História do piercing: uma conversa com Jairo Camargo

A história da perfuração do corpo no Brasil é mais antiga do que seu próprio nome, atribuído pelo colonizador. Entre tantos processos de transformações dessa cultura em nossas terras, chegamos naquilo que chamamos e entendemos como body piercing no início de 1990. Em outras terras, essa cultura – da forma que a conhecemos hoje – já estava se consolidando na passagem dos anos 60 para 70. São histórias…

Desde o começo dos nossos trabalhos enquanto a plataforma FRRRKguys tivemos uma preocupação com a preservação das memórias e histórias da nossa cultura e gente. É verdade que nos últimos anos essa preocupação se acentuou e se intensificou. Sobretudo porque algumas pessoas interromperam suas carreiras ou experiências no meio da modificação corporal e, também, porque muitas pessoas se encantaram jovens demais e essas histórias vão sendo facilmente perdidas, apagadas e esquecidas. Temos feito um apelo constante para não deixarmos isso acontecer.

Dito isso, há muitos e muitos anos tínhamos o grande desejo de entrevistar uma figura muito importante para história do body piercing brasileiro, estamos falando de Jairo Camargo. Todavia, ficávamos sempre com receio de incomodá-lo, sem saber muito como chegar… Embora nossa comunidade seja pequena – e era muito menor anos atrás – não tínhamos alguém para fazer essa ponte entre nós. Eis que, como dissemos acima, a nossa preocupação em preservar a nossa história se ampliou muito, e com isso, tornou-se menor o receio de receber uma negativa ou ter uma porta fechada. E assim, entramos em contato com ele, que sempre foi uma referência e influência para nós.

Jairo Camargo nos recebeu prontamente de portas abertas e com uma disposição bonita de diálogo e troca. E desta abertura compartilhamos agora a conversa que tivemos sobre a sua história que se cruza intimamente com a história do body piercing e da modificação corporal no Brasil. A gente só agradece – e muito – pela oportunidade e privilégio de uma conversa tão importante assim. Que começa aqui, mas que deverá se desdobrar em outros diálogos.

Nascido em 1973 em São Paulo, onde construiu sua jornada no meio da modificação corporal, Jairo Camargo de ascendência indígena por parte de mãe é uma referência para nossa história. Esta conversa, feita entre Instagram, WhatsApp e E-mail, é uma celebração e homenagem para sua história e trajetória e espero que vocês desfrutem tanto quanto nós. Nosso agradecimento enorme, Jairão!

Jairo Camargo atende hoje em estúdio privado. Foto: Acervo Jairo Camargo

FRRRKguys: Primeiramente a gente agradece muito por você ter aceitado conversar conosco. Pra começarmos, gostaríamos de saber como e quando você começou a se interessar por modificações corporais? Quais foram os seus primeiros contatos com essa cultura?
Jairo Camargo: Acho que meu primeiro contato se deu logo na infância, com um pai tatuado e descendência indígena por parte de mãe. Já colecionava facas, objetos cortantes e cicatrizes. Além de ter morado nas terras do meu pai, no Mato Grosso do Sul, onde eu furava focinhos de porcos para que não escapassem do chiqueiro. Minha primeira tatuagem foi feita em 1989, que paguei com meu trabalho de assistente e aprendiz de tatuador no Estúdio do Led’s Tattoo, onde permaneci por 27 anos. Fui apresentado ao Led’s pelo meu cunhado que era diretor de arte de uma agencia de publicidade de São Paulo. Dessa forma que entrei no mundo da arte e tatuagem.

FRRRKguys: Pensando agora do interesse inicial para iniciar suas primeiras modificações, quando você começa a modificar o seu corpo?
Jairo Camargo: De cara fiquei fascinado pelo mundo da tatuagem e toda a arte que estava envolvida nisso, desde tatuadores japoneses, europeus, norte americanos. Em seguida, em um de seus retornos ao Brasil, André Meyer, já um amigo de tattoos, trouxe de Londres a técnica do body piercing. Até então, totalmente desconhecida. Fui seu primeiro aprendiz. Aos 17 anos comecei a ter minhas primeiras perfurações e a perfurar outras pessoas.

Pereira Piercer e Jairo Camargo em meados de 2000. Foto: Acervo Jairo Camargo

FRRRKguys: Por quais procedimentos de modificação do corpo você passou?
Jairo Camargo: Ainda na mesma década fiz todos os tipos de perfurações no corpo e fechei de tattoos no estilo japonês, por influência de Ivan Szazi.

FRRRKguys: Você faz parte do começo da indústria do body piercing no Brasil. Quando você percebeu que poderia trabalhar com perfuração corporal? Como foi o começo da sua carreira?
Jairo Camargo: Trabalhar com piercing foi uma relação natural para mim, de diversão ao profissionalismo. Mais pessoas conheciam e mais pessoas se identificavam. No começo, toda informação técnica e as melhores joias vinham principalmente da Inglaterra, o que me fez traduzir muitos livros. Fiz contato com empresas como Wild Cat, uma precursora em joias de piercing no mundo, e empresas norte americanas, como Pleasureable. Um começo difícil quando as joias demoravam para chegar. Dentro desse quadro dos anos 90 comecei a me adequar e a criar um padrão profissional no Brasil, seguindo os requisitos internacionais em relação ao atendimento, orientação aos clientes, procedimentos técnicos e de higiene. Também na qualidade dos materiais usados na perfuração e joalheria especializada. Inspirando assim mais pessoas a se profissionalizarem.

Contribuição de Jairo Camargo para jornal. Foto: Acervo Jairo Camargo

FRRRKguys: Olhando para o começo de tudo na década de 90 e para agora, você imaginava que a indústria do piercing cresceria tanto em nosso país? O que você pensa e como você enxerga essas transformações todas?
Jairo Camargo: O crescimento era previsível, levando em conta que uma menina recém nascida já saía da maternidade com brincos. As pessoas não percebiam isso. Sem contar a ideia de se enfeitar sem querer agredir ninguém, o prazer de expressar sua individualidade. Todos gostam de piercing.

Consultoria de Jairo Camargo para Revista Boa forma em 1998. Foto: Acervo Jairo Camargo

T. Angel: No começo dos anos 2000 você participava de programas na televisão para falar sobre nossa cultura, lembramos de um em que você estava acompanhado do querido e saudoso Zumba 13 (1968-2019). Qual era a recepção dos corpos modificados naquele período? Qual era o impacto de aparecer na televisão? Quais as memórias que você leva contigo?
Jairo Camargo:
Fiz muitos programas de televisão e me recusei à vários também, principalmente do gênero sensacionalista. Meu principal foco era enfatizar a técnica, segurança, higiene e material adequado na colocação do piercing. Zumba, meu querido amigo, irmão e conselheiro de longa data, desde os primórdios me acompanhou ao longo de todos esses anos, não só em programas de TV. Meu irmão amado, que ainda consegue deixar meus olhos com lágrimas de saudade. Sempre fomos bem recebidos em qualquer lugar. Sentíamos simpatia, felicidade e orgulho de mostrar nossos corpos modificados. Era engraçado aparecer na TV e depois ser reconhecido na rua. Memórias boas de levar uma mensagem sempre positiva sobre toda essa arte.

Jairo Camargo e Zumba 13 nos anos 90. Foto: Acervo Jairo Camargo

FRRRKguys: Além da televisão, naquele período, era comum a gente te encontrar em revistas de tatuagem ou matérias de grandes jornais falando sobre o piercing. Temos a sensação que depois você ficou mais concentrado em seu trabalho e vida e, pouco conseguimos achar sobre a sua história. Inclusive estávamos com receio de te pedir essa entrevista (risos). Como você vê tudo isso? Foi uma escolha de fato ficar mais em seu canto ou como dizem low profile?
Jairo Camargo: Fui linha de frente em todas as formas de divulgação sobre esse estilo de vida que tenho. O objetivo era mostrar a arte e diminuir o preconceito. As grandes convenções foram um marco. Depois a coisa se espalhou e muita gente só queria se promover por ganância. Parece que a essência tinha acabado e eu me retirei da cena. Não estava competindo. Gente vendendo curso sem abrangência e as joias de má qualidade surgiram. Parecia que tinha se tornado uma maneira fácil de ganhar dinheiro. As pessoas começaram a brincar com o corpo dos outros. Mas, as novas gerações vieram e tem gente responsável que continuou o bom legado.

Participação de Jairo em revista estrangeira. Foto: Acervo Jairo Camargo

FRRRKguys: Nessa sua jornada, quais foram e/ou são suas referências no meio da modificação corporal?
Jairo Camargo: Minhas referências são ancestrais indígenas, Mr. Sebastian (1933-1996), Fakir Musafar (1930-2018). Aqui no Brasil André Meyer (1969-), Sasha e mais um monte da caras que são pouco lembrados.

FRRRKguys: Você trabalhou bastante tempo no Led’s Tattoo e agora atende em estúdio privado. Essa mudança de atender em estúdio aberto e caminhar ao privado se deu por qual razão em sua jornada?
Jairo Camargo: Quando comecei a trabalhar no Led’s eu tinha 15 anos, fiquei por muito tempo e fui muito bem apadrinhado. Tive oportunidade de conhecer os melhores tatuadores e body piercers do Brasil e do mundo. Cheguei a fazer de 40 a 45 piercings em um sábado. Vi muita gente ir e vir. Fechei um ciclo de quase trinta anos no Led’s e fui navegar em outros mares, fazer outras coisa. Inclusive passei um ano andando de bicicleta e furando cocos na ciclovia do Rio Pinheiros. Minha vida é furar. Hoje inclusive, estou retomando os meus atendimentos em estúdio, vou atender no Spirit Ink do André de Camargo no Tatuapé, São Paulo.

Material de divulgação. Foto: Acervo Jairo Camargo

FRRRKguys: Você oferece formação na área do piercing, já ofereceu? Quais seriam as melhores formas e caminhos para que alguém se tornar uma ou um body piercer profissional?
Jairo Camargo: Meus assistentes se tornaram excelentes profissionais e alguns deles exercem a profissão até hoje. Sou de uma época em que se aprendia assim. Nunca dei cursos de uma semana. Acho muito superficial e pouco eficiente. Mas hoje existem ótimos cursos e associações profissionalizantes de piercing.

FRRRKguys: Uma das pessoas que trabalhou contigo e, sempre, falava com muito carinho sobre você, foi o amado e saudoso Enzo Sato (1987-2014). Ele falava sobre estar perto de você com grande entusiasmo, admiração e alegria. Qual a principal memória que você leva dele?
Jairo Camargo: Enzo, excepcional garoto, ótimo aprendiz e amante da arte da body modification. Ensinei o que estava ao meu alcance. Fui só uma base para ele.

FRRRKguys Eu sou uma entusiasta e grande apaixonada pela cultura da modificação corporal e, além disso, historiadora. Tenho me preocupado muito com a preservação da nossa história, das nossas pessoas, das coisas que foram sendo feitas em nosso país com todas as dificuldades que sabemos que existem. Em seu particular, você sente que existe um cuidado com a nossa história? Como sente que a sua trajetória é reconhecida pelo meio? O que você pensa sobre tudo isso?
Jairo Camargo: Nossa história vai persistir por gerações. Direta ou indiretamente sou reconhecido no meio. Dono de muitas estórias, boas e ruins.

Jairo Camargo no Jornal da Tarde em 1996. Foto: Acervo Jairo Camargo

FRRRKguys: Quais os seus planos futuros dentro da profissão?
Jairo Camargo: No futuro espero continuar com meu trabalho, viajar para aprimorar meus conhecimentos e talvez montar um estúdio com uma boa estrutura para disseminar e continuar preservando essa arte.

Jairo Camargo realizando microdermal. Foto: Acervo Jairo Camargo

FRRRKguys: Para as novas gerações seja do piercing ou seja da modificação corporal como um todo, qual mensagem você deixaria?
Jairo Camargo: As novas gerações têm uma base muito boa. Só cuidado… tudo tem um tempo certo e respeito ao corpo é fundamental.

CONTATO:
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