A primeira suspensão corporal no Brasil

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Fotos: Andrea Sacco

A história da suspensão corporal no Brasil segue em constante e potente desenvolvimento. A pergunta que colocamos hoje é: quando tudo isso começa no Brasil? Abaixo iremos trazer uma reflexão sobre o assunto com uma registro histórico bastante importante com uma pequena entrevista com o artista e body piercer Filipe Espindola, que gentilmente compartilha seus registros em história e imagens conosco.

Essa conversa precisa partir do entendimento de que no começo do ano 2000 a suspensão corporal estava restrita aos pequenos grupos ligados com vertentes das modificações corporais que estavam para além da tatuagem e do body piercing e próximas da cultura BDSM.

Especificamente em 2001 tudo mudaria quando o programa SBT Repórter exibiu uma matéria sobre modificação e suspensão corporal. Período em que a televisão era mais poderosa do que hoje e que a internet estava começando a se espalhar no Brasil.

Pesquisas (Ibope eRatings e Nielsen/NetRatings) apontam que no começo do ano 2000 apenas 5,7% da população tinha algum tipo de acesso à internet. Hoje as pesquisas (TIC Domicílios 2019) apontam que esse número é de 74%. Ter consciência dessa transformação é entender a mudança radical que passamos no que se refere as formas que utilizamos para nos informar, comunicar e nos atualizar no mundo. Ter consciência disso é entender um pouco mais da nossa afirmação sobre o poder (e alcance) da televisão na época e nas construções das narrativas.

Dito isso e retomando a discussão, o programa de televisão citado acima mostrava algumas tantas experiências que estavam acontecendo no exterior, mais pontualmente nos Estados Unidos da América. Os casos de suspensão corporal apresentados eram de lá, inclusive de um brasileiro – o body piercer Andre Meyer – que tinha realizado a sua primeira suspensão em 1998 em Texas com o Traumatic Stress Discipline – TSD encabeçado pelo Allen Falkner. Em alguns documentos (revistas, como a Trip por exemplo) encontramos que a suspensão de Meyer aconteceu em 1999, mas ele próprio diz em entrevista recente ao João Gordo em seu canal no Youtube (Panelaço) que o ano foi 98.

Percebemos que pelo poder e projeção da televisão a narrativa única que se criou era de que o Andre Meyer foi o primeiro brasileiro a se suspender. Na entrevista ao João Gordo no Panelaço, quando questionado sobre a prática da suspensão corporal, Andre Meyer diz que “fui o primeiro brasileiro (…) não no Brasil”. No entanto, o primeiro registro de suspensão corporal no Brasil é de abril de 1998 na região de Campinas, interior de São Paulo, procedimento realizado por Filipe Espindola em João Mittwoch (in memorian).

Trabalhar com esses registros históricos – como estamos fazendo aqui – não significa atuar dentro de uma lógica capitalista de competição, mas de organizar as nossas informações e histórias. É olhar com carinho e cuidado para o nosso álbum de fotos coletivas e ouvir as histórias que ficaram abafadas, entendendo a importância de ouvi-las para enriquecer ainda mais a nossa cultura.

O ano de 1998 fica sendo o marco para o começo das suspensões corporais no Brasil. Seja com Filipe Espindola realizando a primeira no país (enquanto profissional), seja com Andre Meyer realizando a sua primeira no exterior (enquanto corpo suspenso) e com ambos espalhando a cultura adiante. Com isso, conseguimos inclusive datar a prática com precisão, falar que há duas décadas vemos e temos o desenvolvimento dessa prática em nosso país atendendo diferentes demandas e desejos.

Na intenção de divulgar e compartilhar essas histórias e registros, conversamos com Filipe Espindola que nos contou mais detalhadamente sobre a primeira suspensão corporal no Brasil.

O primeiro registro brasileiro de suspensão carrega em si inúmeras situações especiais que envolvem uma primeira vez. Perceber ainda que esse primeiro registro – quando olhamos para os atores – rompe com a lógica de senso comum de que seja uma prática de adolescentes rebeldes ou de “jovens doidões” (sic) é, ao mesmo tempo, uma quebra com o etarismo e que nos coloca diante de algo mais intenso, complexo e profundo. Desde sua primeira vez…

Confira abaixo a nossa conversa.

FRRRKguys: Quando você conheceu a suspensão corporal?
Filipe Espindola: Conheci a suspensão corporal em 1994 através do Trash (Marchioni Tattoos – Campinas SP) que era meu veterano em Artes Visuais pela UNICAMP e tatuava na casa dele. Lá me apresentou muito material desde revistas internacionais de tatuagem, livros de artes, revistas em quadrinhos e até uma versão em xerox do livro Modern Primitives com a famosa entrevista do Fakir Musafar, que fala entre outras coisas sobre a suspensão corporal. Foi a primeira vez que li algo sobre essa pratica.

FRRRKguys: Como surgiu a oportunidade de realizar a primeira?
Filipe Espindola:
A primeira suspensão que realizei em 1998 aconteceu após meses de elaboração (pela internet discada e usando fax como meio de troca de desenhos e fotos), de uma semana de modificações corporais em João Mittwoch.
Conheci ele na 1ª Convenção de Tatuagem do RJ em 1997, apresentado pelo Trash, com quem eu trabalhava na época em nosso primeiro Studio (ele tatuando e eu perfurando) no centro de Campinas.
Durante um ano estreitei laços de amizade e parceria com João que sugeriu passar 15 dias em Campinas se submetendo a todos tipos de modificação corporal que eu pudesse realizar nele. Na ocasião realizamos 68 piercings, inúmeros alargamentos, um butterfly, uma série de piercing plays, uma sessão de branding e, no último dia, sua suspensão.

FRRRKguys: Sobre os materiais usados, como as escolhas se deram?
Filipe Espindola: Os materiais foram escolhidos por mim e por Andrea Sacco que hospedou João por 15 dias, além de fornecer as jóias para os piercings (que importou da italiana Newstar) e preparar o frame e ganchos. O frame optamos por fazer de madeira pela facilidade em prepará-lo com ferramentas caseiras. Os ganchos eram de pesca de 2,5 mm com as fisgas esmerilhadas um por um e posteriormente esterilizados. Não existiam ganchos disponíveis no Brasil na ocasião.
Escolhemos a posição conhecida como Super-Homem e usamos 24 ganhos, sustentando 66 quilos.

FRRRKguys: Depois da primeira experiência quanto tempo demorou para segunda e o que mudou?
Filipe Espindola: A primeira suspensão (do João Mittwoch) realizamos em abril de 1998 e a segunda em novembro de 1998, elevando Roberto Medeiros pelos ombros.
Roberto se correspondia com João pelo ICQ e pelo chat do BME e trocaram impressões sobre a suspensão e João me recomendou à ele. Trash e eu o suspendemos em Campinas auxiliados por Cris Moffato. Com 4 ganchos de 2.5 mm na posição conhecida como suicide.

FRRRKguys: Como você enxerga a prática hoje no Brasil (e para além daqui)?
Filipe Espindola: De 1998 até hoje a prática da suspensão corporal cresceu muito e se profissionalizou, com materiais e técnicas muito melhores e mais seguros. Também podemos dizer se tornou mais comercial, espetacular e quase esportiva, demandas do mundo capitalista que hoje vejo de forma diferente da visão que eu tinha nos anos 90, quando iniciei nessas práticas.
No mundo todo sei que muitas pessoas procuram as práticas de suspensão com o intuito genuíno de autoconhecimento e transcendência físico espiritual. Mas vejo que muitas vezes essas “atualizações” de práticas ancestrais são meramente apropriação cultural e desejo ver esse debate ampliar mais a cada dia, revendo inclusive o conceito tão difundido de primitivo moderno enquanto agente de invisibilidade dos povos originários praticantes desses ritos de passagem que dizemos nos inspirarem e os quais teoricamente valorizamos.

CONTATO
https://www.instagram.com/filipeespindola/

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