“Bom dia, Verônica” e a suspensão corporal como forma de tortura

Foto: reprodução/Instagram

Em 1º de Outubro chegava no catálogo da Netflix a série Bom dia, Verônica dirigida por José Henrique Fonseca e baseada  em romance homônimo de Ilana Casoy e de Raphael Montes (que o escreveram sob o pseudônimo Andrea Killmore).

O texto traz spoilers, se você não assistiu a série ainda talvez seja hora de parar a leitura aqui. O texto não é uma crítica negativa a fotografia, atuações, figurino, maquiagem, trilha sonora e etc. O texto tão pouco tem a intenção de minimizar a importância da discussão trazida pela série sobre a violência contra a mulher e a corrupção que existe em instituições como a polícia. A ideia é, inclusive, chamar a atenção para as fragilidades dessa discussão presentes na construção da obra.

Ficamos sabendo da produção da série em meados de 2019, quando um produtor nos procurou pedindo indicação de mulheres para uma cena de suspensão corporal no contexto de tortura. Sim, as cenas das perfurações e algumas cenas de suspensão corporais – que aparecem repetidamente ao longo dos episódios – são reais e contam com dublê. Sim, seria mais uma obra de audiovisual de grande porte explorando a suspensão corporal como tortura, perversidade e patologia.

Conforme escrevemos AQUI, quando o produtor nos procurou pedimos o nome de quem seria o profissional envolvido e explicamos o motivo: proteção das mulheres contra pessoas da suspensão corporal com histórico de violências e agressões. A resposta nunca veio.

Ao que parece o produtor havia entrado em contato com outras pessoas e logo a comunidade da suspensão corporal – que é pequena e interligada – descobriu quem seria o homem envolvido para realizar a suspensão. Justamente alguém com histórico de agressão e violência contra as mulheres segundo inúmeras denúncias e notícias de jornais. Houve uma forte pressão da comunidade não apenas nacional, mas internacional também, e a produção enviou uma curta nota dizendo que “essa pessoa NÃO fez, faz ou fará parte do nosso quadro de profissionais” (sic). É importante frisar que sim, a pessoa fez e faria parte do quadro caso ninguém tivesse se manifestado, o que é grave por incontáveis razões. A pressão popular fez a mudança do profissional envolvido e que pode ser comprovada nos créditos finais.

O mais irônico disso tudo é que a série – agora que publicada – é exatamente sobre a violência contra as mulheres e suas incontáveis faces. A relação promíscua da omissão das instituições de segurança com agressores de mulheres é bem explorada inclusive e, aqui, a gente adoraria sentir um distanciamento entre ficção e realidade. O nosso questionamento ao produtor – que fora ignorado – se deu justamente pelo nosso conhecimento dessas relações todas.

Em Bom dia, Verônica temos o personagem Brandão interpretador por Eduardo Moscovis, que é policial militar e um serial killer. Sequestra mulheres para matá-las, antes disso torturando-as, perfurando e suspendendo seus corpos. Além de suas vítimas desconhecidas e aleatórias, a sua própria esposa é uma vítima, com uma atuação impecável de Camila Morgado.

Sobre o uso da suspensão corporal enquanto manifestação da perversidade, patologia e tortura não é uma novidade. As grandes produções do audiovisual exploram exclusivamente essa narrativa. O que é um problema gigantesco conforme repetidamente temos escrito, por:

1) Tirar a prática da suspensão corporal dos seus significados reais e inserir na ficção de forma distorcida e falaciosa, construindo o imaginário de que a prática cultural é, então somente, um ato de extrema violência produzido por pessoas perversas, agressivas e psicologicamente doentes.

2) Colaborar com a estigmatização de uma comunidade e de uma cultura considerando a insistente narrativa da violência e o alcance que obras com grandes investimentos têm.

3) Não há outra narrativa sendo feita com o mesmo alcance e investimento capital.

Pontualmente em Bom Dia, Verônica, temos situações verdadeiras e hediondas de nossa sociedade transposta para ficção, a exemplo da corrupção da polícia e a violência contra a mulher. São dois dados concretos e reais e que vemos diariamente nos jornais. Quando colocamos a suspensão corporal dentro desse esquema, levamos pessoas que não conhecem a cultura a acreditar que de fato ela encontra eco ou veracidade em atos de tortura. Isso é simbolicamente violento.

Diferentemente de algumas outras produções do audiovisual, Bom dia, Verônica e a exploração da suspensão corporal enquanto tortura encontra seu alicerce no livro que deu origem a série. Na obra original, inclusive, explora com mais detalhes e requintes de crueldade o uso da suspensão, como ilustram os trechos selecionados abaixo:

“Em cada uma, verdadeiros projetos arquitetônicos de tortura sexual, dor e humilhação. Em traços grossos, obsessivos, desenhos detalhados de mulheres nuas, amordaçadas e penduradas por ganchos cravados na
pele, atadas por cintos de couro, com os seios esbugalhados e erguidas por engrenagens que davam movimento às correntes.”

“No desespero, ela retira um dos elos do gancho, deixando que a corrente corra sobre a roldana, mas só consegue fazer com que o corpo da coitada se incline em 45 graus. Paloma dá um grito de dor e desmaia, alguns anzóis arrebentam sua pele em alguns pontos enquanto outros esgarçam o tecido até quase romper. Janete pensa em retirar as outras correntes do gancho,
mas tem medo do estrago que pode causar. Talvez seja o caso de esperar a polícia chegar para tirar a mulher dali. Tem muito sangue, carne viva exposta, ela não vai conseguir lidar com aquilo.”

Ficamos com a sensação do que não era bom, piorou um pouco. Escritores precisam ter responsabilidade sobre aquilo que pretendem escrever a fim de não reproduzir violências contra comunidades e grupos de pessoas e tão pouco estigmatizar culturas que já carregam históricos de ataques e perseguições. O exemplo mais vivo que podemos usar no momento – no sentido da comparação – é o caso da famosa escritora transfóbica J. K. Rowling que cria o personagem que é um homem cis que se veste de mulher para matar as suas vítimas. Percebe o que fica dito no subentendido?

Bom dia, Verônica faz sucesso no streaming e tudo indica que terá continuação. Fim ao cabo é isso, pessoas normativas ricas, produzindo arte massacrando dignidades para ficarem mais ricas. Estejamos atentas!