Algumas coisas demoram para chegar até nós ou simplesmente operam em outro tempo. Recentemente assistimos o filme O homem que vendeu sua pele. Iniciamos sem ler a sinopse ou crítica alguma e o que nos gerou interesse foi a capa do filme que apresenta uma grande tatuagem nas costas de uma personagem. Considerando que no cinema há sempre a relação clichê entre modificação corporal e perversidade, psicopatia, criminalidade, demonização e demais estereótipos há muito ultrapassados, só pensamos: “bem, bem, vamos ver o que teremos aqui”. Sem esperar muito ou quase nada. Assim, fomos surpreendidas.
O homem que vendeu sua pele é um filme de 2019 dirigido pela cineasta Kaouther Ben Hania da Tunísia. Primeiro ponto a se considerar é a luta da Kaouther para incentivar que mais mulheres tunisianas ocupem o cinema. No Brasil o longa foi distribuído pela Pandora Filmes e chegou no Telecine Cult em Abril de 2022. Premiado no Festival Internacional de Estocolmo na Suécia (2021) e no Festival Internacional de Cinema de Veneza na Itália (2020), também foi indicado ao Oscar como melhor filme internacional em 2021.
A sinopse do longa diz:
“O Homem que Vendeu sua Pele é a história de Sam Ali (Yahya Mahayni), um jovem e impulsivo sírio que deixou seu país, pelo Líbano, para escapar da guerra. Almejando viajar para a Europa e viver com o amor de sua vida, ele aceita ter suas costas tatuadas por um dos artistas contemporâneos mais cultuados do mundo, transformando seu próprio corpo em uma linda e prestigiosa obra de arte.”
A obra é baseada no trabalho Tim (2006) do artista contemporâneo da Bélgica, Wim Delvoye, que inclusive participa do filme. Wim Delvoye tem um polêmico trabalho de arte especista, em que tatua porcos para posterior exibição. Em 2006, o artista encontrou Tim Steiner e houve a proposição de tatuar suas costas. A “peça de arte” viva circulou em exposições em galerias e museus e foi vendida por 150 mil euros para um colecionador de arte alemão, ou seja, quando Tim morrer, sua pele será removida e se tornará um quadro. Certamente que tudo isso gera muitas discussões e podemos nos debruçar para refletir sobre tudo isso em outro momento. Falemos do filme agora.
A diretora entrou em contato com a obra Tim em 2012, quando de uma retrospectiva sobre Wim Dalvoye no Museu do Louvre em Paris. “Lá eu vi uma obra em que o artista tatuou as costas de Tim Steiner, um homem sentado em uma cadeira, sem camisa, exibindo o desenho de Delvoye. A partir desse momento, esta imagem singular e transgressora não me deixou”, disse Kaouther Ben Hania.
Kaouther cria uma obra provocativa – inspirada na original – trazendo a discussão sobre um grande artista famoso europeu que compra o corpo de uma pessoa. Não qualquer pessoa, mas um refugiado sírio que vive o drama de uma guerra e também passa por questões pessoais que envolvem um relacionamento afetivo. A diretora sagaz pincela diferentes opressões e dominações, passando pela especismo quando retrata o manuseio de pintinhos como objetos. Pelo sexismo machista quando retrata a história da Abeer, casada com um homem que visivelmente não tem interesse. Chegando na compra do corpo de Sam pelo artista. A cineasta faz um tensionamento ainda maior quando articula estereótipos que colaboraram com a construção de uma noção de vilania de povos árabes e muçulmanos. Ela satiriza como quem diz “olha para vocês, olha como vocês pensam”. E reforça, ao seu modo, o violento e intenso processo de colonização dos países ricos europeus e do norte global contra populações outras, se aproveitando inclusive de suas vulnerabilidades mais intensas. Um dado a se considerar, a Bélgica – país do artista na ficção e na realidade – fez um estrago em suas colônias em Ásia, África e América Central. No Congo, em África, estima-se que em torno de 10 milhões de congoleses foram exterminados entre 1885 e 1960 quando da colonização belga.
Assistindo o filme, pensamos muito sobre as nazi tatuagens que romperam com a ideia do consentimento, da humanidade e se tornaram marcas nefastas na pele e em nossa história. Pensamos muito também como o consentimento em si precisa ser refletido com sensibilidade. Sam, enquanto um refugiado de guerra, estava exercendo o seu poder de decidir sobre o próprio corpo ou justamente o contrário? O que vemos ali é um aceite certamente porque não havia outra escolha. Não havia chance de um outro contexto possível sendo ele também uma vida precarizada.
São muitas camadas que o premiado longa articula. Para nós, um profundo respiro em ver a tatuagem sendo utilizada como pano de fundo para se discutir biopolítica, necropolítica, colonização, capitalismo, exploração e vidas precarizadas. Nem sempre somos os resultados de nossas escolhas, dependendo do contexto, somos os resultados das escolhas que não podemos fazer.
Por mais mulheres tunisianas no cinema!
REFERÊNCIA
O homem que vendeu as próprias costas para um colecionador de arte
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-38838585
The man who sold his skin (crítica do filme indicado ao Oscar)
https://www.youtube.com/watch?v=anv8g9-8YcA
O HOMEM QUE VENDEU SUA PELE: HISTÓRIA DE REFUGIADO QUE VENDEU SUAS COSTAS CHEGA AO CINEMA
https://cinejardins.com.br/o-homem-que-vendeu-sua-pele-historia-de-refugiado-que-vendeu-suas-costas-chega-ao-cinema/
Rei belga devolve máscara tradicional ao Congo em gesto simbólico de restituição
https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/rei-belga-devolve-mascara-tradicional-ao-congo-em-gesto-simbolico-de-restituicao
Copa do Mundo de Filmes: “O Homem que Vendeu Sua Pele” (Tunísia) – Por Wuldson Marcelo
https://ruidomanifesto.org/copa-do-mundo-de-filmes-o-homem-que-vendeu-sua-pele-tunisia-por-wuldson-marcelo/