Representatividade para que(m)?

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tcheco-tatuado(Vladimir Franz foi candidato em 2013 para a presidência da República Tcheca. Foto: reprodução / Gazeta do Povo)

O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos.”
Simone de Beauvoir

“Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.”
Paulo Freire

O professor Paulo Freire (1921-1997) dizia sobre a obra Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido que foi um livro escrito com raiva e com amor, sem o qual não há esperança. É exatamente essa a nossa sensação sobre o mundo em que estamos inseridos, principalmente ao momento político específico que estamos vivendo. É assim que escrevemos esse texto, isto é, com raiva e com amor, que tem movimentado a nossa esperança, seja como projeto de mídia independente como também individualmente, como sujeitos políticos.

O resultado das últimas eleições para a prefeitura de São Paulo foi no mínimo catastrófico. Escrevemos sobre São Paulo, pois é a cidade mais próxima de nós, embora tenhamos acompanhado pelas notícias que em outras tantas cidades pelo Brasil afora, os resultados também não foram animadores. As esperanças no momento estão concentradas no segundo turno do Rio de Janeiro, com a chance do Marcelo Freixo (1967) do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ser o novo prefeito eleito. Aguardemos.

Ainda sobre São Paulo, não nos recuperamos até o momento da profunda decepção com uma cidade que ignora todos os sinais de fracasso e sucateamento e opta em errar mais e de novo. A cidade escolheu em primeiro turno o João Dória Junior (1957) do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) que tem como padrinho político o governador Geraldo Alckmin (1952) também do PSDB. O novo prefeito milionário que se entende não como um político – como se isso fosse possível, o filósofo Aristóteles (384-322 a.C) já dizia que “o homem é por natureza um animal político”  – mas como um gestor, alimentou em toda sua campanha um discurso meritocrático bastante questionável, principalmente quando nos voltamos para sua árvore genealógica. Obviamente que não é o único e principal problema de sua campanha, há outros mais sérios como por exemplo a defesa do programa Escola sem Partido ou quando ele diz que irá encerrar importantes secretarias que pautam na cidade as questões dos direitos humanos, todavia, não podemos dar de ombro e ignorar esse discurso da meritocracia.

Colaborando com a sucessão de erros temos como o 13º vereador mais votado o Fernando Holiday (1996) do Partido Democratas (DEM), figura que desempenha um papel de liderança no Movimento Brasil Livre (MBL). Negro e homossexual é abertamente contra as cotas, é também contra o dia da consciência negra e em entrevista recente para a jornalista Maria Lydia do Jornal da Gazeta chamou Zumbi dos Palmares de assassino e faz críticas bastante desonestas ao movimento negro reduzindo a luta, segundo ele, em vitimismo.  Mostra-se favorável e simpático a proposta do prefeito João Dória em extinguir as secretárias voltadas para a promoção da igualdade racial e também a que atende a população LGBT, assim com as secretárias da mulher e das pessoas com deficiência. Sua justificativa muito autocentrada é a de que ele, enquanto negro, não viu benefícios da existência das secretárias e que na realidade essas secretárias sustentam o discurso da separação, da segregação, do ódio e do preconceito. Precisamos entender de uma vez por todas que quando pensamos as ações afirmativas – como as cotas, por exemplo – não podemos ter como ponto de partida e base um pensamento e realidade individual, pois ações afirmativas trabalham em prol do coletivo. Zelam por grupos, populações e pessoas que historicamente foram (e ainda são) marginalizadas, silenciadas, estigmatizadas. Zelam por grupos de pessoas que resistiram (e ainda o fazem) ao extermínio. Zelam para que as pessoas tenham o direito de decidir e de falar. Como já dizia um popular viral de rede social, “quem não entendeu o que foram os séculos de escravidão no Brasil, não pode entender a política de cotas”. Pois é…

Parafraseando o professor Douglas Belchior (1978), é preciso ter bastante resolvido em nossas cabeças de que o menino do MBL “deve ser enfrentado na política e não desqualificado por ser “um negro de direita”” e completa dizendo que:

“É de se lamentar, mas tal deformação também é um direito. Há mulheres de direita, homossexuais de direita, nordestinos e pobres de direita. A questão central não é o fato de ele, sendo quem é, defender as pautas que defende. A questão central é, como enfrentaremos o projeto político nazi-fascista, racista, patriarcal e radicalmente liberal que, de tão eficaz, usa e convence o povo pobre, trabalhador, periférico e negro a cerrar fileiras nas redes, ruas e urnas juntos aos seus algozes. E convence mesmo, de maneira generalizada, não apenas os negros. E mais: o quanto interessa a branquitude de esquerda levar esse debate a sério e à prática.” 

Os tempos são duros, mas a vida – que nunca foi de todo fácil – urge e é, o tempo todo, atravessada por lutas. O luto é verbo e temos muito o que fazer de agora em diante. Também por isso trazemos essa discussão para o FRRRKguys agora, não apenas para expressar o nosso profundo pesar sobre o estado das coisas, mas também para propor chamamentos para a criação de novas possibilidades de se colocar no mundo, além da estética, ainda que reconheçamos a importância desse campo. Também para dizer que precisamos daqui em diante estarmos mais atentos e atentas do que nunca, inclusive ao passo que clamamos e galgamos por representatividade – e a consideramos de fato muito importante -, precisamos também entender para que e quem de fato essa representatividade serve. Fernando Holiday é sobretudo bastante ovacionado por pessoas brancas, cisgêneros, heterossexuais e de classe média, o que são indicadores que não devem ser descartados.

Enfim chegando na questão da representatividade, a qual nos propusemos a falar, a ativista Helena Vieira (1990) vai dizer, debruçada na eleição do menino do MBL, que “as ideias enunciadas e os posicionamentos políticos importam muito mais do que as características identitárias de quem os enuncia, importam muito mais do que os marcadores sociais com os quais o corpo de cada sujeito está marcado”. Em sua pequena análise feita em sua página do Facebook, ela escreve também sobre a questão do lugar de fala e diz que não deixará de se opor aos posicionamentos dele “em relação as políticas de igualdade racial e nem as políticas LGBT porque este é o lugar de fala dele, nenhum sujeito é tão somente seu gênero, sua raça e sua classe, existe, a partir destes marcadores e as vezes a despeito deles, uma construção política que é pessoal”. Fazemos coro com a fala da ativista que afirma que “a  representatividade na política importa, porém, ela é tão somente um elemento em toda dinâmica da política”, entendemos que a representatividade isolada em si, como coisa e causa única, não basta e é sobretudo bastante perigosa.

Importante ter claro em mente que Fernando Holiday não é figura única nesse cenário nefasto. Lembremos que Thammy Miranda tentou se candidatar como vereador pelo Partido Progressista (PP), mesmo partido de Jair Bolsonaro (1955) e Paulo Maluf (1931). Ora, não esqueçamos também que em 2012 tivemos pelo menos 110 militantes LGBT disputando a eleição para vereador no país e encontrando abrigo em siglas com inclinação fundamentalista religiosa, reacionária e conservadora. Algumas e alguns desses pré-candidatos não buscaram apenas legendas de bandeiras libertárias e progressistas, muito pelo contrário. Há filiados a siglas conservadoras como o Partido Republicado (PR) do pastor evangélico e senador Magno Malta (1957) do Espírito Santo, que no ano passado ameaçou renunciar se o Congresso aprovasse a lei anti-homofobia, com o argumento de que o projeto de lei estimula “a criação de um terceiro sexo”.

Segundo Toni Reis (1964), presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), o momento atual é de incentivo às candidaturas LGBT, mas o movimento continuará a apoiar os “aliados”, que serão incluídos em uma lista mais ampla. O que reforça a fala de Helena Vieira e a nossa visão de que abraçar a ideia da representatividade de modo vazio de crítica pode trazer sério riscos para populações historicamente oprimidas e para já tão fragilizada democracia ou o que restou dela.

Trazendo a discussão para o nosso recorte temático, não vai demorar no Brasil para que tenhamos com mais força e volume a presença das pessoas com modificações corporais na política, talvez demore um pouco mais para acontecer aqui algo com aconteceu em 2013 na República Tcheca com a candidatura para presidência de Vladimir Franz (1959), que era um dos favoritos, mas estamos caminhando…

O que no passado foram marcações bastante pontuais como a presença da body piercer Zuba (1969) como candidata a vereadora pelo PT nos anos 2000 e 2002 e posteriormente pelo PSOL em 2006, pode se desdobrar em inúmeras figuras buscando alcançar esses postos. Acreditamos mesmo que no futuro próximo isso deve se ampliar, ao passo que as próprias modificações corporais vão sendo assimiladas pela sociedade. Mas mais do que comemorar como uma conquista é preciso muita atenção e cautela para o tiro não sair pela culatra, como os casos citados acima das pessoas LGBT que se associam com partidos que trabalham arduamente contra as políticas públicas para essa população. Para nós não basta ter apenas a presença dessas pessoas no campo da política, isso quer dizer pouco ou quase nada, queremos saber quais os projetos políticos que essas pessoas movimentam e quem de fato elas buscam representar e quais interesses elas buscam atender. Queremos saber o que está além da estética. E mais uma vez a invocar o pensamento freiriano:

“Na volta para o hotel, silencioso, ao lado da educadora que diria seu carro, continuava pensando nas reuniões, na necessidade fundamental que indivíduos expostos a situações semelhantes têm enquanto não se assumem a si mesmos, como indivíduos e como classe, enquanto não se comprometem, enquanto não lutam, de negar a verdade que os humilha. Que os humilha precisamente porque introjetam a ideologia dominante que os perfila como incompetentes e culpado, autores de seus fracassos cuja raison d’être se acha porém na perversidade do sistema.”

Justifiquemos esta nossa escrita, descobrindo o que nos preocupa e desconforta. Temos inúmeros casos de pessoas que participam da comunidade da modificação corporal que manifestam publica e repetidamente suas inclinações conservadoras, reacionárias e quando não abertamente esbarrando no nazi-fascismo. Temos outros casos em que pessoas da comunidade da modificação corporal se associam com políticos com projetos no mínimo perigosos que circulam com fervor nas chamadas bancadas do boi, bala e bíblia (BBB) e que ferem a questão básica do direito ao próprio corpo. Uma forte confusão de interesses particulares que favorecem quem geralmente já tem os seus privilégios todos garantidos, assim como as alianças que são feitas amparadas nos interesses em promover os projetos de poder pessoal e que mui equivocadamente são colocadas no topo da lista das prioridades, o que já havia também sido percebido por Shannon Larratt (1973-2013), que como canadense viveu em um contexto político bastante diferente da dinâmica brasileira, mas entenda, a desonestidade e a corrupção ética não mora só na Terra onde tem palmeiras e onde canta os sabiás.

E não, não nos sentimentos representados por essas pessoas, na realidade sobre nós – como sujeitos históricos – elas nada dizem e, além das modificações corporais, não temos nada em comum. Ter um vereador, deputada, senador ou presidenta com muitas tatuagens, olhos pigmentados e chifres, mas com um projeto de mundo estreito, embasado na exploração de pessoas, manutenção do capitalismo, fomentador da segregação espacial, exclusão  e desigualdade social, não nos interessa e tão pouco não nos representa em nada.

Tenha claro que não existe garantia de que uma pessoa com modificações corporais vai se engajar com as questões das pessoas modificadas. Não existe garantia de que uma pessoa LGBT vai se engajar com as questões das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e demais variantes de sexualidade e gênero. Não existe garantia de que uma pessoa negra vai se engajar com as questões das pessoas negras. Não existe garantia de que uma mulher vai se engajar com as questões das mulheres (de todas as mulheres de verdade, há grupos que não reconhecem mulheres trans como mulheres, por exemplo). Não existe garantia de que uma pessoa com deficiência vai se engajar com as questões das pessoas com deficiências. Ainda que seja o mínimo esperado delas, não existe garantia alguma e em nenhum lugar de que esses grupos de pessoas vão se engajar com as questões básicas e fundamentais dos direitos humanos, os diversos exemplos que temos é que algumas delas – vestidas com as armaduras de quem sustenta o discurso dominante – estarão inclusive sendo uma ameaça. E por isso que citamos repetidamente Simone de Beauvoir (1908-1986), que dizia que  “o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos.”. Uma frase latente e cada vez mais relevante, que repetimos em nossos escritos sem o receio de soarmos repetitivos.  Antes de nos seduzirmos por figuras identitárias, nos demoremos um pouco mais afim de que conheçamos os interesses éticos e políticos que movimentam essas figuras.  Ir além da superfície é preciso.

Nossos sonhos de outrora eram o de poder em algum momento ver pessoas com modificações corporais na política. Nossos sonhos de agora são o de poder ver pessoas na política sendo pessoas, cuidando de pessoas, trabalhando para pessoas e para todas as pessoas de verdade, sem acepção. Paulo Freire dizia que não era esperançoso por pura teimosia, “mas por imperativo existencial e histórico”, abraçamos aqui mais uma vez a sua ideia, afim de não deixar a esperança morrer e assim damos um passo adiante.


REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo vol 2: a experiência vivida, Difusão Européia do Livro, 1967.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido – 10ª edição. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2003

Vote LGBT
http://votelgbt.com/

Vereador eleito em São Paulo, Fernando Holiday, defende fim de secretarias para negros e LGBTs
http://www.correio24horas.com.br/blogs/mesalte/vereador-eleito-em-sao-paulo-fernando-holiday-defende-fim-de-secretarias-para-negros-e-lgbts/

O milionário ‘não político’ para a São Paulo pós-impeachment
http://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/10/politica/1476101015_371000.html

Sobre João Doria, MBL a esquerda e nós negras e negros
http://negrobelchior.cartacapital.com.br/sobre-joao-doria-mbl-a-esquerda-e-nos-negras-e-negros/

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