Entrevista com Fábio Passos, professor e artista visual

Fábio Passos é artista visual, doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, pós-doutor em Artes Visuais pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB, bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq, professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Piauí -UFPI e pessoa com deficiência (paraplégico).

Recentemente ilustrou a capa e a matéria Corpos Plurais da Revista Pesquisa FAPESP e tem participado de inúmeros diálogos acerca da arte, acessibilidade e da luta das pessoas com deficiência.

Revista Pesquisa FAPESP – Ano 24 n. 326 – Abril, 2023

Tivemos o grande privilégio de trocar uma palavra, e outra mais, com Fábio Passos para conhecer um pouco mais sobre sua vida, obra e pensamentos acerca das corpas e corpos. Compartilhamos agora com vocês, freaks, a nossa conversa.

FRRRKguys: Como a arte chegou na sua vida? Que espaço ela ocupa?
Fábio Passos: Desde muito cedo, já na infância, o desenho fazia parte do meu cotidiano. Em um aniversário, minha mãe me presenteou com uma prancheta infantil e eu passava horas do dia desenhando. Contudo, em razão dos estudos acadêmicos na área de filosofia, ou seja, graduação, mestrado e doutorado, me afastei do meu fazer artísticos e, após minha entrada no corpo docente da Universidade Federal do Piauí, me voltei definitivamente para o desenho. Esse retorno foi solidificado com um pós-doutorado em artes visuais, realizado na Universidade Federal da Paraíba entre 2020 e 2022, sob a supervisão do professor doutor Robson Xavier. Durante o período de pós-doutorado, realizei uma pesquisa teórica sobre a invisibilidade da nudez da pessoa com deficiência no interior das manifestações artísticas, pesquisa esta que alimenta o meu fazer artístico, que procura, através de desenhos de corpos nus com deficiência, tencionar essa problematização.

(Em)Canto
da Série (In)VISÍVEIS, 2021
mina de grafite colorida sobre papel
42,0 x 59,4cm

FRRRKguys: Quando você sente que se apropriou do seu corpo, no sentido de reconhecer toda potência nele (que é você)? Antes de tudo, houve esse momento de virada de chave?
Fábio Passos: Acredito que não houve uma “virada de chave” na apropriação do meu corpo, mas uma desconstrução construtiva ao longo do tempo. Minha companheira Elivanda, que convive comigo há 11 anos, tem papel fundamental na apropriação do meu corpo deficiente. Além desse convívio, sem dúvida os autorretratos me ajudaram a ter uma percepção mais acurada do meu próprio corpo, com suas torções, distorções e atrofias. Me desenhar nu, a partir de fotos, constitui um veículo que permite expressar meu corpo em sua idiossincrasia.

Similitude
da Série (In)VISÍVEIS, 2021
mina de grafite colorida sobre papel
42,0 x 29,7cm

FRRRKguys: Como você compreende a presença das pessoas com deficiência nas artes visuais no momento atual? Tanto no campo de artistas, mas também passando por obras, espaços culturais que fomentam e fruem essas produções.
Fábio Passos: Extremamente diminuta. Projetos como “Museu Vozes Diversas”, levado a cabo pela Cíntia Alvez, e “Arte e Acesso” do Itaú Cultural são verdadeiros oásis no deserto. Artistas PcDs, bem como suas obras, não estão presentes em amostras culturais regulares. É preciso que amostras de arte já consagradas em nosso país abram espaço para artistas com deficiência. Acredito que essa invisibilidade está intimamente associada a uma violência que também é invisível. Não se tem notícia que uma pessoa com deficiência tenha sido morta pelo fato de ser um PcD, ao contrário do que acontece com mulheres, pessoas negras e comunidade LGBTQIAPN+. Contudo, somos violentados cotidianamente e essa violência tem nome: capacitismo. Tenho plena convicção que não podemos cair um uma restrição que faria com que os trabalhos artísticos de pessoas com deficiência expressassem somente as existencialidades de PcDs, mas acredito que seria muito potente uma amostra ampla sobre essa temática.

Fragmentos X
da Série (In)VISÍVEIS, 2021
mina de grafite colorida sobre papel
59,4×42,0cm

FRRRKguys: De modo geral, como você percebe e sente que a arte pode nos ajudar na tomada do próprio corpo? Gostaríamos de ouvir sobre relatos e registros que a sua produção artística tem gerado nesse sentido.
Fábio Passos: Na medida em que a arte é um potente veículo que permite a expressão de corpos com deficiência. Não vemos, em espaços públicos, em manifestações artísticas, o nosso corpo e, com isso, não temos a devida percepção de “como” é o nosso corpo, o que gera frustação e um sentimento de abjeção sobre o nosso próprio corpo, pois somos levados a rejeitá-lo, apartá-lo de nós mesmos. Os desenhos de corpos nus de pessoas com deficiência tem sido um veículo que permite que pessoas com deficiência possam se apoderar de seus próprios corpos, a exemplo de uma pessoa que foi desenhada por mim a partir de uma foto tirada por ela. A princípio, ela não queria tornar a ver sua foto, mas, depois que se viu desenhada, compartilhou o desenho com amigos, explicitando que o corpo desenhado era o dela. São experiências de vidas que são invisibilizadas e, quando são expostas sob a forte luz da publicidade, ganham outra significação.

Fragmentos IX
da Série (In)VISÍVEIS, 2021
mina de grafite colorida sobre papel
126×59,4 cm

FRRRKguys: Você trabalha com arte e educação. Em sua produção vemos corpos de pessoas com deficiência desnudos. Dentro do nosso contexto político e cultural e dos incontáveis retrocessos que vivemos com a ascensão da extrema-direita no mundo, inclusive, no Brasil, como tem sido tudo isso pra você. Toda nudez será castigada?
Fábio Passos: O tema da nudez, em nosso contexto cultural, é mercado pelo signo teológico, que tenciona um corpo nu pela exclusiva ótica da sexualidade que, ao seu ver, deve ser “castigada”, pois leva ao pecado. Nesse sentido, se o tema da nudez é permeado de preconceitos, imagina quando nos referimos a uma nudez “anormal”, antinormativa, que não se enquadra e nunca vai se enquadrar nas métricas dos padrões estéticos?

A ascensão da extrema direita ao poder político em nosso país nos últimos anos somente trouxe à tona sentimentos adormecidos que balizam o agir de boa parcela de nossa sociedade: “os homens de bem” e a “família tradicional”. A visão de mundo da extrema direita exclui o diferente, aquele que não se enquadra em seus ideias, como corpos desnudos… corpos deficientes desnudos.

Diante desse quadro, um corpo nu de uma pessoa com deficiência, expresso em trabalhos artísticos como os que eu faço, carrega consigo uma força estética e política, que reivindica a construção de uma estética anticapacitista, que oportunize corpos dissidentes a se apresentarem, a poderem dizer que existem. Esses corpos têm o direito de serem tencionados para além do saber médico, que significa esses corpos como doentes e que devem ser “endireitados”, “consertados”.

Fragmentos VII
da Série (In)VISÍVEIS, 2021
mina de grafite colorida sobre papel
126×59,4 cm

FRRRKguys: Monstruosidades. Você participou em 2021 da Ocupação Monstres no Museu Vozes Diversas e refletiu, com base em Foucault, sobre o monstro e a monstrificação. Em sua opinião, existe uma resignificação da palavra monstro em nosso momento, tal qual, aconteceu com o queer e o crip? Você é um monstro?
Fábio Passos: Foucault, na aula de 22 de janeiro de 1975, ministrada no Collège de France e posteriormente copiladas na obra intitulada Os Anormais, afirma que o contexto a partir do qual deve-se tencionar a ideia de monstro humano é a lei, o que me faz crer que a estrutura categórica da lei é um dos pontos cruciais para se entender as considerações foucaultiana acerca do monstro.

A noção de monstro está basicamente situada no interior da noção jurídica, uma vez que ela viola as leis da sociedade, bem como as leis da natureza. O monstro humano realiza infrações levadas ao seu ponto máximo. “O campo de aparecimento do monstro é, portanto, um domínio que podemos dizer ‘jurídico-biológico’. As leis edificaram a figura do monstro para explicitar o maior grau possível de diferença entre a exceção, a aberração e o humano. Nesse mesmo espaço, o monstro aparece como um fenômeno ao mesmo tempo extremo e extremamente raro. Ele é o limite, o ponto de inflexão da lei e é, ao mesmo tempo, a exceção que só se encontra em casos extremos, precisamente” (FOUCAULT, Os Anormais, p.47).

Diante do exposto, fica evidenciado o tom negativo que a palavra monstro carrega sobre si: uma aberração, algo “não natural” que vai de encontro às normas. A exemplo de outras expressões utilizadas para violentar seguimentos populacionais, como “vadia”, “aleijado”, “queer”, “crip”, a palavra mostro tem ganhado novos contornos de significação no interior das lutas das pessoas com deficiência e de outros segmentos considerados monstros.

Embora defenda a nova significação da palavra “monstro” no interior dos movimentos das pessoas com deficiência, eu não me considero um monstro, uma vez que procuro, em minha pesquisa teórica, desconstruir a própria noção de natureza, norma e normalidade que balizam nossas percepções corporais e estéticas. Assim, meu corpo não é uma aberração ou algo não natural que confronta às normas. É preciso, antes de tudo, em meu entendimento, desativar as normas e a noção de normalidade.

FRRRKguys: Para quem quiser acessar o seu trabalho, quais caminhos podemos deixar?
Fábio Passos: Quem desejar conhecer mais de perto os meus trabalhos artísticos, faço um convite para visitar minhas mídias sociais:

Site: www.fabiopassos.com

Instagram: @fabiopassosarte

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