Modificação corporal, temporalidade, visibilidade e representatividade

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org-img-mr-nobody-hypnosis-clip_55039804-638x425-638x425(Mr. Nobody, Bélgica, 2009. Direção: Jaco Van Dormael)

Em nossas pesquisas sobre o corpo modificado nos deparamos com várias discussões. Algumas delas não nos arrancam respostas imediatas, mas nos projetam para um espaço de reclusão e reflexão. O que normalmente demanda tempo e muito trabalho de maturação.

Gostaríamos de falar nesse texto sobre uma situação em específico, mas percebemos que ela desliza para outros campos. Assim, partiremos de um ponto central e acompanharemos esses deslizes e tentaremos abordar cada uma dessas arenas em que os assuntos se encontram e se espalham. Sigamos adiante.

A situação em específico que falamos são as tatuagens visíveis

Não é de hoje que percebemos na comunidade da modificação corporal que existe um certo incomodo com as pessoas que hoje tatuam pescoços, mãos e rostos antes de tatuar as partes que são ou poderiam ser facilmente escondidas pelas roupas. Em tempos de redes sociais obviamente que já se elaboraram um gráfico para se falar sobre isso, o que sempre tem acontecido com um tom de crítica negativa ou caindo de fato para um discurso preconceituoso que indica que isso seja algo ruim e/ou que não deveria acontecer. Abaixo reproduzimos os dois gráficos mais comuns que usualmente circulam pelas redes sociais.


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Lembramos com um certo saudosismo do tempo em que usávamos o Modblog diariamente e esporadicamente víamos Shannon Larratt (1973-2013) escrevendo sobre alguma situação em que haviam pessoas com os braços fechados de tatuagem (full sleeve) em determinadas situações, mas aqui, escapando dos cantos escuros da contracultura das modificações corporais, fosse um comercial, um filme, um videoclipe ou coisa que o valha. O saudosismo que nos referimos é justamente dos textos escritos por Shannon, que naquele momento – ao falar dos braços fechados de tatuagem – carregavam um tom menos crítico punitivo e mais apontando para um mundo em vias de transformação no que se referia a recepção das tatuagens visíveis. Transformações estas que ele só pode ver o começo e que com toda certeza têm a influência e relevância de seu trabalho com o BMEzine.

Ora, o mundo está em constante transformação assim como todas as pessoas que o habitam, embora seja bem verdade que nem toda transformação tem se mostrado de modo progressista e ética, como também é verdade que há uma porção de pessoas que estão justamente caminhando para trás, e não só isso, estão lutando bravamente para que retrocedamos enquanto sociedade. É preciso atenção.

Adendos postos de lado e seguindo com o texto, se faz muito importante ter claro na mente que embora sejamos pessoas tatuadas nós não somos donos ou donas da tatuagem. Tão pouco podemos cair no risco de querer de alguma forma controlá-la e colonizá-la. A tatuagem é patrimônio humano e sendo assim pode ser livremente apropriada das mais diferentes formas pelas mais diferentes pessoas, como historicamente tem sido. O espírito de posse não cabe aqui.

Importante ter mais claro ainda na mente que o único corpo que podemos legislar é o nosso próprio e individual. Então se uma pessoa acredita que não é bonito e/ou positivo tatuar as mãos, o pescoço ou a face antes de tatuar as partes que podem ser ocultadas, é simples, basta essa pessoa não tatuar as mãos, o pescoço ou a face. Ficar construindo discursos sobre o que as demais pessoas deveriam fazer com os próprios corpos é um tipo de colonização e é preciso atenção quando nos aproximamos dessas posturas. No mais, é preciso muita atenção quando nós – pessoas com modificações corporais – justamente nos aproximamos dos discursos autoritários, conservadores, reacionários, violentos que lá atrás estávamos combatendo ou que deveríamos estar combatendo agora, nesse momento. Combatê-los pois em resumo eles excluem, segregam e exterminam pessoas e culturas.

Assim, e não por fim, gostaríamos de deslizar em outros três tópicos que o assunto nos levou.

A temporalidade

“Essa coisa do permanente é super engraçada, porque assusta mesmo as pessoas… Porque acho que ninguém pensa em permanente (…) Ninguém quer assumir esses compromissos, ninguém gosta de assumir compromissos. Então eu acho que o fato da tatuagem ser permanente é uma carta a mais que você tem para apresentar na verdade.”
Priscilla Davanzo em Geotomia (2000)

 

Um dos meus primeiros contatos com a tatuagem ou mais especificamente com a remoção da tatuagem foi no fim dos anos 80, quando uma amiga de minha mãe tinha se convertido ao cristianismo e por vergonha e arrependimento de sua tatuagem no antebraço, havia feito uma remoção cirúrgica. Lembro-me que ela dizia que ficaria uma cicatriz grande, mas que era melhor assim. Essa é uma memória que sempre me acompanhou.

De lá para cá incontáveis métodos foram tentados para se conseguir remover as tatuagens. Pensando a eficiência, talvez o mais acertado ainda que oneroso – isto é, para poucas pessoas – tenha sido o laser, que curiosamente hoje está presente em alguns estúdios de tatuagem pelo Brasil. Ainda, frequentemente tem surgido novos estudos científicos para remoção de tatuagem através de cremes e agora também tintas que facilitariam uma possível futura remoção.

O tempo em que se tatuar era sinônimo de assumir um compromisso com o definitivo e indelével, como dizia a artista Priscilla Davanzo em seu trabalho ‘As vacas comem duas vezes a mesma comida‘ (2000) e que pode ser visto no documentário Geotomia (2000), ficou no passado. O caminho que estamos  seguindo é justamente para que a tatuagem seja cada vez mais temporária do que poderíamos conceber décadas atrás, algumas mais breves que a própria vida.

Há algo de ruim nisso? De forma alguma, acreditamos que isso tenha demorado para acontecer, mas entendemos que essa atenção de agora está obviamente ligada com o quanto de capital pode se girar sobre isso, ao passo que a tatuagem virou uma indústria e um negócio que gira muito dinheiro ao redor do mundo. É tudo sobre dinheiro, como todo o resto de nossa sociedade capitalista. Mas inegavelmente muda e já tem mudado a nossa relação com a técnica de se tatuar e isso é muito além do bom ou ruim. Tatuar hoje o rosto, as mãos e o pescoço assusta menos do que duas décadas atrás, também por conta dos avanços tecnológicos, mas não somente por isso, outros fatores devem ser levados em consideração.

A única atenção que gostaríamos de chamar – como resultado das mudanças nessas relações – é que percebemos que têm pessoas se apropriando do discurso de que as tatuagens podem ser apagadas ou desfeitas para tecer críticas com outras modificações corporais que até o momento não podem ser desfeitas ou apagadas. Veja bem, não precisamos deslegitimar uma prática porque individualmente não a entendemos ou não gostamos dela ou porque elas são de fato definitivas. Tão pouco usar o discurso sórdido de que “essas pessoas podem se arrepender” ou que sofrerão qualquer tipo de desfortúnio quando repetidamente esse foi o discurso vomitado em nossas cabeças por décadas. Esse foi o discurso que batalhamos para derrubar. Ou não?

A visibilidade

Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”
Paulo Freire

Vai ter gente tatuando mão, rosto e pescoço antes de tatuar as partes escondidas do corpo? Vai. E precisamos falar sobre isso de modo maduro, consciente e responsável.
A minha primeira tatuagem eu fiz no braço e com medo de nunca mais conseguir um emprego na vida por conta daquela marca que, inclusive, se eu quisesse somente eu poderia ver. Nunca aceitei passivamente a ideia violenta de que eu não poderia marcar o meu corpo como eu quisesse, mas o medo a gente não consegue escapar facilmente. Ainda assim, depois daquela primeira do braço vieram outras tatuagens… Perdi emprego? Vários, tantos que não saberia contar. Tive problemas familiares? Diversos, muitos, incontáveis. Mas a vida vai ensinando e cada vez mais eu descobria que não poderia me anular por uma questão básica de sobrevivência, de ser quem eu era.
Então chegamos nesse tempo e vejo hoje centenas de pessoas com seus rostos, pescoços e mãos tatuadas andando livremente pelas ruas. As poucas que eu felizmente tive a chance de conversar era visível nos olhos a ausência daquele medo que eu carregava. O tempo mudou. Tudo o que eu mais queria vem acontecendo, as pessoas cada vez mais precisam menos viver em armários e obviamente que aqui não falo só das modificações corporais, mas também delas. Óbvio que tem sido um processo lento, mas está em fluxo.
Então eu fico realmente feliz em ir em uma loja popular e ser atendida por uma funcionária com os braços tatuados e alguns piercings pelo rosto, gosto de ser atendida pelo moço de braços, mãos e pescoço tatuado no Metrô de São Paulo e tive uma verdadeira síncope ao ter tido a oportunidade de estudar com um professor com os braços fechados de tatuagem. Diga-se de passagem, um dos melhores professores que eu tive na vida, não pelas marcas de seu corpo, mas pelo ser humano incrível que ele se mostrou o tempo todo.
Então, o que quero dizer é que desde que iniciei a minha vida no meio da modificação corporal eu sempre lutei pela visibilidade dessas práticas e das pessoas que as viviam. Inicialmente era uma luta solitária e tímida feita através do meu próprio corpo, feita de modo inconsciente, e agora – tardiamente mas ainda em tempo – feita de modo completamente consciente, como um ativismo diário. Luta essa que ainda acontece através de meu corpo, mas também através de minhas aulas, palestras e do trabalho que faço com o FRRRKguys.
Então se hoje as pessoas podem ir direto tatuando rosto, pescoço e mãos é resultado de um mundo que se transformou, é um dos frutos da luta de todas as pessoas que receberam muitas pedradas na cabeça, tiveram muitas portas fechadas nas caras, mas que sem saber abriram janelas de possibilidades de existência para incontáveis seres.
O tempo em que as pessoas tatuadas (e com demais modificações corporais) precisavam se esconder para ter o mínimo de dignidade em existir, vai ficando lá para trás. Conquistas, minhas caras e meus caros, celebremos e aprendamos a reconhecê-las com generosidade.

A representatividade

“Mas se você achar
Que eu tô derrotado
Saiba que ainda estão rolando os dados
Porque o tempo, o tempo não pára”
Cazuza

Já que falamos de temporalidade e visibilidade, terminamos esse texto na questão da representatividade. Mas gostaria muito de que vocês pudessem perceber como uma coisa está ligada na outra. Principalmente a visibilidade e representatividade.

Dias atrás no grupo Reflexões das Modificações Corporais do Facebook uma amiga trazia o caso do jornalista Cauê Fabiano que faz os informes da redação do G1, durante a tarde na Globo, que além de ter tatuagens visíveis tem uma barba por fazer. Acompanhei a discussão sem me envolver pois estava no processo de maturação desse texto. Nesse meio tempo eu vi o jornalista enquanto passava pela televisão e tive uma sensação estranha no sentido positivo da palavra.

camisetas-nerds-caue-fabiano-g1-04(Cauê Fabiano passando as notícias na tevê aberta)

Essa minha amiga dizia na discussão que havia sido discriminada e humilhada pela própria família por conta de suas modificações corporais, automaticamente fui remetida para minha própria história pois se assemelha e como a nossa, tantas outras. Ela terminou dizendo que era um tapa na cara da sociedade, que ele poderia ser um ótimo profissional e tatuado e mais do que isso, que ele era uma pessoa bonita e que ela sentia bonita também, ela se sentia representada. E eu me senti representada também, menos por ele e mais pela situação de vê-la se sentindo bem e representada.

A representatividade das pessoas com modificações corporais nos grandes veículos de comunicação estava fadada a psicopatia, a criminalidade, a vilania e ao retrato do fracasso humano. Esse era o estereótipo que vendiam da gente, mas que se tornou insustentável. Inclusive porque, goste ou não, as pessoas hoje dão literalmente a cara para o tapa.

Há quem possa pensar que seja uma grande bobagem sentir representatividade por um jornalista tatuado na televisão. Falando pela minha experiência pessoal e com o eco da fala e da experiência de incontáveis pessoas que cruzaram os meus caminhos, no discurso dominante para nós – pessoas com modificações corporais – estava reservado o fracasso, a derrota e o asco. Ver um jornalista tatuado na televisão é como um pequeno grunhido dizendo que toda aquele discurso derrotista e rancoroso estava equivocado. Nós podemos ser bem mais do que tentaram nos fazer acreditar – e te fazer acreditar – que poderíamos ou mais apropriadamente, não poderíamos.  Sim, nós podemos e é bom sentir de vez em quando que esse mundo avança.

 

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