavra do Manifesto Freak, o quanto verdadeiramente estamos nos distanciando – ou queremos tomar distância – da comunidade da modificação corporal? Como aquele lugar que cabe de tudo, em outras palavras, capturada pelo neoliberalismo, repleto de fascistas e lambedores de bota de milicos e bilionários. Aquela comunidade que não é comunidade, mais um agrupamento heterogêneo de pessoas que só tem em comum o fato de modificarem seus corpos, e que no entanto, alimenta a competição típica capitalista de quem tem mais ouro, diamante, a bolsa ou o carro mais caro.
A informação “uma pessoa freak em situação de muita vulnerabilidade” desperta o que na comunidade freak? Que forças podemos mover para nos ajudar/cuidar/proteger mutuamente?
No Aulão Beneficente apenas 10 pessoas se inscreveram, apesar de dias divulgando a ação e pedindo ajuda para compartilhamentos e afins. Tenho consciência que a difusão da ação implicou em pequenas doações diretas para pessoa que precisava ser ajudada, objetivo alcançado, ótimo. Mas 10 pessoas freaks para fortalecer uma movimentação em uma situação grave? Estou há dias imersa em pensamentos.
Fico pensando que a baixa participação efetiva de pessoas implicou em ausência de holofote e hype, coisas que nem eu, nem o FRRRKguys e, tão pouco a comunidade freak, que vivo e acredito, têm interesse em se conectar. A nossa busca por conexão está em outros lugares: afirmação das nossas existências, a luta por nossa dignidade e o estabelecimento de uma comunidade verdadeiramente comprometida com os princípios de solidariedade e justiça.
Fico pensando que a baixa participação efetiva de pessoas implicou em delinear que temos uma micro comunidade. São sempre as mesmas poucas pessoas juntas e movendo o impossível para fazer a vida valer, lembra de 2018? Você ainda se lembra de 2018? Mas fico um tanto desassossegada porque me parece mais com uma tentativa de passar pano para uma comunidade que ainda não resolveu bem o princípio da solidariedade. A bell hooks (1952-2021) fala muito sobre a construção de uma comunidade amorosa e, honestamente, não sei se podemos afirmar que já chegamos perto de algo assim, para além das mesmas poucas pessoas que correm juntas sempre.
Fico pensando que a baixa participação efetiva de pessoas implicou em marcar que somos mais vulneráveis do que pensamos. Vulneráveis pela união ainda não construída, mas também por questões psicossociais e econômicas. Somos um grupo minorizado, economicamente prejudicado e com todas as consequências que vêm com isso.
Estou pensando ainda.
Não espero que as grandes e pequenas empresas que transformaram a comunidade da modificação corporal em indústria cheguem junto. Em 19 anos de FRRRKguys elas nunca chegaram, por razões óbvias, e estou completamente em paz com isso. Todavia, fico pensando comigo, e compartilhando neste pequeno rascunho, mas e as pessoas freaks? Quando elas vão realmente chegar junte? Para além daquelas poucas que sempre estão juntas, é importante repetir.
Em segundos consigo lembrar de no mínimo 10 pessoas freaks, com grande influência em rede social, que poderiam fortalecer a construção da comunidade e poderiam ter fortalecido muito a ação do 1° de Maio. Mas aí vejo competição de quem é “mais freak” e penso, bem, bem, algo se perdeu aqui, nosso corre é realmente outro. O brilho em excesso ofusca? É… É… É preciso olhar para o lado. É preciso olhar para baixo. É preciso estender a mão, porra. Likes, likes, likes, likes, milhões de likes não vão nos salvar.
No decorrer da divulgação do Aulão Beneficente eu escrevi que a aula já estava acontecendo. Teve a parte bonita da aula em que 10 pessoas se inscreveram (obrigada!) e outras cinco pessoas freaks doaram seus serviços para ajudar na causa (obrigada demais!). Teve a outra parte – que não chega a ser feia, mas preocupante –, que é a ruptura da fantasia de que conseguimos construir um outro lugar, diferente, seguro e acolhedor e preocupado com nossas vidas precarizadas.
A verdade é que eu estou exausta de perder pessoas. Eu estou exausta de ver pessoas da comunidade freak com pouca ou nenhuma dignidade na vida e também na morte. Eu estou exausta de ver tantas pessoas freaks sem perspectivas. Eu estou exausta de chamar, chamar, chamar e não ser ouvida.
Porque a comunidade freak não é sobre fazer voto de pobreza, mas combater as injustiças sociais, o que implica primeiramente a gente acordar e se perguntar: o que eu freak, quero/preciso/espero de uma comunidade? E em seguida perguntar também, qual a minha implicação e responsabilidade com isso tudo? Talvez respostas venham, talvez respostas vão. É urgente que possamos aprender modificar além de nossos corpos e corpas, mas o nosso interior, a mais radical, extrema e complexa modificação está aí. Caso contrário, muda-se a embalagem, mas todo o resto permanece o mesmo.
Em Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança, a bell hooks citando o educador Parker Palmer e pensando o campo educacional, diz que precisamos conhecer essa comunidade, sentir essa comunidade, perceber essa comunidade. Extrapolo o campo educacional e busco aplicar para nós freaks – um nós coletivo, emaranhado, conscientemente coletivado – e afirmo, ainda que exausta, que precisamos conhecer, sentir e perceber a comunidade freak. Para nós que estamos aqui agora, para as próximas gerações que chegarão. O nosso tempo é outro.
O que a comunidade freak quer? O que você freak quer? O quanto existe da comunidade freak para além do campo teórico?
Outros rascunhos virão. Ou não. Estou exausta.
ADENDO: Do 1° de Maio para agora, dia 17, soube de outras três pessoas freaks que estão em situação vulnerável e precisando de ajuda, por diferentes razões. Além da pessoa em si que o aulão beneficente tentou de algum modo ajudar. Como eu disse lá no aulão, a história se repete (e não deveria).