A ruptura com o binarismo de gênero dentro da comunidade da modificação do corpo

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935325_4913157832049_2047094038_n                                                         (Eva Medusa | Foto: Atkins Photography – 2013)

 

  “Estamos entrando numa época em que as minorias do mundo começam a se organizar contra os poderes dominantes e contra todas as ortodoxias”
Félix Guattari, “Trois Milliards de Pervers”, março de 1973

 

 

Não é de hoje que a questão de gênero vem ocupando a minha cabeça, mais pontualmente os estudos sobre as pessoas transgêneras, assim como de toda população que vem rompendo com o binarismo de gênero. Nesse campo de estudo me sinto menos estrangeira do que anos atrás e é importante registrar isso como mais um canal que motiva essa pesquisa em fluxo. Obviamente que os estudos sobre o corpo, que começou através da body modification, serviu como alicerce para esse processo com os estudos sobre o gênero.

As trilhas das minhas pesquisas até o presente momento me fazem crer que a comunidade da modificação do corpo caminha em linha tênue com as pessoas trans*. Apenas como um adendo, se faz importante esclarecer que toda vez que houver o emprego do termo pessoas trans* (abreviação de várias palavras que expressam diferentes identidades, tais quais transexuais, transgêneros, travestis e pessoas não binárias, ou seja toda e qualquer pessoa a qual o sistema normativo binário de gênero não representa), estou buscando reconhecer as mais variadas identidades e o mais importante, evitando exclusões de qualquer tipo. Esse texto é justamente o avesso da exclusão.

Em síntese, o binarismo de gênero postula que as pessoas são exclusivamente homens ou exclusivamente mulheres (ou somente masculino e feminino), consequentemente nega, silencia e oprime toda a multidiversidade de gênero que existe no mundo. O binarismo – e sua respectiva manutenção – é um atentado ao direito de ser humano que se manifesta de diversas formas, inclusive através da segregação espacial, exclusão social, assédio moral, violência física e incontáveis casos de morte, pensando somente o Brasil.

Se faz necessário ter bastante claro na mente que “todas as coisas, todos os seres, estão fixados de antemão”, como disse o filósofo espanhol Fernando Savater, menos o ser humano. As pessoas não são monólitos e de fato não estão fixadas no tempo e espaço, mas sim em constante processo e fluxo. Reconhecendo isso – e principalmente fazendo valer a alteridade e subjetividade de outrem – é possível crer que as pessoas podem ser o que elas quiserem. Outrossim, um cachorro sempre será um cachorro, uma árvore sempre será uma árvore, enquanto que o ser humano pode ser aquilo que bem entender, onde, como e quando quiser. Eis uma dádiva a ser celebrada e não mais silenciada, subjugada e negada, diante de um olhar da supremacia conservadora da sociedade contemporânea e, tão pouco, controlada através da biopolítica.

Mas o que eu quero exatamente dizer é sobre a proximidade entre a body modification e as pessoas trans*, relação esta que antes de mim já havia sido percebida por outras pessoas, dentre elas, o próprio Shannon Larratt. Para ele as modificações corporais eram tão arraigadas e imutáveis quanto a orientação sexual. Em outras palavras, não se tratava apenas de escolhas. Para mim, se trata de uma constituição de identidade e fazendo valer do pensamento de Judith Butler (1956), as modificações corporais possibilitam – através da colagem de códigos, símbolos e signos – uma performatividade não só da sexualidade, mas de gênero – e porque que não de espécie? – e da vida. O que dizer de The Lizardman e Dennis Avner?

 

“(…) Pela repetição de atos, gestos e signos, do âmbito cultural, que reforçariam a construção dos corpos masculinos e femininos tais como nós os vemos atualmente. Trata-se, portanto, de uma questão de performatividade. Para Butler, gênero é um ato intencional, um gesto performativo que produz significados”
(PISCITELLI, 2002)

 

No livro Modcon (2002),de autoria de Shannon, é possível reconhecer muito facilmente essas relações entre pessoas trans* e pessoas cisgêneras homo, bi e heterossexuais coabitando em harmonia o mesmo espaço da comunidade da modificação corporal. Um estágio que no Brasil não alcançamos ainda, o que vem reafirmar que o cenário da modificação corporal nacional está não apenas atrasado como profundamente descompensado. Reflexo também da despolitização desse grupo.

Um dos primeiros estudos a perceber a falar sobre a questão de gênero dentro da comunidade body mods, pode ser visto na dissertação de mestrado Além da Pele (2006) de Camilo Braz. Atualmente existe uma pequena produção sobre a temática (body mods x gênero ) dentro da academia. Ao que parece dentro desse campo, quando se pretende estudar sobre as modificações corporais, o objetivo da pesquisa tem sido em reconhecer questões bastante primárias e que já existe material suficiente. É preciso, também dentro da academia, dar um passo adiante.

Como costumo dizer nos encontros do GESMC e nas palestras que tenho feito, a prática da modificação corporal não está descolada do restante da sociedade. Com isso quero dizer que apesar dos corpos modificados tencionarem e questionarem padrões estéticos através inicialmente de suas construções, muitas vezes em todo resto eles, os corpos modificados, abraçam o status quo e reproduzem todo o sistema de crença, cultura, vida, sexualidade e gênero. O que grosso modo implica em reproduzir o conservadorismo e o moralismo que assola a sociedade. A radicalidade, muitas vezes, fica presa à casca e não passa disso. Não vou nem entrar no mérito dos grupos e pessoas neonazistas e fascistas que também fazem modificações corporais, pois se trata de uma aberração cognitiva, como diria a professora Chauí. Não é incomum perceber dentro da comunidade da modificação do corpo o patriarcalismo, machismo, o sexismo, o cissexismo, a homofobia, a lesbofobia e a transfobia, justamente porque ao não estar descolada do todo, a comunidade reproduz o sistema patriarcal, machista, sexista, cissexista, homofóbico, lesbofóbico e transfóbico da sociedade. Parafraseando o historiador Marc Bloch, “a incompreensão do presente nasce da ignorância do passado” e pelo visto tem sobrado ignorância na comunidade da modificação do corpo, no que se refere ao preconceito com a sexualidade, além da heterossexual, e gênero, além do binarismo compulsório. Em qualquer pesquisa superficial sobre a história da modificação corporal moderna é possível se deparar com a importância do movimento LGBT para essas práticas, ou você não conhece a relevância do Jim Ward (1941) para o body piercing? Na década de 60, nos Estados Unidos da América, Jim participava de um grupo gay ligado ao sadomasoquismo, com quem pode fazer experimentos com piercings nos mamilos e, principalmente na década de 70, nos genitais. No Brasil uma das primeiras pessoas a trabalhar com o body piercing de modo profissional foi Zuba, mulher e lésbica. Com isso, quero dizer que o movimento gay (que por sua vez deve muito ao movimento trans*) é muito importante para a história do body piercing, tal qual conhecemos hoje, goste você ou não. Se em qualquer esfera da vida contemporânea a homofobia é inaceitável, dentro da comunidade da modificação corporal é muito mais.

 

Atualmente a discussão sobre a visibilidade trans* tem ganhado mais espaço. Junto com esse movimento (que é mundial) muitas pessoas tem levantado a bandeira sobre suas identidades de gênero. Gostaria de mencionar algumas pessoas pois elas estão sendo responsáveis por uma transformação de mentalidade bastante importante e talvez nem saibam disso. Todas essas pessoas tem uma relação bastante particular com as modificações corporais, em níveis “extremos” como se convencionou chamar. Falar sobre elas é ao mesmo tempo agradece-las: Anos atrás AQUI entrevistamos a Roni (que é da Polônia e vive em Londres), atualmente ela está passando por diversas cirurgias para remodelar seu corpo e recentemente registrou o seu nome como Veronica Carol.

1532078_10203913804114198_243089666151888455_n                                                                                             (Veronica Carol | Foto: Robert Millward, 2014)

 

Nos Estados Unidos temos a Eva Medusa, que vem falando sobre o seu tratamento com hormônios e do quanto se sente realizada como mulher.

 

10262183_10201903518614877_7113759027159635130_n                                                                                 (Eva Medusa dos Estados Unidos da América)

 

Também nos EUA, temos Mara que igualmente vem questionando o binarismo de gênero, mesclado de suas intensas relações com as modificações corporais. Ainda na América do Norte, não podemos deixar de mencionar a Farrah Flawless que “saiu do armário” como trans* não faz muito tempo, e você pode ler CLICANDO AQUI seu depoimento e inclusive doar dinheiro para ajudar em suas cirurgias.  Impossível também não mencionar o tatuador Touka Voodoo, que faz questão sempre de mencionar ser um transhomem e que você pode acompanhar um pouco o processo de transição em uma publicação do BMEzine.

149452_10151442946122170_765515877_n                                                      (Touka Voodoo em publicação feita por Shannon Larratt no Modblog)

 

Além das pessoas que transitam do feminino para o masculino ou do masculino para o feminino, tem aquelas que não estão interessadas nem em um e nem em outro, nesse caso é impossível não lembrar do africano Eldge, que nos concedeu uma linda entrevista anos atrás e que você pode reler CLICANDO AQUI.

CAP004                                                                   (Eldge diz se sentir trans* no sentido de transcendental)

Além dele, o próprio Denis Avner (1958-2013) que havia modificado o seu corpo rompendo não só com o gênero, mas com a própria espécie humana, buscando alcançar maior semelhança com um animal. Avner dizia que seu totem era um tigre fêmea, explorando e borrando as fronteiras de gênero. Algo que muito pouco se falou, mas que é bastante relevante.

c3c66d1d805bc573f14096725c5b57ec                                                                    (Dennis Avner conhecido também como Stalking Cat)

Além dessas pessoas que menciono aqui, há tantas outras que eu gostaria de incluir nesse texto, como forma de trazer a visibilidade e principalmente para mostrar que o número não é pequeno. Todavia, essas pessoas preferem o contrário. A primeira identidade, aquela imposta de berço, ficou para trás e assim essas pessoas preferem deixar, lá para trás.

Dentro da massa de possibilidades de se modificar o corpo, o nosso recorte – tatuagem, piercing, escarificação, implantes, etc – é uma micro parte. Dentro dessa micro parte existem as pessoas que não só não aceitam os padrões estéticos impostos pela cultura – e com isso alteram os seus corpos -, como buscam romper com a padronização de sexualidade e gênero, sendo assim, fazendo brotar um outro micro recorte. Essas pessoas são a minoria da minoria, e apesar de serem poucas, têm uma legitimidade em suas existências que é impossível mensurar, de tão grande. É essa minoria, com suas micro-ações que trazem as evoluções e revoluções mais significante em uma perspectiva macro de nossa história.

Não há revolução sem as pessoas trans* e desconhecer a importância dessas pessoas, é desconhecer a própria força motriz que move a roda do mundo!

“(…) como uma identidade da não-identidade, ou melhor, uma reinvidicação de si que nasce de não se sentir ligado a uma situação definida e definitiva, mas, ao contrário, em trânsito, em transformação, em relação, em fluxo.”
Helena Velena, ativista italiana

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