Denúncia de violência sexual na indústria brasileira do piercing

Há uma grande exaustão instalada em mim. Estou doente neste momento, o que em parte deve ser resultado de somatização e tristeza dos últimos acontecimentos. Pura e simples. Dito isso, hoje não está sendo fácil sentar aqui de frente ao computador e escrever essas linhas, mas considerando a gravidade de todas as coisas, faremos um esforço para deixar uma mensagem o mais lúcida e objetiva possível.

Desde que o ano começou perdemos pessoas de nossa comunidade. Recentemente, em menos de 15 dias, foram duas pessoas de gerações distintas e com um grande impacto para a cultura da modificação corporal latinoamericana. Não tem dado tempo de respirar ou se recuperar de um luto, logo ali na esquina tem outro na espreita. Tem sido cansativo e dolorido assistir tantas mortes seguidas e precoces. Para nós freaks, viver é uma emergência, escrevemos recentemente. Emergência enquanto situação grave e ao mesmo tempo o ato de emergir.

Por uma comunidade freak livre de assédio, abuso e importunação sexual.

Para além das mortes físicas, que infeliz e assustadoramente não cessam, existem outros processos de enlutamentos em curso. Quando um homem da indústria brasileira do piercing é acusado de violência sexual é também assistir um outro tipo de morte. Para nós algo morreu ali. Ponto de não retorno. É diferente de uma forma física de morte, certamente que sim, mas é igualmente uma perda, uma decepção e uma separação. Nós encaramos assim, mas sabemos que na configuração de mundo que temos – em que homens cisgêneros são privilegiados por serem homens cisgêneros – as coisas são bem diferentes. As vítimas seguirão suas vidas com suas marcas, machucados e traumas, os agressores seguirão com as suas vidas normalmente. Talvez não no calor do momento que as denúncias eclodem, mas posteriormente a maioria viverá. Alguns ganham mais fama e reconhecimento após as denúncias, é verdade. Outros vão encarnar discursos conservadores em defesa da família, pátria e Deus, é verdade também. Ainda terão aqueles que vão se juntar aos Incels, Redpills e todos os tipos de odiadores de mulheres, são tempos difíceis. Exemplos não faltam, do misógino Andrew Tate ao R. Kelly, cantor norte-americano condenado por extorsão e tráfico sexual. Esse é o tipo de mundo que temos aqui e agora. Acabamos de acompanhar a anulação da condenação por estupro do jogador de futebol Daniel Alves e não podemos nos esquecer nunca do caso da Mariana Ferrer e o inédito “estupro culposo”. Citar casos fora da comunidade da modificação corporal é buscar acender o holofote de que esta comunidade não está desconectada ou apartada da configuração de mundo que temos, que é patriarcal, sexista machista e que alimenta/é alimentada a/pela cultura do estupro.

As mulheres fazem as suas denúncias e precisam fazê-lo, todavia, pouca ou nenhuma segurança é oferecida em retorno. Para a denúncia se virar contra elas é um piscar de olhos. As medidas protetivas – embora importantes demais – são falhas em muitos casos. Olhem nos noticiários quantas mulheres denunciantes de suas violências, que seguiram todos os protocolos legais, receberam medidas protetivas e ainda assim são desacreditadas ou mortas. Falando em mulheres assassinadas, tivemos 6 feminicídios na última sexta-feira apenas no Rio Grande do Sul, sabe? Não estamos falando de pouca coisa e sim, tudo está relacionado, ou seja, a forma que lidamos ou não com um problema que é estrutural e institucional. Mulheres são mortas por serem mulheres.

Escrevemos sobre o homem da indústria brasileira do piercing que está sendo acusado de violência sexual, sem citar o seu nome porque estamos também em um lugar de vulnerabilidade. Além do mais, e essa parte é a que mais nos dói, é saber que o acusado, se for devidamente investigado e condenado, não será o primeiro e nem será o último, porque além da certeza da impunidade existem outros privilégios em jogo, como o de raça e classe. Não basta ser homem…

Acompanhamos pelas redes sociais instituições e empresas com suas notas de repúdio e consideramos que sejam importantes posicionamentos, mas para além das notas precisamos investir em uma educação que respeite a vida e a integridade das mulheres, todas elas, da cis à trans e a travesti. Precisamos falar, sem receio da repetição, da importância do enfrentamento da misogínia e feminicídio. Precisamos fazer campanhas educativas e de conscientização específicas para profissionais das modificações corporais e clientes contra o abuso, importunação, assédio sexual e cultura do estupro. Precisamos também, e principalmente, fechar as portas para agressores, abusadores e violadores de mulheres. Eles não são bem vindos porque ofereceram/oferecem risco e ameaça. Foi a primeira vez que assistimos uma atuação massiva e orgânica de empresas e instituições do piercing contra a denúncia recente. Temos a hipótese de que a forte presença de mulheres na indústria do piercing tem oferecido esse tipo de organização e resposta, o que é um avanço em muitos sentidos.

O FRRRKguys não é polícia, inclusive considerada a nossa inclinação política – que é antifascista – odiaríamos ser ou ter comparação com, não se esqueçam nunca disso e não esperem nunca um comportamento policialesco sedento por punitivismo de nós. Não vamos nunca espetacularizar violências e dores. Dito isso, que o caso recente de denúncia – que não é novo – seja investigado pela justiça, que as vítimas sejam protegidas e recebam todo apoio legal, psicossocial e o amparo de suas teias de afeto. Que a comunidade da modificação corporal, em específico a indústria do body piercing, elabore formas de enfrentamento da violência contra as mulheres e que, de uma por vez por todas, ofereça espaços realmente seguros para todas as mulheres, sejam elas profissionais, estudantes da área ou clientes.

Não precisamos e não devemos esperar pelo próximo caso eclodir, para que a nossa indignação esteja sempre atrelada com algum tipo de resposta ao calor do momento. Precisamos nos antecipar indo na raiz do problema. É preciso agir todos os dias para que de fato o enfrentamento da violência contra as mulheres que ansiamos se materialize e isso envolve responsabilidade, mais do que culpa ou desculpa, e muito trabalho coletivo. Não temos tempo para esperar. A ação deve ser agora!

Por uma comunidade freak que destrua a cultura do estupro.

REFERÊNCIA

Condenação de Daniel Alves por estupro é anulada na Espanha
https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/futebol/futebol-internacional/justica-da-espanha-revoga-condenacao-de-daniel-alves-por-agressao-sexual/

JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM TESE INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM
https://www.intercept.com.br/2020/11/03/influencer-mariana-ferrer-estupro-culposo/

Rio Grande do Sul registra seis feminicídios nesta sexta-feira
https://gauchazh.clicrbs.com.br/seguranca/noticia/2025/04/rio-grande-do-sul-registrou-seis-feminicidios-nesta-sexta-feira-cm9nd28ja001a01ktb69wfpl1.html