A série inglesa ‘Bodyshockers’ chega na Netflix e traz consigo muitos problemas além das modificações corporais

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my-tattoo-hell-matthew(Foto: reprodução Metro.co.uk)

No dia 01 de Maio de 2016 chegou à Netflix a primeira temporada da série inglesa Bodyshockers. A sinopse diz que o programa acompanha as jornadas de pessoas que fizeram mudanças radicais em seus corpos e gostariam de revertê-las. Tatuagens, piercings, alargadores, implantes, manipulações do cabelo e dentes são algumas das técnicas que o programa explora.

A apresentadora do Bodyshockers é a Katie Piper que é ex-modelo e filantropa. Katie tem uma história bastante forte com a violência contra a mulher. Em 2008 depois de duas semanas de relacionamento com Daniel Lynch, a modelo passou a temê-lo por conta de um ciúme doentio. Pelo comportamento agressivo, a então modelo resolveu terminar o relacionamento, foi quando ela foi agredida e estuprada por ele. O caso não foi denunciado no hospital em que ela foi atendida e nem na polícia pois Piper estava com medo. Então, um novo ataque aconteceu. Um homem, que foi pago por Daniel Lynch, atirou ácido em seu rosto. O ataque a deixou em coma por 12 dias, desfigurada e cega de um olho. Desde então ela vem passando por inúmeros procedimentos cirúrgicos como parte de seu tratamento e recuperação. Katie Piper diz no programa que o seu interesse pelas modificações corporais partem dessa sua experiência posterior ao ataque, o que quer dizer que parte de um trauma.

53133e90-ebca-4453-b45c-11f35c420eda_625x352(Katie Piper é a apresentadora do programa. Foto: reprodução Channel 4)

A primeira temporada de Bodyshockers, produzida em 2014, está dividida em 4 episódios que receberam o nome de My tattoo hell (I), My piercing hell, My tattoo hell (II), My big boob hell. A dinâmica do programa é apresentar variadas técnicas de modificação corporal, algumas em vias de serem feitas e outras para serem desfeitas, o que eles chamam de os arrependidos. O choque de corpos que o título do programa sugere é que eles promovem o encontro de uma pessoa que deseja fazer um procedimento, por exemplo uma tatuagem, com outra que passou pelo procedimento, se arrependeu e reverteu. A ideia que eles dizem querer passar é que a pessoa possa refletir se é realmente aquilo que ela deseja para si, mas a forma que essa dinâmica se apresenta é como se o programa tentasse desestimular e desencorajar que a pessoa fizesse a modificação corporal. A pessoa que pretende se modificar e a audiência do programa.

O primeiro ponto é que nenhum programa de televisão é neutro ou livre de intenção e isso precisa estar claro em nossas cabeças. A nossa leitura é a de que Bodyshockers tem a intenção de trabalhar com uma espécie de terror psicológico para de fato desestimular que pessoas tenham a autonomia sobre seus corpos. Embora o discurso da apresentadora diga em alguns momentos que não, que cada um faz o quer com o corpo, todo o formato e a dinâmica do programa a contradiz. As próprias expressões e repetidos textos negativos sobre algumas técnicas de alterar o corpo também a contradizem.

As personagens que se arrependem das tatuagens, passam por um processo de remoção com laser com um médico. Tivemos a ligeira impressão de que o programa estava vendendo o procedimento de remoção pelas constantes repetições e como essas cenas se mostram em comparação com as demais. Há interesses capitais, a apresentadora faz filantropia, não o filme.

Dentro do campo da tatuagem, body piercing e demais modificações, por exemplo, os profissionais não têm voz, não têm espaço para fala. É uma carência bastante crítica sobre informações precisas e que poderiam fazer as técnicas serem mais seguras, se a intenção fosse essa, mas não é. Quando se mostra um procedimento de implante subdermal, só aparece os braços do possível profissional responsável, o que reforça a invisibilidade e reafirmação da marginalização de algumas técnicas por parte do programa. Quem tem voz são os médicos, cirurgiões e dentistas e isso é um forte indicador da intenção negativa que o programa reservou para algumas técnicas e isso é grave.

ZX9931A002S00_460(Foto: reprodução Abc.net.au)

Uma outra parte bem crítica do programa é o sexismo machista que permeia a produção. O que é super problemático uma vez que a apresentadora é uma sobrevivente do feminícidio, não só do ataque de ácido. A informação que ela foi atacada pelo seu ex-namorado não aparece no programa, ela apenas diz que foi atacada por ácido. Estranhamos essa informação não aparecer, somadas dos outros sinais. Por exemplo, uma personagem conta para Piper que sua orelha alargada rasgou após um homem desconhecido ataca-la por trás na rua e puxar sua orelha ao ponto de arrebentar. Sobre isso nenhuma palavra, o que visivelmente causava incomodo na apresentadora eram os piercings e alargadores da moça. A mesma personagem tinha um quadro em que a família não aceitava muito bem suas modificações e isso se repetia em outras situações. Uma outra personagem, criada pelos avós, também não tinha boa aceitação de suas tatuagens. As duas contavam sobre a pressão social para que elas não tivessem modificações corporais e sobre isso nenhuma palavra. O que se agrava com um discurso que sugere que a mulher precisa estar bonita para casar, para construir família e o estar bonita, obviamente, não incluía piercings e tatuagens. A ideia do “bela, recatada e do lar” é muito forte no programa, embora com outro texto, a mensagem sexista está ali. Óbvio que não só no piercing e tatuagem, mas como até no tamanho dos seios.

Então as pessoas revertem algumas modificações e tatuagens. A apresentadora se mostra entusiasmada, a diferença de tratamento é clara, o posicionamento dela é claro. Um personagem diz que as pessoas não sentavam do lado dele no ônibus, que olhavam estranho, que rasgaram seu currículo quando ele buscava emprego e que o seu desejo de reverter sua orelha alargada era para ser mais aceito. Sobre essas pequenas violências simbólicas nenhuma palavra, mas ficou ali pairando que o problema não está no sistema que ainda exclui pessoas por seus corpos, mas nas pessoas que se modificam. A culpabilização das vítimas e não do sistema violento que diz o tempo todo para elas não existirem.

Bodyshockers--Katie-and-Callum(Reprodução: Mirror.co.uk)

Então vem o efeito “eu sou a Universal”. Pessoas que revertem modificações corporais aparecem enfaticamente dizendo que melhoram a vida, conseguiram emprego, estudo ou coisa que o valha. Nenhuma palavra sobre a exclusão social de pessoas por seus corpos.

Veja, estamos falando de um programa que foi rodado na Inglaterra e em 2014, é inacreditável o nível de conservadorismo que aparece ali. O preconceito pulsa e se manifesta de diferentes formas e através do próprio programa também, que tem uma intenção clara. Estamos falando de violências físicas, psicológicas e simbólicas que foram simplesmente ignoradas. Trata-se os sintomas e não as causas. Superficialidade tamanha, a colonização não teve fim.

Se a ideia era fazer um programa apenas sensacionalista e raso, a missão foi cumprida. Qualquer outra intenção ficou distante, bem longe. Apesar disso Bodyshockers aparentemente fez sucesso pois novas temporadas foram produzidas, alguém lucrou e ganhou com isso.

 

 

 

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