Tradução: Coletivo ArtPolitic entrevista Shannon Larratt em 2003

Em Novembro de 2003 era publicada originalmente (em inglês) essa entrevista com Shannon Larratt (1973-2013), feita pela equipe do coletivo ArtPolitic. O site foi fundado em 2003 por um grupo de artistas no Canadá e arquivado em 2016 no Internet Archive. Possivelmente deve desaparecer em algum momento. Quem desejar preservar esse documento, imprima, salve-o de alguma maneira para si…

Fizemos a tradução com o desejo de preservar a nossa história e a memória de Shannon Larratt, assim como todas as suas contribuições para a comunidade da modificação corporal e, principalmente, para aquela que estamos construindo-vivendo-chamando vida: a comunidade freak.  

Vinte anos atrás o Shannon já estava discutindo política, espiritualidade (com a consciência política que  há nisso também), mercado de trabalho e discriminação contra pessoas modificadas ou freaks. Ironicamente ele deixou, lá em 2003, uma perspectiva de como estaríamos agora em 2023… Dez anos depois dessa entrevista ele foi para o outro lado. E agora, que completará dez anos de sua morte, traduzimos esse material para o português como uma homenagem também.

É ler, é aprender, é refletir e, sobretudo, cuidar de nossa história. Passá-la adiante como um precioso e poderoso anel.  Com quem planta sementes sagradas de nossa cultura. Há quem veio (muito) antes de nós, há quem virá depois nós, portanto, como ele próprio disse: “continuemos andando“!

Shannon em Cuba, 2009. Foto: reprodução/Wikipedia

Entrevista com Shannon Larratt

Nascido em uma ilha chuvosa na costa oeste do Canadá, Shannon é filho de um insano, mas brilhante, barão do petróleo engenheiro de computação, e de sua repressiva esposa aristocrata alemã. Nomeado em homenagem ao pai da teoria da informação e da ciência da computação moderna e criado em uma porra de fazenda orgânica de alta tecnologia e Think Tank (laboratório ou fábrica de ideias), Shannon trabalha profissionalmente como designer gráfico e cientista da computação desde muito jovem. Seus interesses incluem modificação corporal, voar, revolução cultural, liberdade espiritual e, claro, seu principal vício, carros exóticos.

Shannon vive atualmente na zona rural do Canadá e no Caribe com sua linda esposa Rachel e sua filha Nefarious Freedom. Ele é o editor e publicador do Body Modification Ezine, como também é engenheiro-chefe de software, autor de vários livros e numerosos artigos sobre o assunto, e ainda apareceu extensivamente em documentários e jornais. Shannon está atualmente produzindo um longa-metragem sobre a próxima mudança evolutiva.

A entrevista

ArtPolitic: Então, primeiro, deixe-me perguntar seu nome, idade e cidade de residência.
Shannon: Shannon Larratt, 30 anos. Não moro em uma cidade, moro em uma fazenda de soja na zona rural do Canadá.

AP: Há quanto tempo você faz modificações corporais e o que o levou a isso?
Shannon: Bem, suponho que tenho feito modificações corporais por trinta anos, já que é “quem eu sou”. Comecei a expressá-la provavelmente na puberdade e depois mais seriamente no final da adolescência. No que diz respeito ao que me levou a isso, como eu disse, é apenas “quem eu sou”, por qualquer motivo, é como eu quero me expressar e explorar o mundo.

AP: Qual foi o seu raciocínio por trás do bmezine.com? O que você achou que conseguiria?
Shannon:
BME começou originalmente (em 1994) como minha homepage pessoal. Publiquei fotos de minhas próprias modificações corporais e encorajei outras pessoas a fazerem o mesmo. Eu não estava realmente tentando alcançar nada grandioso naquele ponto, eu só queria compartilhar o que estava fazendo e gostando, conversar e aprender com outras pessoas ao redor do mundo que estavam fazendo o mesmo.

AP: Quando você começou, você achou que receberia a resposta que obteve?
Shannon:
Na época, eu realmente não esperava um retorno massivo, mas em poucos meses ficou claro que havia um enorme interesse no assunto. Em 1995, o GNN classificou o BME como o 24º site mais popular da Internet em todos os assuntos! Claro, a internet era muito menor naquela época – atualmente estou sentado em torno de 850º, o que ainda é bastante impressionante, eu acho.

AP: Que partido político você segue, se é que segue algum? (Se não houver, descreva para mim algumas de suas opiniões políticas)
Shannon: Aqui no Canadá eu sempre voto no Partido da Maconha, que é claro que é um partido de uma só questão que tende a receber cerca de 4% dos votos onde tem candidatos. Voto assim porque acredito que a legalização da maconha é um primeiro passo muito importante na garantia de liberdades maiores. Quando não há nenhum candidato do Partido da Maconha na minha área, eu voto no NDP, um partido de esquerda – no que diz respeito a um equivalente americano, políticos como Dennis Kucinich estão mais próximos de suas opiniões. Isso se choca um pouco com meus ideais libertários, mas ter uma forte rede de apoio social (ou seja, educação, saúde, bem-estar e assim por diante) é muito importante para mim.

Eu realmente não tenho pontos de vista “políticos” na medida em que tenho pontos de vista espirituais que tento expressar politicamente. Mais informações sobre esses interesses estão em meu site pessoal em www.zentastic.com, bem como em meu blog em glider.bmezine.com.

AP: Suas opiniões políticas diferem das de sua família? (Em caso afirmativo, você pode descrever quais são algumas de suas visões políticas)
Shannon: Na maioria das questões, elas são relativamente semelhantes. Meu pai se inclina para o lado libertário e provavelmente foi de onde tirei esses valores, e minha mãe se inclina para o lado da esquerda. Infelizmente ela comete o erro esquerdista comum de confundir “proteção” com “repressão” e apoia coisas que considero profundamente ofensivas, como a proibição de piercings no sistema escolar (ela é professora do ensino fundamental) e assim por diante – acho isso um tanto perturbador que ela (ou qualquer pessoa) acredita que “pessoas como eu” não merecem uma educação!

AP: Piercing facial, tatuagens e modificações nas orelhas [alargadores, etc] tornaram-se socialmente aceitáveis. Você os vê em todos os lugares. Você acha que a cultura da modificação corporal está forçando cada vez mais os limites para garantir que o movimento sempre permaneça um tanto tabu ou chocante para o público em geral?
Shannon:
Tenho certeza de que algumas pessoas estão tentando desesperadamente ser rebeldes… Mas parafraseando Ryan O’Brien, com quem eu trabalhei no BME/Livros, “eu nunca quis ser diferente, eu só queria ser eu”.

Eu acho que se alguém apenas tentar se colocar para se separar, no final das contas não ficará satisfeito com essas ações. No entanto, se uma pessoa se esforçar para ser ela mesma, sem compromisso, acredito que ela será feliz – mesmo que o mundo ocasionalmente lhe dê um chute injusto no estômago.

AP: Por que você acha que as pessoas com modificações corporais se tornam vítimas de um estereótipo de rebelde?
Shannon: Não acredito que seja verdade. Algumas pessoas podem tentar conseguir isso, afinal, é uma noção romântica, mas não acredito que seja a norma. Também não acredito neste ponto que o mundano médio veja a modificação do corpo como um ato de rebelião.

AP: Você acha que quando os empregadores negam empregos para pessoas com modificações visíveis, é o mesmo que negar empregos por causa de raça/gênero?
Shannon:
Bem, não é a mesma coisa. Raça e gênero são essencialmente imutáveis. Não há muito que você possa fazer sobre isso. O tipo de discriminação contra a modificação corporal é mais como discriminação contra pessoas por orientação sexual (ou seja, recusa em contratar gays) ou religião (ou seja, recusa em contratar muçulmanos) – você pode esconder sua orientação ou religião se for necessário, mas ainda é uma parte essencial de quem você é, que pode ser muito prejudicial reprimi-la.

AP: Vinte anos atrás, a maioria das modificações corporais “aceitáveis” eram menosprezadas. Como você acha que será daqui a vinte anos?
Shannon: Acredito que a maioria das modificações que temos em circulação hoje serão consideradas absolutamente normais daqui a vinte anos. Duvido que haja um estigma significativo associado a elas.

AP: Quais são alguns de seus planos futuros para o bmezine.com?
Shannon: BME está indo em duas direções distintas. A parte que fornece informações (os arquivos de experiência, galerias de fotos, glossário, BME/notícias e assim por diante) estou muito feliz e continuarei previsivelmente nessa direção. A única grande mudança é que em 2004 provavelmente começarei a enviar vídeos para o site, bem como fotos e histórias.

A outra parte do site, o aspecto comunitário que atualmente é personificado principalmente pelo site IAM.BMEZINE.COM, sofrerá as mudanças mais radicais. Eu sei quais são algumas (embora sejam um segredo), mas muitos delas serão ditadas pelas mudanças tecnológicas subjacentes.

AP: Alguma última palavra?
Shannon: Continue andando.

REFERÊNCIA

https://web.archive.org/web/20120221230552/http://www.artpolitic.org/Interviews-Shannon-Larratt.bodymod-interview.0.html