Modificações corporais e a política nosso de todo dia

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Eu sou do tempo em que menores de idade poderiam se tatuar ou se perfurar nos estúdios de São Paulo, sem o receio de serem enquadrados em nenhum tipo de lei. Curioso que mesmo sem projeto de lei algum, antes de 1997, havia um discurso em que as tatuagens deveriam ser feitas apenas depois dos 18 anos de idade. Digamos, era o mais aconselhável. Não se falava do piercing antes, pois era algo “novo”. Quando a lei chegou na cidade de São Paulo o body piercing – como conhecemos hoje – tinha apenas cinco anos de estrada.
Eu fiz diversos body piercings antes de completar 18 anos e conheço muita gente que também começou a perfurar o corpo e carregar adornos antes da maior idade. Não exagero, o número é tão grande que eu não saberia mensurar.
Ver essa lei ainda circulando me causa um certo desconforto. Na minha cabeça é uma lei que fala sobre conservadorismo, falso moralismo, hipocrisia, preconceito e principalmente que o meu corpo não é meu, mas sim do Estado.
Pensando em tudo isso criei uma enquete no FRRRKguys para saber qual seria a opinião dos nossos leitores e principalmente dos profissionais da tatuagem e do piercing. O resultado não me surpreendeu: 94 pessoas diziam serem favoráveis ao projeto de lei e 177 contrários.

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A margem de diferença é ínfima comparada ao absurdo que é a proposta, mas ainda assim mostra que a maioria não concorda com o projeto de lei. Ao mesmo tempo o número faz um alerta também para a curta consciência política entre os que participaram da enquete e que são favoráveis à lei, que no entanto, entendo como um resquício de uma educação de base arruinada pela Ditadura Civil e Militar (1964-1985).
Essa resposta oriunda da enquete aumentou o meu incomodo de querer entender o porquê da lei ainda vigorar. Hoje aparentemente de maneira menos questionada. Corrijam-me se eu estiver equivocado.

Dando seguimento, para quem nunca teve curiosidade de ler o projeto de lei de número 9.828 de autoria do Deputado Campos Machado (PTB), já adiantamos que é do tipo curto e grosso. Compartilhamos o mesmo abaixo:

“LEI Nº 9.828 – de 6 de Novembro de 1997

Estabelece proibição quanto à aplicação de tatuagens e adornos, na forma que especifica

(Projeto de Lei n. 44, de 1997, do Deputado Campos Machado – PTB)

                     O Presidente da Assembléia Legislativa.

Faço saber que a Assembléia Legislativa decreta e eu promulgo, nos termos do artigo 28, § 4º, da Constituição do Estado, a seguinte Lei:

            Art. 1º Os estabelecimentos comerciais, profissionais liberais, ou qualquer pessoa que aplique tatuagens permanentes em outrem, ou a colocação de adornos, tais como brincos, argolas, alfinetes, que perfurem a pele ou ombro do corpo humano, ainda que a título não oneroso, ficam proibidos de realizarem tal procedimento em menores de idade, assim considerados nos termos da legislação em vigor.

Parágrafo único. Excetua-se do disposto neste artigo a colocação de brincos nos lóbulos das orelhas.

            Art. 2º Caberá à Secretaria da Saúde a fiscalização e o estabelecimento dos meios necessários para a aplicação da presente Lei.

            Art. 3º O não-cumprimento da exigência desta Lei implicará no fechamento definitivo do estabelecimento, quando for o caso, e na responsabilidade dos agentes quanto à infringência dos artigos 5º, 17 e 18 da Lei Federal n. 8.069/90, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

            Art. 4º O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo de 90 (noventa) dias da data de sua publicação.

            Art. 5º As despesas resultantes desta Lei correrão à conta de dotações próprias do orçamento-programa do Estado, suplementadas se necessário.

            Art. 6º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação.

Paulo Kobayashi – Presidente.”

Não tenho conhecimento de registros de estúdios que tenham sido fechados ou que profissionais tenham sido multados por conta da lei. Se alguém souber, por favor, nos deixe saber. Por outro lado, que menores de idade se tatuam e fazem body piercing – antes e hoje – os relatos são tantos que nem caberiam aqui. Nesse sentido somos todos foras da lei, percebem o equívoco?

Pois bem, de lá para cá já se foram dezesseis anos. Leiam bem, quase duas décadas se passaram. O que mudou durante esse tempo é que a lei – ainda – existe. Alguns profissionais da tatuagem e do piercing acataram a proibição de fato e tantos outros, não há estudos efetivos, mas acreditamos que a grande maioria, simplesmente dá o famoso jeitinho brasileiro. A lei de Campos Machado caiu facilmente no beco da hipocrisia. Menores continuam fazendo suas tatuagens e seus piercings, com ou sem lei. O que não nos espanta em nada.
Por outro lado, algo que nos deixou sempre incomodados é o fato de não haver nenhum tipo de grande mobilização para derrubar essa lei um tanto quanto arbitrária e autoritária. Obviamente que reconhecemos os esforços do então deputado Alberto “Turco Loco” Hiar (PSDB), da body piercer Zuba e de alguns outros profissionais que se mobilizaram anos atrás. Mas fica a questão, tão poucos por quê? E ainda, pensando na quantidade de pessoas que temos hoje, por exemplo, e que permanecem silenciadas, por quê? O desconforto chato é consequência de saber que a lei ainda está em vigor e que a maioria permanece simplesmente calada. Percebemos – com isso e com outras situações – uma certa dificuldade na questão de consciência de classe entre esses profissionais e tão logo de se articularem politicamente. Modificar o corpo é política também, vamos sempre repetir isso. Quanto mais tempo demorarmos para entender isso, mas haverá registros de políticos questionáveis adentrando o meio.

Lembram-se da parte em que mencionei que – o projeto de lei implica em que – não somos donos dos nossos próprios corpos¿ Certo… O Deputado Campos Machado com um discurso bastante totalitário e conservador afirmava “que era preciso fazer algo para preservar o futuro de nossos jovens” e que o Estado “tem a obrigação de tutelar a sociedade[1]. Leiam bem, com tutelar o Estado podemos compreender que o senhor deputado sugere que essa “proteção” do Estado tenha inclusive posse sobre o nosso direito de decidir sobre nós. Retira o direito inclusive dos pais e mães sobre os filhos e filhas com a justificativa de que “tem muito pai irresponsável, que não tem condição de dar exemplo e não está preocupado com a família”. Segundo o deputado nosso corpo não é nosso, simples assim.
Esse debate é importante para a comunidade body mods e já é bastante forte dentro do movimento feminista que vem lutando bravamente – dentre tantos outros assuntos – pelo direito de decidir pelo próprio corpo. Aos que torcem o nariz para as feministas, talvez fosse o momento de tentar se aproximar e se espelhar. O feminismo tem muito para nos ensinar!
Se faz importante acrescentar que o vereador Janualdo de Mardil (PSDB-RJ) havia se simpatizado com o projeto e tentou implementar no Estado do Rio de Janeiro. Segundo Machado e Mardil, outros deputados de Brasília haviam demonstrado interesse em transformar a proibição em lei federal. O que não foi para frente, mas que se a gente não ficar bem atento, um dia pode acontecer. Não nos esqueçamos da bancada fundamentalista que está em atuação hoje e que nem era tão forte na década de 90.
Continuando, Campos Machado não poupa sua visão curta e limitada sobre as modificações corporais, assumia publicamente seu preconceito contra as tatuagens e piercing, dizendo que os pais coniventes com a prática de se alterar o corpo eram irresponsáveis.

“Uma moça com dois brincos no nariz me causa repulsa”
Deputado Campos Machado

Com isso, o preconceito foi institucionalizado por lei em 1997 , como muito bem colocou o estudante de 16 anos, Felipe Lisot, em matéria da Revista Veja no ano que em o PL entrou em vigor.

Todos que estudam, mesmo que sem grandes aprofundamentos, a modificação corporal percebe o quanto é comum a ideia do “do it yourself” (faça você mesmo). Com a lei Campos Machado a tendência foi ver esse tipo de prática aumentar, principalmente nos primeiros anos que se seguiram. Além disso, é incontestável que houve a abertura de um mercado clandestino que aumentou seriamente o risco de infecto-contaminação e problemas no que concerne a prática de tatuagem e adornos em menores de idade. O efeito disso sentimentos até hoje. Percebam, os menores de idade continuaram fazendo suas tatuagens e body piercing, mas com o risco potencializado de entregarem seus corpos para qualquer aventureiro de plantão.

Andar pelas ruas do centro de São Paulo na década de 90 era ver com os próprios olhos a comprovação do que dissemos acima. Inúmeros “tatuadores” e “piercers” espalhados por calçadas na espera do próximo cliente.  Como vimos no relato da body piercer Zuba:

“Outro dia veio uma garota com uma jóia no umbigo suja a perfuração foi feita na rua, pois ela era menor e esse era o único jeito.” [2]

Analisando os projetos de lei com autoria de Campos Machado, percebemos que este foi um dos mais infelizes. Vocês podem ver todos os outros projetos clicando AQUI.
Falamos em um dos, pois é sabido que o senhor deputado articulou diversos projetos para diminuir os poderes de investigação da Corregedoria da Polícia Civil e seu nome está bastante ligado a diversos casos de corrupção. A Revista Istoé já escreveu sobre a ficha questionável do senhor Campos Machado.
Não sei, mas fico pensando que é disso que precisamos proteger o futuro dos nossos jovens e que há uma necessidade urgente de – como cidadãos – tutelar o Estado mais do que o contrário. A corrupção que ronda a política brasileira me parece bem mais problemática e questionável do que se um menor de idade vai ter um braço tatuado ou o nariz perfurado. Estamos apenas dizendo… O senhor deputado Campos Machado falava sobre responsabilidade e dos pais que não dão exemplo aos filhos e filhas, mas esqueceu-se que sua carreira política, deveria dizer a sua ficha pública, não é digna de exemplo para ninguém. Dignidade é algo que tem faltado, ao que parece sim e não é pouca.
Para concluir, mais que negar os serviços aos menores de idade, temos que passar a refletir criticamente sobre se essa lei algum dia foi benéfica para alguém. Ao que percebemos – estudando documentos, depoimentos e a experiência de campo em si – não.
Como já dissemos o projeto de lei do senhor deputado Campos Machado é o preconceito institucionalizado e isso por base já está completamente equivocado.
O que será feito a partir disso, não posso prever. Mas deixo aqui a provocação para que a classe de tatuadores e piercers profissionais se unam para derrubar essa muralha de falácias.
Se não foi possível antes, que seja agora. Ainda dá tempo…
Que o nosso corpo não seja, apenas e então somente, propriedade do Estado.

Fontes:
Projeto de Lei 9.828:
http://www.mp.sp.gov.br/portal/page/portal/cao_infancia_juventude/legislacao_geral/leg_geral_estadual/448FF05EB89C2FEBE040A8C02C013604

É proibido permitir
http://veja.abril.com.br/191197/p_127.html

Lei estadual proíbe piercings em menores
http://www1.folha.uol.com.br/folha/equilibrio/equi20000925_piercinglei.shtml

Proibição expande mercado negro de piercings
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/folhatee/fm1401200213.htm
Site oficial do Campos Machado
http://www.camposmachado.com.br

Confessionário devassado
http://www.istoe.com.br/reportagens/23791_CONFESSIONARIO+DEVASSADO

Obras em ‘paróquias’ do PTB favorecem construtora
http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/68249_OBRAS+EM+PAROQUIAS+DO+PTB+FAVORECEM+CONSTRUTORA

A ficha corrida de Campos Machado, o escudo de José Maria Marin
http://blogdopaulinho.wordpress.com/2013/06/07/a-ficha-corrida-de-campos-machado-o-escudo-de-jose-maria-marin/

‘Onde estão as vozes da rua, que não estou ouvindo?’, ironiza deputado
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,onde-estao-as-vozes-da-rua-que-nao-estou-ouvindo-ironiza-deputado-,1047838,0.htm

Escritório de Campos Machado e sede do PTB foram alvos de depredação
http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,escritorio-de-campos-machado-e-sede-do-ptb-foram-alvos-de-depredacao,1046491,0.htm


[1] VARELLA, Flávia. É proibido permitir. Revista Veja, São Paulo, 19 Novembro de 1997. Sendo possível o acesso ao artigo via web. Disponível em: http://veja.abril.com.br/191197/p_127.html. Acesso em: 07 Novembro de 2010.

[2] VAUGHAN, Daniel. Proibida pra mim. Revista Tattoo Art, Ano 1, N° 1, São Paulo, p. 12-15.

 

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