Uma retrospectiva. Uma prospectiva. Começos, fins e outras ideias…

“Por isso, o primeiro território que descolonizo é a minha pele.”
Geni Nuñez

“Não te rendas, por favor, não cedas:
mesmo que o frio queime,
mesmo que o medo morda,
mesmo que o sol se ponha e se cale o vento,
ainda há fogo na tua alma,
ainda existe vida nos teus sonhos.
Porque cada dia é um novo início,
porque esta é a hora e o melhor momento.
Porque não estás só, porque eu te amo.”
Mario Benedetti

Osasco, 23 de Dezembro de 2025.

Esse texto é uma despedida para 2025. Nele farei um movimento de retrospectiva e também de prospectiva. Em primeira pessoa monstra.

Diferentes dos anos anteriores que fizemos retrospectivas resgatando os acontecimentos que marcaram a comunidade da modificação corporal e comunidade freak, agora vou me permitir a olhar para o nosso rastro de passado no FRRRKguys e o que pretendemos seguir construindo. Essa escrita partiu das perguntas “eu ainda quero construir algo aqui?“, “faz sentido insistir no que temos feito?” e “existe alguma coisa mais que podemos ainda fazer/contribuir/construir/provocar/afetar?” e etc, etc, etc… Para todas as três questões as respostas foram sim, com muitas ponderações e cuidados. Vamos – tentar – discorrer…

Em Outubro de 2025 fui ao Japão. Um deslocamento grande, intenso e profundo. Naquele momento, a decisão que eu tinha sobre o FRRRKguys era a de que em 21 de Junho de 2026 anunciaria o seu encerramento. Ironicamente o que me levava ao Japão era também o trabalho que realizamos aqui. Mais ironicamente ainda é que durante a longa – muita longa – viagem eu respondia uma entrevista de um jovem estudante de jornalismo da Unisinos, conversa que compartilhei AQUI e que foi publicada em dezembro na Beta Redação e em jornal impresso, que me fazia refletir sobre o que construímos, o impacto do nosso trabalho e a responsabilidade que tenho com ele.

O vespeiro da minha mente esteve sendo tocado.

ADENDO: Sobre a experiência no Japão você pode CLICAR AQUI, AQUI e AQUI TAMBÉM para ler e ver os registros.

RETROSPECTIVA: O CANSAÇO!

Mas o que em outubro de 2025 me inquietava tanto para encerrar nossa travessia aqui, quando da celebração dos nossos vinte anos em 2026? Bem, são algumas muitas situações e o cansaço… O cansaço!

Vamos nos concentrar no cansaço. Pois…

Cansaço de assistir nessas duas décadas a nossa gente se encantando cedo demais – tantas sendo suicidadas – e a sensação de impotência que me toma com cada corpo que cai cedo demais.

Cansaço de seguir assistindo nessas duas décadas o patriarcado operando na comunidade da modificação corporal, veja bem, ainda temos eventos sendo construídos/mantidos apenas por homens cisgêneros, heterossexuais e brancos, reproduzindo um padrão que não condiz mais com a realidade histórica que temos, considerando que temos – e sempre tivemos! – muitas mulheres profissionais incríveis, muitas pessoas não brancas com trabalhos sensacionais e que nunca estão nas programações e tantas pessoas trans, travestis e não-binárias que apenas não estão participando dessas movimentações e discussões.

Cansaço de ver a presença de UMA mulher (quando tem), UMA pessoa preta (quando tem), UMA pessoa trans (quando tem), UMA pessoa com deficiência (quando tem) na programação para esses eventos pagarem de inclusivos e acessíveis. Precisamos olhar para isso tudo aqui de modo atento. Essas populações estão nos eventos/convenções/congressos/conferências/simpósios? Se estão, qual papel ocupam? Se não estão, o que tem sido feito para que elas estejam? É preciso cuidado com a tokenização. É preciso responsabilização e mobilização coletiva para que mudanças estruturais e institucionais possam ocorrer.

Cansaço de assistir nessas duas décadas a repetição de tradições de violência contra a mulher na comunidade da modificação corporal e, agora também, na comunidade freak. Trabalhei arduamente pela comunidade freak, no sentido de que ela não estivesse produzindo e reproduzindo lógicas de violência sexista, misógina e opressão e, em 2025, bati a cara fortemente na parede quando percebi que não estamos nem livres e tão pouco seguras, mesmo em um espaço que tem sido construído com muito cuidado, sensibilidade, crítica e potência. A sensação de impotência de que o Manifesto Freak não tenha sido suficiente, o que entendi como um (des)presente na comemoração dos 10 anos do texto. As pessoas estão lendo o Manifesto Freak e, penso, o quanto estão sendo coerentes entre discurso e prática? O quanto que estão de fato incorporando e encarnando – aquelas ideias – em suas vidas? Não naquela vida artificial mostrada nas redes sociais ou nos palcos, mas sim na vida que pouca gente vê, a do cotidiano, a da intimidade, a do real. Fui tomada pelo receio que as palavras do Manifesto Freak se tornavam palavras vazias que voavam – como qualquer coisa – com o vento. Isso me pegou forte.

O cansaço. São muitos exemplos possíveis que poderiam ser dados, e espero que vocês que estão me acompanhando agora (tem alguém aqui comigo?), estejam pensando em como andam as produções na comunidade da modificação corporal ou na chamada “indústria”, que considerada a assimilação do capital e norma, talvez seja o melhor nome a se dar e chamar daqui em diante. O recente episódio do cartaz de uma grande convenção de tatuagem ilustraria bem essa reflexão toda, o quanto a comunidade da modificação corporal, principalmente a parte dela que foi capturada e assimilada pelo capitalismo e normatividade compulsória, estão distantes – bem distantes – de uma construção de uma sociedade menos injusta e desigual. Quiçá fosse a construção de uma comunidade menos perversa e hostil.

Nada disso é uma chamada ou aceno para o cancelamento, mas sim para um convite honesto para responsabilidade coletiva e reparação de uma dívida histórica que temos. Não estou personalizando a discussão em uma única pessoa, não é disso que se trata, mas um apontamento para o modo de se fazer cis-sistêmico e quem afetado a comunidade da modificação corporal e a comunidade freak.

Estou cansada.

Manifesto Freak em obra do Guiliani Garcia no Memorial da Resistência. Foto: T. Angel

PROSPECTIVA: HÁ FORÇA!

Estou cansada. E entendi que preciso descansar e estar com pessoas que fortaleçam a chama de rebeldia que habita e alimenta o meu coração. O meu sagrado coração é um molotov. Insurgente. Desobediente.

Não posso esquecer.
Não posso esquecer.
Não posso jamais esquecer.

A viagem ao Japão me ensinou muito e me trouxe fôlego novo. Estando lá entendi que a micropolítica – que sempre defendi e que acredito – deve ser a força motriz da comunidade freak e do trabalho que movimento no FRRRKguys. Somos uma minoria e vivemos em um mundo quebrado e colapsado. Que os nossos encontros reúnam três ou quatro pessoas, desfrutemos e celebremos. Construamos possibilidades e que possamos imaginar outros mundos coletivamente. Sigamos a escrever a história silenciada, em uma teimosia sagaz de recusa ao apagamento epistemológico e histórico.

No Japão senti o hálito do underground novamente e de viver uma cultura marginalizada e, até a pouco tempo, criminalizada. O sabor de ocupar uma pequena livraria alternativa para contemplar um punhado de fotografias que contam sobre a nossa história. A alegria de ir em uma exposição que não caberia seis pessoas dentro do mesmo espaço e terminar a noite em um bar de monstros com apenas duas mesas e conversas para rasgar a noite de Tóquio. Sou grata por isso ao Keroppy, Iritsu e Hay.

A multidão anormal me interessa muito. A multidão anormal deve ser compreendida com a reunião de mais que uma pessoa freak, dissidente ou monstruosidade. O Bloco des Freaks nos ensinou isto ao longo dos anos, ele é consequência do trabalho do FRRRKguys.

No Japão – da minha breve visita na Conferência da JPPA – encontrei uma pessoa que me trouxe um par de adesivos de um estúdio e que em um minuto de conversa e abraço, se emocionou e me agradeceu em lágrimas por ter escrito sobre seu amigo que havia se encantando e pelo trabalho com o FRRRKguys. A pessoa era o body piercer espanhol Gabriel Meister, o estúdio era o AKA Berlin e o amigo encantado era o artista da performance Jon John, que perdemos em 2017. Eu fiquei arrepiada com o momento, emocionada e surpresa. Senti ali que recebia uma resposta para o meu desejo de término.

Outras respostas.

O FRRRKguys tem sido citado – e cada vez mais, há de se dizer – em pesquisas acadêmicas. Algumas vezes tenho a chance e o privilégio de conhecer as pessoas e monstruosidades que pesquisam e citam o nosso trabalho, outras tantas vezes não, o que me toma enquanto um assombro bom. Não tenho mais controle sobre nada. O FRRRKguys é bicho selvagem e solto. Bravo! Bravo! Bravo!

Este ano algumas pesquisas nos citaram, faço questão de mencionar duas delas, por serem importantes e carregadas de bonitezas, a primeira é o TCC intitulado como “Corpo Estranho: a suspensão corporal como experiência de autonomia” da Ana Laura Binsfeld (UNILA) e o segundo é uma dissertação de mestrado chamada como “Em defesa do bizarro: reflexões contra-coloniais e libertárias sobre a demonização, a patologização e a criminalização das inscrições corporais” do Bruno Latini Pfeil (UFRJ). Entrar em contato com essas produções é abraçar um eco que convida para expansão da vida. São respostas para o meu desejo de término.

Continuidade. Seguimos…

Eu reconheço o cansaço que há em mim, mas abraço a força que habita o mesmo espaço.
Há força!

Não posso esquecer.
Não posso esquecer.
Não posso jamais esquecer.

Ah!

Manifesto Freak no Japão: Foto: T. Angel

E AGORA?

E agora? Agora. É tudo o que temos e tudo pode acabar a qualquer momento. Com a bagagem cheia de histórias, memórias e experiências que nos encaminham para celebração dos nossos vinte – esquisitos – anos. Céus, vinte anos daqui seis meses!

Em 2026, ano muito especial para o FRRRKguys, iniciarei o meu doutoramento e já tenho uma agenda de atividades que vão exigir bastante de mim. Dito isso, é provável que eu esteja produzindo menos aqui e construindo em um tempo outro, o que não quero e não deve ser interpretado como um fim, hiato ou qualquer coisa que o valha. Se digo que vejo ainda sentido em manter o FRRRKguys ativo, meu tempo e dedicação precisa ser salva pra ele também. Aqui estarei.

O meu cansaço mencionado acima, tem sido transformado em energia para enfrentamentos. Não sei explicar sobre essa metamorfose, mas está em fluxo contínuo. Enquanto ativista e professora, tudo o que tem me atravessado e que me levou para um lugar de desistência, tem sido ressignificado para um local de permanência, de (de)formação e fortalecimento para mim individualmente, para o FRRRKguys e para a comunidade freak.

Entendo que faço/fazemos parte da comunidade da modificação corporal, mas o nosso interesse e energia vital deve ser projetado – cada vez mais – para o fortalecimento da construção da comunidade freak. Demoramos quase vinte anos para chegar até ela, e é nela que pretendemos encerrar a nossa trajetória quando for chegada a hora. Até lá, temos muito trabalho pela frente.

Se você chegou até aqui e superou a lógica estúpida de textos curtos e temporalidade tiktok, te agradeço muito. Te agradeço pelo interesse no que temos a dizer e tempo para nos acompanhar.

Por enquanto seguiremos aqui.
Espero que nos encontremos em 2026 em textos, em abraços e nos pensamentos.

Fiquemos com vida!
Recusando a assimilação, a captura e a normatividade compulsória.

Bandeira do Orgulho Freak em Tóquio. Foto: Luciano Iritsu

Amor,
T. Angel