No começo do ano 2000 a saudosa Elke Maravilha (1945-2016) divagava sobre a palavra “esquisito” em algum programa televisivo vespertino e com ela, eu não só aprimorava o meu pobre vocabulário juvenil, como aprendia as delícias de também ser esquisita. Esquisito do latim exquisitus, quer dizer “seleto, procurado diligentemente, escolhido a dedo, requintado”. Ou seja, o sentido do termo latino era furiosamente positivo, vejam vocês… E assim se manteve no espanhol (exquisito) , inglês (exquisite), francês (exquis) e mesmo na nossa língua portuguesa há uma leitura possível como um adjetivo que denote requinte. Que ironia, não? Há um tempo abracei a palavra esquisito e a faço parte de mim, no sentido de ressignificá-la (ou fazer jus as suas variações) e me empoderar e é um pouco sobre isso que falarei nas linhas adiantes, suscitando aquilo que tenho chamado de pedagogia do esquisito.
Ao que parece existem pesquisas recentes que apontam que professores com tatuagens colaboram positivamente com o desempenho de alunas e alunos. Não sei (porque não li os artigos e pesquisas). Mas eu sei que alguns anos atrás esses corpos não poderiam ocupar esses espaços, esses lugares. Eu cresci naqueles tempos – fim da ditadura civil e militar brasileira – em que as modificações corporais eram patologizadas, marginalizadas, estigmatizadas e deslegitimadas de variadas formas. Eu cresci com as portas que foram batidas em minha cara – não uma, não duas, não três vezes – por eu ter e ser um corpo com modificações corporais que desviam do ideal estético defendido pelo discurso dominante. Eu cresci ouvindo que eu não seria nada, que eu precisaria mudar para ser alguém na vida (como se a priori eu já não fosse), que eu precisaria me adequar, que eu precisaria tirar isso, esconder aquilo e em outras palavras, deixasse de existir ou me tornasse invisível. E eu recusei acatar o que esses sussurros insistentes todos me diziam porque não havia essa opção para mim, eu não poderia abrir mão daquilo que eu era. Embora eu tenha tentado, obviamente que sem nenhum sucesso, como podem perceber.
Os tempos e os espaços também não estão livres das metamorfoses. São organismos vivos e pulsantes. Nós também somos organismos vivos e pulsantes. Eu vi algumas transformações acontecendo e é sobre elas que eu gostaria de escrever agora, talvez num excesso de otimismo ou desejo de aspirar por um solo quiçá seguro onde possamos descansar os pés e debruçar a cabeça. Ainda que por um minuto ou dois.
No ano de 2005, durante a minha graduação em Moda, eu tive um professor incrível, o Rodrigo Vilalba, com suas muitas tatuagens visíveis e pensando aqui agora, eu nunca expressei para ele a tamanha importância que era para mim vê-lo ocupando aquele lugar e naquele momento. Mais tarde entenderia melhor sobre as questões da representatividade, mas era disso que se tratava. O professor era de fato incrível e não apenas por ser um professor universitário tatuado, mas por ser um profissional exemplar, um ser humano genial, um intelectual generoso e, além disso, servir como ponto de referência de um lugar que eu também poderia ocupar em algum momento futuro ou no mínimo uma amostra de que haveria chances para pessoas esquisitas como nós. E era importante tudo aquilo pois por muito tempo o discurso que ressonava em minha mente era justamente o contrário: “você nunca vai ser alguém“, eles diziam. E eu dei murros, violentos socos em pontas de facas. Insistia em existir. Insistia não, ainda o faço.
Nos anos seguintes se aproximando do presente, também houveram situações memoráveis, pensando ainda sobre as pessoas esquisitas e o (acesso ao) mercado de trabalho. Lembro do dia em que passava pelo centro comercial da cidade onde vivo e vi um vendedor de uma loja de sapato com os braços com tatuagens visíveis, orelhas alargadas e alguns piercings. Não esqueço também da vez em que fui comprar um bilhete para o Metrô e recebi atendimento de um homem com os braços e mãos todas cheias de tatuagens e alguns piercings espalhados pelo rosto. Depois ouvi a história de Elza (Margareth Maria da Silva) que trabalha como gari em Belo Horizonte. Ouvi histórias de empresárias, veterinários, modelos, artistas, mecânicos, designers e toda gama possível de gente esquisita acessando o mercado de trabalho, o que ainda está muito distante do que seria ideal considerando todas as violências que esse cistema racista e heteronormativo sustenta, como já escrevi e denunciei aqui algumas tantas vezes. E quando em 2012 o Vladimir Franz, renomado professor da República Tcheca, com mais de 90% do corpo tatuado se candidatou a presidência daquele país? Céus! Aos poucos esses corpos foram aparecendo em todos os lugares e nos mais diferentes ofícios em um número que aumenta a cada dia mais, oxalá que aumente mais, somos uma multidão esquisita. Percebi então, que toda aquela transformação que alguns anos atrás parecia impossível de se concretizar, estava diante dos meus olhos, eu estava a vivê-la com toda potência e força.
Na escola onde trabalho hoje existem várias professoras e professores com variadas modificações corporais. Das pequenas tatuagens até grandes extensões visíveis dos corpos tatuados, os piercings igualmente não precisam ser escondidos, ocultados, camuflados, censurados. E nos encontros – muitas vezes rápidos nos corredores – que tenho com essas pessoas, sempre sinto uma emoção muito particular em vê-las dividindo aquele tempo espaço comigo e eu com elas, que grande privilégio. Mais emocionante ainda é lembrar das conversas que tive com as minhas classes sobre os preconceitos que rondam as modificações corporais e ver aquelas pessoas tão jovens se mostrando indignadas em saber que há bem pouco tempo atrás a exclusão social para pessoas esquisitas como nós era muito maior que os tempos de agora. É óbvio que não estou falando que o mundo está melhor e que tudo está lindo, não é nada disso, mas gostaria demais que vocês não perdessem completamente as esperanças e que principalmente nunca desistissem de vocês e das esquisitices que integram cada centímetro daquilo que vocês são. As mudanças são lentas comparadas a urgência das nossas existências, mas existe um fluxo em movimento e muita luta acontecendo em variadas instâncias. Não desistam, it gets better!
Ps. Eu não me tornei alguém na vida, porque eu sempre fui alguém. Vocês é que insistiam em não enxergar isso e, pior, tentaram me fazer fechar os olhos para mim.
2 thoughts on “Notas sobre a pedagogia do esquisito e sobre as pessoas que não seriam alguém”