Fotos: Divulgação
Os sinuosos caminhos da vida me levaram ao encontro da obra de Marcelo Gabriel. Os seus roteiros e a sua força cênica chegavam aos meus ouvidos por distintas bocas, como um doce sopro na ferida de quando se é criança. De grão em grão fui descobrindo na obra desse artista, um mundo na arte que supostamente eu dava como perdido: ativismo político gritante.
Indubitavelmente tenho que concordar com o escritor João Silvério Trevisan, quando diz que:
“Se você quiser experimentar a revelação quase mística de um Brasil arcaico e assustador vá ver Marcelo Gabriel. Seu sangue vertido purifica, como nos sacrifícios antigos. Se você, assim como eu, está cheio de viver num país de cafajestes, vá ver Marcelo Gabriel em cena.”
Anti-totalitarismo, contra os silenciamentos, estigmas e preconceitos sociais, culturais, religiosos. Avesso ao especismo, sexismo e todas as distorções de valores que se construíram historicamente no mundo pré-pós-moderno, assim é, ou melhor dizer, assim são os espetáculos do fundador da Dança Burra.
A então crítica de dança do jornal “O Estado de Minas”, colocou em 1996 que:
“[…] Ele precisa ser o anti-homem no palco para que o homem na platéia surja, indignado.”
No mesmo ano, a crítica do jornal “O Estado de São Paulo”, Helena Katz, emenda:
“Marcelo Gabriel desenvolveu um dos mais importantes solos da dança brasileira contemporânea. Eis um talento raro, no seu corpo há uma síntese poderosa entre pantomima de balé clássico, mímica, teatro de marionetes, butoh, danças populares e urbanas, das suas palavras a agressividade, a contestação, o engajamento encontram sua melhor materialidade naquele jeito de dançar. É absolutamente genial”
Genialidade esta que já iluminou platéias em diversos estados brasileiros e no exterior, a exemplo de Portugal (Lisboa), Alemanha (Berlim), Canadá (Montreal) e Holanda (Amsterdã). Brilhantismo particular este que o possibilitou ser premiado em 1995 pela APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte – por melhor concepção com o espetáculo “O Estábulo de luxo” e no ano seguinte, também pela Associação Paulista de Críticos de Arte, com melhor interpretação pelo espetáculo “O nervo da flor de aço“.
Desde já deixamos nossos sinceros agradecimentos pela atenção e carinho com o qual Marcelo Gabriel atendeu ao nosso pedido de uma entrevista, assim como, agradecemos por toda sua relevante contribuição para a dança, teatro, performance, arte e para formação de sujeitos críticos que desalinhavam as bocas e gritam, ainda que em sussurros.
É com imenso prazer que trazemos um pouco de Marcelo Gabriel na entrevista abaixo para todos vocês.
T. Angel: Você iniciou sua carreira através da dança aos 17 anos na década de 80. Sabemos que ainda hoje o Brasil é um país extremamente machista e preconceituoso, dentro deste contexto, nos conte como foi adentrar no balé clássico e como você vê o tratamento dos bailarinos/dançarinos masculinos brasileiros?
Marcelo Gabriel: Em 1987 fiz meu primeiro espetáculo solo que intitulei “Dança Burra“, uma instalação cênica, pesquisa de linguagem mesclando artes plásticas e teatro, premiada no XX Salão nacional de artes plásticas da prefeitura em Belo Horizonte. Comecei estudando teatro e como gostava de Jerzy Grotowski que é um criador genial de teatro físico, modalidade em que se instrumentaliza muito bem o corpo, entendi que deveria estudar dança, assim como ginástica olímpica, aikido, etc… O Brasil é um país subdesenvolvido que não tem uma tradição cultural de formação e respaldo as artes. Muitos talentos tem sido exportados para a Europa, através de projetos sociais nas periferias por exemplo. É incrível tanta gente genial estar abandonando o país e construindo carreiras brilhantes lá fora.
T. Angel: Como surgiu a Companhia de Dança Burra?
Marcelo Gabriel: Inspirado no título de meu primeiro solo “Dança Burra”, criei a “Companhia de Dança Burra” que na verdade é uma companhia de uma pessoa só, aludindo à situação de abandono e a falta de uma política cultural consistente no país, uma postura de resistência contra o status quo de morbidez cultural institucionalizada. Burra no sentido de não ser esperto o bastante para baratear o meu karma estético, político, antropológico…
T. Angel: O seu trabalho toca em temas diversos com forte crítica política e ao estado das coisas na sociedade. Assim sendo, podemos dizer que você faz um “teatro físico” multidisciplinar engajado?
Marcelo Gabriel: É um trabalho que dialoga com a realidade. Não é uma jogada de marketing. Não respeito artistas que constroem carreira baseada em jogos de poder, ego… Hoje as pessoas em geral querem ganhar muito dinheiro e ficar famosas e o trabalho em si não tem conteúdo nenhum. Aliás, transpondo esta discussão a um nível social, a nova geração em geral esta bastante satisfeita com modelos que lhe transmitam segurança, que não desestabilizem, que não questionem. Esta anemia estética é sintoma cabal de gerações pós-HIV.
T. Angel: Além de autoria, concepção, interpretação, encenação, direção geral, coreografia, dramaturgia, iluminação, figurino, você também assina a trilha sonora de seus trabalhos. Quais as dificuldades e facilidades em trabalhar assim?
Marcelo Gabriel: Para mim este momento de imersão solitária no ato criativo é absolutamente necessário, é quando me compreendo enquanto ser humano. Acho mais fácil trabalhar solo que com elenco. Prezo o comprometimento total a uma causa, responsabilidade, coragem e profissionalismo. Entretanto não excluo a possibilidade de desenvolver parcerias. Em minha trajetória tenho convidado e dado preferência mais a pessoas comuns que artistas “institucionalizados”, por achar que pessoas comuns além de trazer um depoimento intransferível, muitas vezes não carregam vícios de linguagem que muitos profissionais habitualmente desenvolvem. O meu compromisso com a arte é absolutamente pessoal.
T. Angel: No começo dos anos 90 você costurou a boca, perfurou a língua e se cortou em cena. Essa mescla entre inspiração, transpiração e sangue se tornou uma característica muito marcante de sua obra. Fale um pouco sobre as suas sensações da assimilação do público de um trabalho que confronta com tabus diversos?
Marcelo Gabriel: Em 1995 criei um espetáculo premiado pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) como melhor concepção cênica intitulado “O Estábulo de Luxo” em que denunciei o descaso das autoridades em relação à comunidade dos HIV+ no Brasil, precisava de imagens fortes condizentes ao tema. Desta maneira estas cenas emblemáticas foram apresentadas como a costura dos lábios simbolizando a omissão de cada um de nós diante da realidade, assim como me cortei com gilete fazendo a maquiagem de um palhaço e perfurei uma veia do braço deixando me esvair em sangue enquanto dançava, provocando desmaios na platéia. Em relação à hipocrisia das igrejas, por exemplo, fazia uma cena em que uma freira amamentava um cachorro vira-lata e oferecia ração a platéia. Gosto muito deste espetáculo por achá-lo muito forte, real. Já a cena em que perfurei a língua com um prego e fiquei exposto como uma natureza morta em uma parede branca faz parte de um espetáculo solo de 1996 que ganhou melhor interpretação também pela APCA intitulado: “O nervo da flor de aço” que tecia um paralelo entre o golpe militar de 64 e seus reflexos em um Brasil contemporâneo.
T. Angel: Entre suas influências temos Kazuo Ohno, Ron Athey e Diamanda Galas, quem mais poderia endossar esta lista?
Marcelo Gabriel: Madame Satã, Luz Del Fuego, Marina Abramovic, Robert Mappletorpe, Louise Bourgeois e Pina Bausch.
T. Angel: Dentre os seus inúmeros trabalhos existe algum favorito ou que você se debruce mais?
Marcelo Gabriel: Dança Burra (1987), O Estábulo de luxo (1995), Crianças de açúcar (2010).
http://www.youtube.com/watch?v=2JUeoWXWzXQ
T. Angel: Em alguns folders de seus espetáculos vimos participações de crianças, conte um pouco sobre essa presença?
Marcelo Gabriel: Adoro crianças, são tão brutalmente puras que me fazem sentir vivo e de alguma forma misteriosamente feliz.
T. Angel: Com que olhos Marcelo Gabriel vê os rumos da arte da primeira década do século XXI?
Marcelo Gabriel: É estranho os grandes gênios estão morrendo, Pina Bausch, Louisie Bourgeois, Kazuo Ohno… Existe um enorme vazio que precisamos aprender a suportar.
T. Angel: No folder do solo “O Nervo da Flor de Aço” (1996) você fala sobre a criação de uma coreografia como sendo uma coisa estúpida – pois assim você considera -, satiriza a questão do consumo do espetáculo e ainda fala sobre o esquecimento do roteiro. Fale um pouco mais pra gente sobre isso?
Marcelo Gabriel: As leis que regem o mercado das artes são estranhas, pois arte é algo imaterial não um produto, não pode ser qualificado, dimensionado, medido e pesado, de qualquer maneira existe este esforço de transformá-la em algo vendável. O que acho desastroso.
T. Angel: Atualmente está trabalhando em algum novo projeto?
Marcelo Gabriel: Estou viajando com dois espetáculos que acabei de criar: Crianças de açúcar e Canibal Menu.
T. Angel: Deixe uma mensagem para os nossos leitores.
Marcelo Gabriel: Faça uma horta comunitária no seu bairro, não consuma, nem compre produtos que possam fazer mal ao meio ambiente.
Fim.
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