Documentário fala sobre a tatuagem de cadeia no Carandiru

Fotos: reprodução / Youtube

“(…) E o que eu acabei descobrindo e, que eu só venho fazendo essa reflexão hoje em dia, é que existe uma localização muito clara de racialização e condição social, mesmo na modificação corporal. Eu comecei a perceber que a presença dos corpos negros, corpos mestiços, estava basicamente fadada a literatura médica e a literatura jurídica, ou seja, aparecendo nos livros de medicina, aparecendo nos livros de criminalística, no Museu do Crime aqui em São Paulo na USP. Na academia de polícia tem o Museu do Crime, que tem as peles tatuadas, então isso tudo vira artigo de fetiche. É um fetiche um pouco mórbido. As fotos dos presidiários do Carandiru, que são clássicas, enfim… E os corpos brancos ocupam qual espaço? As capas de revistas de tatuagem, não é? Que são as meninas brancas, os meninos brancos, corpos hegemônicos, magros, padrão, etc, etc, etc… “
Sara Panamby em palestra no Perspectivas Kuir nas práticas artísticas contemporâneas, 2016. 

 

“Eu gostei muito da pergunta sobre as pessoas que cometem crimes. É importante perceber que essas pessoas perdem os direitos civis, mas não perdem o direito como um humano. Aí a pessoa, muitas vezes, tem aquele olhar punitivista de que “ah, não merece”. Merece! Por mais que a gente se indigne, obviamente, dependendo do que a pessoa faz, bom, ela perdeu os direitos dela civis, mas jamais ela vai perder o direito dela de ser tratada como um ser humano. (…) Ela tem que ter o respeito a sua integridade física e a gente vê que, em um país como o nosso, que a população negra, sobretudo, é a população que é encarcerada em massa… Por isso que tem esse olhar de que tem que bater, de que tem que exterminar, porque esse sujeito já vem sendo desumanizado e se quer é visto como alguém que merece respeito, que merece ser bem tratado. E a gente vê quando tem essa ligação. E o quanto esse encarceramento em massa da população negra tem uma ligação direta com o escravismo. (…) E as vezes a gente não faz essas ligações e acha que aquele sujeito, o Estado já vem falhando com ele há tanto tempo, aí depois, se por um acaso ele é preso, aí então tem que morrer.”
Djamila Ribeiro em entrevista para o Estação Plural, 2016. 

 

A falência do sistema prisional brasileiro tem sido fortemente debatida recentemente após as rebeliões no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus (AM) – onde 67 presos foram mortos – , na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista (RR) – onde 33 presos foram mortos – e na Penitenciária de Alcaçuz , em Nísia Floresta (RN) – onde foram mortos 26 presos. Para especialistas da área, como a Pastoral Carcerária – CNBB,  não há em curso uma crise no sistema prisional e sim um projeto, que via de regra atende o projeto de mundo neoliberal.

“Crime e castigo tornaram-se commodities, e corpos, quase todos pretos, novamente tornaram-se objetos de comércio e barganha, dessa vez em benefício dos senhores das prisões privadas. ” 
Pastoral Carcerária Nacional – CNBB

Parafraseando o Racionais MC’s na canção Negro Drama, lançada em 2001, “você deve tá pensando, o que você tem a ver com isso”. E com a mesma canção esboçamos não uma resposta, porque podem ser tantas, mas um apontamento histórico:

 

“Desde o início,
Por ouro e prata,

Olha quem morre,
Então veja você quem mata,
Recebe o mérito, a farda,
Que pratica o mal,

Me ver pobre preso ou morto,
Já é cultural” 

Nós do FRRRKguys, publicamos essa matéria na intenção de romper com o discurso raso de que “bandido bom, é bandido morto” e principalmente, para nos posicionarmos contra o projeto capitalista de encarceramento em massa, sobretudo, de pessoas negras, acompanhado da criminalização da pobreza. 

Recentemente o portal Outras Palavras publicou uma lista – que você pode CLICAR AQUI para acessar – com dez documentários para nos ajudar a compreender o que se passa com o sistema prisional brasileiro. Todos de uma importância fundamental – e que de uma forma ou de outra se complementam – para toda a sociedade, mas falaremos daqui em diante do premiado filme  Prisioneiro da Grade de Ferro (autorretratos), dirigido por Paulo Sacramento e lançado em 2003. Como um adendo, curiosamente o diretor do documentário, foi produtor no filme Encarnação do Demônio (2008) de José Mojica Marins, conhecido também como o Zé do Caixão. A curiosidade está por ter sido um filme que contou com um elenco de profissionais e entusiastas das modificações corporais e conta com cenas de suspensão corporal e lip sewing (costura dos lábios).

O documentário Prisioneiro da Grade de Ferro (autorretratos) se passa na Casa de Detenção de São Paulo, popularmente conhecida como Carandiru. O equipamento foi inaugurado na década de 1920, desativado e parcialmente demolido em 2002 no governo de Geraldo Alckmin, que inclusive participa do filme glorificando as 40.000 novas vagas nas cadeias. Em caráter de informação, “o Brasil chegou à marca de 607,7 mil presos, ante 581 mil do ano anterior. Desta população, 41% aguardam atrás das grades seu julgamento. Ou seja, um sistema em que há 222 mil pessoas presas sem condenação“, como traz a matéria acima citada do Outras Palavras.

O Carandiru já chegou a abrigar mais de oito mil presos, sendo considerado à época o maior presídio da América Latina. Foi o local do Massacre do Carandiru em 2 de outubro de 1992, quando 111 detentos foram mortos pela Polícia Militar de São Paulo durante uma rebelião. Após a demolição do equipamento, no local foi construído o Parque da Juventude.

O documentário, que foi filmado durante sete meses no presídio, retrata a ineficácia do sistema carcerário brasileiro, sobretudo sua falha no processo de ressocialização. As lentes de Paulo Sacramento conseguem captar a desobediência a vários princípios constitucionais, principalmente em relação à dignidade do apenado. O diretor entregou a posse das câmeras aos próprios presos, para que eles filmassem seu dia-a- dia e para dar veracidade à situação em que vivem. Essa iniciativa esteve associada com uma oficina de vídeo que aconteceu no presídio. O resultado muito particular que temos, embora tenha o processo posterior de edição, é a voz da própria pessoa em situação de cárcere. 

Apesar de mostrar criminosos, o filme expõe a maneira – muitas vezes inusitada e criativa – que os presos encontram para (sobre)viver no cárcere, numa tentativa de diminuir o tempo que sempre insiste em correr mais vagarosamente quando se está cerrado dentro das gaiolas de ferro. Por outro lado, o documentário revela as condições sub-humanas a que os apenados estão submetidos no cárcere, confirmando o descaso Estatal que impera no sistema penal brasileiro. 

Entre as maneiras  inusitadas e criativas de (sobre)vivência estão suas relações com diferentes religiões, esportes, artes e pequenas profissões – nos apropriando aqui da proposta do cronista carioca João do Rio (1881-1921) em A alma encantadora das ruas – dentre as quais, o tatuador. O filme mostra diferentes tatuagens nos corpos dos presidiários e conta com detalhes como é feita a máquina de se tatuar. Embora seja uma parte pequena é muito interessante perceber que as tatuagens estão presentes o tempo todo em variados corpos e subjetividades. 

A tatuagem no Brasil por muito tempo foi apenas associada ao crime, embora hoje ainda exista em uso uma cartilha produzida pela Polícia Militar da Bahia, que enfatiza a relação. É importante entendermos que a tatuagem de cadeia é uma das correntes onde essa prática – como fenômeno cultural – se realiza. Mas talvez esse seja o menor dos problemas que temos em nossas mãos considerando o nosso cenário político mundial. Precisamos romper de uma vez por todas com as algemas que nos prende, o que abarca a luta contra a exclusão e injustiça social, contra a segregação espacial, contra o encarceramento em massa da população negra e pobre. Nada do que estamos vivendo está implícito, muito pelo contrário, é tudo explícito, jogado o tempo todo em nossas caras anestesiadas pelo capitalismo e consumismo. O documentário é de 2003, mas segue sendo mais atual do que nunca. Nós também estamos presos, a diferença é que não sabemos ainda. 

Você pode assistir o documentário diretamente no Youtube.  

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