A cientista social Claudia Machado entrevista David Le Breton

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ENTREVISTA COM DAVID LE BRETON

Cláudia Machado de Souza
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense- UFF.
<souza.claudiam@gmail.com>

David Le Breton é professor de Sociologia e Antropologia da Universidade de Strasbourg na França. Seu trabalho tem influenciado de maneira significativa os estudos sobre o corpo e a corporeidade. É autor de uma série de obras publicadas na França e traduzidas para várias línguas em todo o mundo. Livros como A sociologia do corpo, Adeus ao corpo e As paixões ordinárias estão entre os títulos traduzidos no Brasil.
Nos estudos sobre Moda, Arte e Cultura, o trabalho de Le Breton se insere trazendo ao longo de toda a sua produção uma multiplicidade de temáticas que servem de aporte teórico para se pensar o corpo na atualidade. Em alguns de seus trabalhos mais recentes, como Signes d’identité- tatouages, piercings e autres marques corporalles (2002), o autor debate a body art num contexto em que as identidades culturais estão cada vez mais fluidas, onde o corpo torna-se uma espécie de acessório, expressão dos desejos dos indivíduos. Ao mesmo tempo em que os corpos tatuados, perfurados e marcados são tratados como objetos da arte, também se inserem no campo das construções de si. Ao tratar o corpo como emblema do self, o autor amplia os olhares sobre o corpo objeto da arte, inclusive
no debate das subjetividades expressas na carne. Desta forma, o autor constrói algumas   de   suas   acepções   sobre   os   usos   das   marcas   corporais   na contemporaneidade.
Em sua breve estada em Buenos Aires para o seminário Imaginarios e itinerarios del cuerpo na Universidade de Buenos Aires e para uma série de conferências na cidade, o autor concedeu esta breve entrevista na qual aborda questões relativas ao seu trabalho sobre a body art, promovendo, desta forma, um diálogo entre suas publicações sobre o tema e suas escolhas pessoais para tratar o objeto de pesquisa.

1.  Em A sociologia do corpo (2007) e em Adeus ao corpo (2007) já existe uma sinalização sobre a importância da body art para se pensar as abordagens  do  corpo  na  sociologia  e  na  antropologia,  o  que  parece culminar em seu trabalho Signes d’identité: tatouages, piercings et autres marques corporalles (2002). Fale um pouco sobre a sua relação com esse campo e como ele tem contribuído para o desenvolvimento das suas pesquisas?
A body art é uma disciplina muito importante para se entender o estatuto do corpo  no mundo  de  hoje. Os artistas fazem uma análise do corpo um pouco diferente da sociologia e da antropologia e por isso abrem caminhos que o antropólogo e o sociólogo não poderiam tomar porque estão cativos de uma metodologia e uma epistemologia.

Eu sempre aprendi muito com a literatura, o cinema, o teatro e particularmente com a body art. Eu escrevi muito sobre body art, com artigos, catálogos de exposição, etc. e sou amigo de alguns artistas e fotógrafos.

A maneira de mostrar o corpo já é uma análise do estatuto do corpo por si só. Na body art eu gosto muito do trabalho de Gina Pane, uma artista de origem
italiana  que  viveu  na  França.  As  suas  performances  demonstram  a  violência vivenciada pelas mulheres, particularmente acerca da tirania da beleza e da juventude. Uma das performances mais fortes de Gina é maquiar-se com laminas de barbear, mas é muito mais do que isso, é complexo. O seu trabalho fala da violência de uma mulher se aprontar para o olhar dos homens. É uma maneira de fazer surgir tudo que está adormecido no inconsciente e mostrar toda a violência sofrida por essas mulheres num mundo de homens. É um trabalho que gosto muito pela sua sinceridade, o empenho e pelo esforço de Gina que diz que ser um artista é receber um chamado do mundo para fazer surgir toda a violência e libertar todas as pessoas que não estão bem.

No mundo da body art há muitas coisas interessantes como o trabalho de Orlan, que critica as cirurgias plásticas estéticas e que abre caminhos para as modificações corporais, mas o faz de uma maneira muito subversiva. Quando por exemplo faz dois implantes na região lateral de sua testa mostra que não é somente a beleza que é procurada nas marcas corporais, mas também uma vontade de ter um corpo singular, um corpo que só pertença à pessoa.

2.  Em seu livro Signes d’identité: tatouages, piercings et autres marques corporalles (2002) uma importante transição das marcas corporais é levantada,  a sua passagem de símbolo de dissidência para exteriorização de si. Gostaria de ouvi-lo a respeito disso e das especificidades dos usos do corpo tal como são apropriados pelos adeptos e entusiastas da body modification em vertentes como os Modern Primitives (de Fakir Mussafar) ou o Body Hacktivism (de Lukas Zpira).
As  marcas  corporais  por  muito  tempo  foram  sinais  de dissidência  e  de rebeldia. Durante os anos 70 e 80 se modifica a cultura de massa, neste momento é que muitos jovens adotam a cultura do piercing e da tatuagem. A história da
tatuagem é a transformação de uma forma de ética, numa forma de estética. As marcas corporais que foram sinais morais de rejeição ao mundo, passam à uma integração completa e finalmente a uma forma de elogio ao mundo. É verdade que existem outros caminhos que correm em 3 vias: A primeira via seria a do mainstream, das marcas corporais usadas pelos jovens como forma de embelezamento; A segunda seria a dos modernos primitivos onde há uma busca de espiritualidade, de transformação não somente do corpo, mas de seu interior. Uma busca por ritos de passagem, assim como por outras formas de religiosidade que nada tem haver com as igrejas ou com as instituições. É uma forma de elaborar um sagrado pessoal. A terceira  via  pode ser o body hacktivism de Lukas Zpira, que é bem interessante e complicada. Ela está no campo da espiritualidade e da tecnologização do corpo, o que pode parecer uma contradição. O corpo para Lukas é claramente obsoleto. Ele sonha em livrar-se de seu corpo. O seu body hacktivism é uma forma de antecipar a fusão da carne com a máquina. Creio que há uma espiritualidade nisso, mas também é um jogo de personagem que faz da sua vida uma forma de apresentação permanente. É como se tudo fosse uma peça de teatro e a sua vida um grande palco.

3.  O Livro Onanisme manu militari II (2005) contou com a sua participação. Este livro teve uma grande divulgação entre os praticantes e profissionais da body modification se não especificamente sobre seu conteúdo, mas pela presença de um sociólogo na produção. Dois importantes canais de difusão de informação (um de língua espanhola, outro de língua inglesa) divulgam a obra, bem como a sua presença nela. O também popular site Hacking the future conta com a presença de alguns de seus artigos. Gostaria que falasse sobre a sua contribuição nessas produções, assim como opinasse sobre a relação pesquisador-pesquisado nesse contexto; Sobre os limites que devem  ser  considerados nesta relação  para construção efetiva do trabalho de campo; E sobre a sua percepção acerca das interferências de seu trabalho nessa realidade.
Participei do livro de Lukas por amizade. Eu sou uma pessoa que acredita muito no valor da amizade. Quando Lukas me convidou para o livro eu aceitei prontamente. Pessoalmente eu acho que meu corpo está ótimo, não quero me transformar. Eu vivo a minha espiritualidade na escrita, viajando, caminhando. Eu não  preciso  das  tatuagens,  dos piercings  ou  de outras  modificações.  A  minha posição de sociólogo não me impede de viver e caminhar como os outros no campo do teatro, da literatura, das artes plásticas. Eu não vejo uma contradição entre a minha posição de cientista e de companheiro de caminhada das pessoas. E mais do que isso, é caminhando com essas pessoas que me encontro numa posição maravilhosa para melhor entender e escrever sobre essas pesquisas de arte contemporânea.

É claro que existem limites entre a sociologia e a arte. Eu mantenho meu trabalho de pesquisa no campo da antropologia. Quando escrevo Adeus ao corpo, por exemplo, sou crítico do cientificismo, dessa maneira de tomar a tecnologia como outra forma de religiosidade ou de salvação. Eu contesto isso, porque para mim a técnica está mais próxima da opressão, do culto da performance, do neoliberalismo, do mundo do dinheiro e da velocidade. Eu não acho que o homem é feito por isso, mas pelo caminho da lentidão, da amizade, do diálogo e da contemplação.

Estou acostumado com a interferência na realidade porque já escrevi muito no campo da medicina, do tratamento dos doentes e eu sei que sou muito lido por médicos, enfermeiras e doentes que encontram nos meus livros uma maneira de melhor entender e posicionar-se frente à doença e às técnicas da medicina. Eu escrevi  um  livro  sobre  a  dor  e  muitas  pessoas  que  sofrem  de  dor  às  vezes
encontram respostas em meus trabalhos. Escrevi sobre as experiências dos jovens, e os seus parentes e os profissionais que trabalham com juventude também me lêem e encontram instrumentos para entender e agir. Então se artistas como Lukas ou outros usam meus livros é uma felicidade, porque escrevo para mudar o mundo como qualquer escritor engajado quando escreve com sinceridade. Para mim a escrita é a coisa mais importante do mundo não pela estética, mas pela ética, pela transformação do mundo que um escritor pode iniciar. Quando um livro me emociona, acho que o escritor atingiu o seu objetivo. Eu fico muito orgulhoso com esse  reconhecimento  e  também  reconheço  a  importância  do  trabalho  desses artistas.

REFERÊNCIAS

LE BRETON, David. Adeus ao corpo. Papirus. Campinas- São Paulo. 2007.

______________.  A Sociologia do corpo. Editora Vozes. Petrópolis- Rio de janeiro, 2007.

______________. Signes  d’identité:  tatouages,  piercings  et  autres marques corporalles. Métailié.  Paris, 2002.

ZPIRA, Lukas. Onanisme manu militari II. Hors Edtions. França, 2005.

JUNO, Andrea; VALE, V. Modern Primitives: an investigation of contemporary adorment and ritual. Research. Estados Unidos, 1989.

Entrevista concedida em 19 de abril de 2009, em Buenos Aires.

* “Entrevista publicada originalmente na revista Iara – Revista de Moda,Cultura e Arte
Iara – Revista de Moda, Cultura e Arte – São Paulo – V.2 No.2 out./dez. 2009 – Entrevista

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